A Hora H2O
Olhou para as rochas na beira da rodovia e se deu conta de que poderia ser muito mais simples do que havia planejado. Uma puxada abrupta de volante a 160 km/h e capotaria para a morte. Inicialmente, havia pensado em saltar de pára-quedas sem acioná-lo, seria o rompimento com sua maior fobia, uma última prova de coragem, como na cena final de "Vanila Sky", mas preferiu uma morte menos violenta. Não queria “estragar o enterro”, lembrando da frase final do marginal do filme “Tropa De Elite”, implorando para não ser alvejado no rosto, o que faria com que o velório necessitasse ser de caixão fechado.
Escolheu então um mergulho em Bombinhas. Iria sem companhia para ninguém ficar em sua cola, o grupo pularia na água e ele se afastaria, esperando então o ar chegar ao zero. Os motivos ele já nem repassava na memória, só sabia que não lembrava de qualquer razão que o fizesse continuar a querer existindo. Não que algo abominável tenha ocorrido em sua vida, ele passava por um misto de desilusão com apatia. A falta de oxigênio existencial já há muito o abatia, queria agora apenas fechar o suprimento de O2 para o corpo.
Chegou cedo no estaleiro, deixando seu carro em um estacionamento próximo: tirou a chave da ignição, saiu e acionou o alarme pela última vez em sua vida. Debruçou-se no parapeito do trapiche para apreciar o mar apaziguado e a bruma opaca que embaçava a fronteira do oceano com o céu lá fundo no horizonte. Logo foram chegando os membros da tripulação, caminhando pelo trapiche com seus uniformes vermelhos, óculos de sol e risos descontraídos. Alguns minutos depois, foram se aproximando os mergulhadores, com rosto escaldado do sono das baladas da véspera. Entraram aos poucos na embarcação e foram se espalhando pela proa e convés.
O mar semi-revolto e o vento sul causaram frustração, visto que haveria visibilidade debilitada ao fundo. A embarcação também balançava mais do que o normal, fazendo os instrutores distribuírem doses extras de Dramin ao grupo. Já se aproximavam do Ilha do Arvoredo, causando excitação em todos que estavam a bordo, cada qual passando a vestir suas roupas de borracha, snorkles e máscaras. Estava chegando a hora.
Ancorada a embarcação e todos devidamente municiados com seus cilindros e pés de pato, caíram um a um dentro d’água. Afundou lentamente deixando as borbulhas o afastarem aos poucos da superfície, como um último e efêmero rastro de sua existência. Oito metros abaixo e foi se afastando dos demais mergulhadores até perder todo contato visual, o que não foi difícil, já que a água estava turva e todos se concentraram mais próximos dos rochedos. Tinha autonomia para 20 minuto de ar, o que fez com que passasse a respirar mais rapidamente para esgotar a capacidade o quanto antes. Ficou apreciando um par de meros que valsavam lentamente a poucos metros de distância, permanecendo a procurar por outras espécies, embora essa distração mais o entediasse nesse momento, já que o principal motivo do mergulho era outro.
Tinha curiosidade em saber como seria morrer, mas quase não sustentava medo, só expectativa. Havia duas possibilidades que muito o interessavam: um amigo surfista que também mergulhava citou que, em um mergulho mal sucedido onde teve problemas com o respirador principal e também com o reserva, sentiu que a carência paulatina de oxigênio gerava delírios, causando um misterioso prazer que só foi interrompido quando outros colegas de mergulho perceberam que ele estava morrendo. Outra especulação sobre a morte, e desta vez não só referente a mergulhos, era a de que, na hora, no minuto m e no segundo s da transição entre a existência terrena e o lado de lá, você revê toda a sua vida. E isso em um único segundo. Lembrou de “Beleza Americana”, quando o personagem de Kevin Spacey afirmou que “não é um segundo, é um oceano de tempo”. Ele estava em um oceano, e lhe restava pouco tempo. Olhou para o marcador apontando para o vermelho e percebeu que o momento derradeiro estava chegando. Embora não quisesse rever sua vida inteira, algo que o deixava curioso era o fato de que comentaram ocorrer, neste flash-back imenso e ínfimo, um fato ainda mais inusitado: relembrar todos os detalhes de cada instante vivido.
O delírio e a revisão existencial se iniciaram ao mesmo tempo. Percebeu então que estava morrendo quando passou pela sua mente a sua mais remota recordação: uma cicatriz em forma de triângulo sobre a sobrancelha do médico que o pariu. Depois veio a mão áspera com o anel da vizinha que o machucava nos primeiros banhos. Chegou a recordar da marca da panela de pressão que colocou na cabeça para brincar de soldado com o irmão na cozinha. Outros detalhes vieram à memória, fazendo-o recordar o quanto sua vida não merecia continuidade: a vez em que deu vexame em um recital com a família errando o "Tema de Lara" ao piano; acertando acidentalmente a professora na guerra de cuspe no recreio da escola; errando gol feito em jogo no qual o goleiro bateu a cabeça na trave deixando a pequena área livre; entre outros opróbrios da infância. O turbilhão de recordações prosseguiu com a tatuagem mal sucedida feita de tinta de caneta Bic e que deixou uma pequena e perpétua mancha na omoplata direita, o atropelamento sofrido na esquina das marechais e que deixou seu maxilar estalando para sempre, o quase incêndio de seu apartamento quando o carpet pegou fogo com a agulha que tentou esterilizar embebida em álcool no fogão para desencravar uma unha, a venda de sua coleção de discos de vinil da qual se arrependeu perpetuamente, o baseado que teve de engolir para não ser pego em uma batida policial e que o fez ficar “viajando” por dois dias, a briga que teve com um salva-vidas que baixou em sua namorada e que atraiu os colegas bombeiros para uma surra coletiva, o número de pintas que contou nas costas de outra ex-namorada, as estrelas que contabilizou no céu da Ilha do Mel com uma amiga colorida, o telefone esquisito e indecorável daquela loira que tinha o sorriso mais contagiante que viu numa balada... voltou rapidamente à superfície antes que esquecesse de novo daquele número.
Mario Lopes
domingo, 12 de abril de 2009
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