sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Cadê a raça agora?


Ontem, foi desperdiçada a maior de todas as oportunidades de se derrubar o último e maior baluarte da virilidade burra deste país.
O macho brasileiro, orgulhoso de seu principal exército, a seleção brasileira de futebol, está encerrando a semana tendo assistido à derrocada humilhante de seus gladiadores perante o maior inimigo dos campos. Poderia também ter testemunhado o triunfo feminino sobre a maior potência planetária (e olhe que neste caso não estamos falando só de futebol). O que evitou esse irônico brinde do destino foi uma vaidade íntima e ingênua que contamina ambos os sexos em nosso país: o mito da raça.
Jogar com raça, time de raça, vencer com raça, bordões de quem prefere suplantar a carência de estratégia com a rigidez muscular. Além de ser uma descomunal tolice, a raça é uma palavra de ordem que apela para um brio ilegítimo. Brasileiros e brasileiras não têm raça. Somos uma miscigenação gigantesca. Se os marcianos invadissem a Terra seríamos classificados como os guapecas. E não há nenhum demérito nisso, todos já ouvimos histórias de vira-latas que enfrentaram com êxito pitbulls, enquanto que os cães de raça geralmente fogem de desafios extremos por conta do instinto de sobrevivência. O cão de rua e sem raça geralmente se joga nos desafios por ter experimentado no próprio pêlo as agruras da vida dura, real e sem banho e tosa nos finais de semana. Se raça vencesse jogo, o maior patrocinador de futebol seria a Ração Pedigree.
O episódio de ontem foi uma lástima, mesmo que se tratando de um mero evento esportivo. Isso porque ele ilustra nossa singular sina histórica. Depois de mais de um século, desde que o Barão de Coubertin criou os jogos olímpicos da era moderna, o país do futebol continua a esperar pela escalada de nossos caneludos (e caneludas) ao posto mais alto do pódio. É como nossa velha promessa do país do futuro que nunca chega. As olimpíadas são a oportunidade de ver nossa maior especialidade achincalhada, em processo de humilhação pública e periódica, já agendada no calendário mundial. Depois do vexame masculino na terça-feira, a honraria pareceu ter ficado nos pés de quem melhor sabe embalar e fazer crescer um sonho. Mas nossas atletas de raça caíram no discurso fácil de que o sangue brazuca correndo nas veias seria combustível mais que suficiente para a vitória. Trocamos a técnica pelo “deixa comigo”. Enquanto nossas garotas trocavam palavras de motivação num intervalo em que a equipe médica teve de entrar em campo, nossas rivais foram conversar com sua técnica. Aquele momento ilustrou todo o contraste do jogo e foi um prólogo do triste desfecho. Parafraseando um dito famoso, o mundo não será salvo (nem vencido) pelos bons ou pelos que têm raça, mas sim pelos eficientes.
Nossa condição de medalhistas de bronze parece ser nossa herança secular. Com tantos menestréis disponíveis em nosso país musical por natureza, ficou a cargo de uma banda de rock, o Ultraje a Rigor, compor as duas maiores ladainhas pop a respeito de nossa condição existencial: “Inútil” e “Terceiro”. Como diria o José Simão, “somos campeões em medalha de bronze”.
Seguidos batalhões de superstars da bola, mitos das quatro linhas, Aquiles da pelota, foram de tempos em tempos escalados para viajar ao redor do mundo e sucumbir perante oponentes que formaram uma galeria de desafetos históricos, algozes insuspeitos de um grupo tido por toda uma nação como verdadeira legião de heróis. Um a um, os clãs de estrelas da bola foram e voltaram surrados, com o milionário rabo entre as pernas de poderosas e patrocinadas panturrilhas. Dessa vez, achávamos que seria diferente. Aliás, todas as vezes achamos que será diferente.
De quatro em quatro anos, nos acomete a expectativa e a sensação do “agora vai!”. De novo não foi. Ou melhor, foi e voltou de mãos e pés abanando, como em todas as outras vezes olímpicas. Ironicamente, o esporte que é símbolo do orgulho macho quase viu chegar pelas mãos das mulheres a honra maior da inédita medalha de ouro olímpica.
A falta de zelo com o abdômen proeminente pela cerveja sempre foi compensada pela vaidade de possuir a seleção principal do esporte rei. Vaidade hidratada a levedura e lúpulo, dilatando os números da fita métrica, ejaculados em latinhas de alumínio fáceis de amassar, para dar ainda maior sensação de virilidade quando pressionadas simultaneamente a um bom e rotundo arroto. Tanto melhor quando feito na frente da TV enquanto a mulherzinha prepara uns tira-gostos. Pois a mulherzinha cansou do fogão, tirou o avental, botou a chuteira e mirou no saco gordo e grotesco do chamado “chefe de família”. Acertou na virilha.
A quinta-feira amanheceu com ares de morte anunciada de uma vaidade imbecilizante, de um orgulho que até pouco tempo era restrito a quem tinha pêlo na cara. Torcedor é alguém que quer se sentir orgulhoso sem fazer nada, apenas torcendo para que outros façam por ele. E o histórico dessa paixão condena. Desde sempre, o torcedor atribui a vitória de seu time à raça: duplo engano, porque até ratos têm raça; e também porque ficam aglutinados em torno de um mesmo emblema pessoas sem um mínimo de afinidade genética ou mesmo intelectual. Já a derrota sempre é considerada uma fatalidade do acaso ou do “Filha da pu-ta! Filha da pu-ta! Filha da pu-ta!” do juiz. Não passa pela cabeça do torcedor que a tal raça é, na verdade, uma soma de cifras vultosas. Chame um craque internacional para jogar no seu time apenas pelo "amor à camisa" e periga você apanhar dos guarda-costas. Há mais “raça” num jogo de futebol de várzea assistido pela família do que num duelo de titãs patrocinado pela Nike. Os machos de verdade estavam sendo torturados nos porões da ditadura enquanto os de mentira vibravam pelo tri. Agora esses pseudo-testoronizados quase tiveram de engolir, com boas doses de Alexander, um triunfo que (acreditavam) deveria ser por direito da chamada “seleção principal”. Quem é a seleção principal agora? A do bronze ou a da prata?
E não vale a justificativa de que, no caso do futebol, raça não se refere a características somáticas semelhantes e sim a força de vontade: tanto em um caso quanto em outro, este aditivo é uma falácia. Senão, Adolf Hitler seria imperador do mundo e Ed Wood o maior cineasta de todos os tempos.
A enésima vez em que o Brasil perde uma medalha de ouro olímpica no futebol chega tornando nossos ídolos tão falsos quanto os produtos piratas fabricados em profusão no país sede. O típico macho tupiniquim está de quatro. Pastando no gramado onde antes pisava soberbo.
Acabou. Game over. Infelizmente para ambos os sexos. E para todas as raças.


Mario Lopes

Nenhum comentário: