Desaforadas

A pauta dos incomodados


Isaias, o Síndico:
- Tudo pronto para começarmos? O que estamos esperando?
Dona Sandra do 53:
- Ué, que seja definido um secretário para redigir a ata.
Isaias, o Síndico:
- E quem se prontifica?
Raul do 22:
- Olha, na boa, mas o único daqui que tem boa letra é o Jair.
Isaias, o Síndico:
- E cadê o Jair?
Dona Sandra do 53:
- Atrasado como sempre.
Isaias, o Síndico:
- Bom, não vamos poder esperar. Quero saber se temos quorum.
Lígia, a subsíndica:
- Estamos em 17 proprietários. Tem sim. Só falta o Jair e aquele lá do 43.
Seu Armando, do 12:
- Aquele lá nunca vem mesmo.
Dona Anésia, do 41:
- Claro, né. Ele tá é fugindo de uma chamada de atenção em público por causa daquele som alto.
Clarice do 55:
- Aliás, poderíamos começar a reunião falando dele, né? Pois tem ooooooutros sons altos que incomodam mais ainda.
Alaor do 15:
- Que outros sons altos?
Clarice do 55:
- Ah, Alaor, não se faça de desentendido. Todo mundo ouve, duvido que só você que não.
Isaias, o Síndico:
- Pessoal, não vamos entrar em discussão entre nós. Todos estão cientes do que a Clarice está dizendo?
Renato, marido de Clarice do 55:
- Ora, Isaias, vamos parar de nhem-nhem-nhem. Somos todos adultos e não se fala de outra coisa aqui no prédio. Somos em poucos moradores aqui. As paredes têm ouvidos.
Clarice do 55:
- E olha que nós nem somos vizinhos de porta daquele lá.
Isaias, o Síndico:
- Eu vou tentar traduzir a reclamação de vocês para os demais, caso alguém não saiba do que estão falando. Senhores condôminos, alguém aqui ouve sons à noite do apartamento 43 que incomodam?
Efigênia do 32:
- Não tem quem não ouça, Isaias. Faça-me o favor, todo mundo sabe do que estamos falando aqui.
Clarice do 55:
- Ele acaba com o sono da gente! Sabiam que eu já estou sofrendo de insônia?!
Seu Zeca do 12:
- É uma gemeção danada. O prédio inteiro ouve.
Dona Zila do 47:
- E arrasta móveis, balança a cama, não tem condições.
Alzira do 24:
- Se ainda fosse só de noite, tudo bem, mas às vezes o esfrega-esfrega vai o dia todo. Não dá nem pra ver televisão.
Seu Nestor do 45:
- Eu até passo vergonha com as minhas visitas.
Isaias, o Síndico:
- Alguém já tentou falar com o rapaz?
Dona Selma do 44:
- Eu tentei, mas daí a gente toca a campainha e eles ficam quietinhos, como se ninguém estivesse em casa. Dali a pouco começa toda a gemeção e gritos de novo.
Clarice do 55:
- Acho que pior que a gemeção e os gritos é o que eles falam. Umas coisas sem compostura, um palavreado sujo, coisa de gente sem vergonha!
Seu Antero do 51:
- Eu aconselho que os vizinhos dos lados e de cima e de baixo batam nas paredes.
Luizão do 42:
- Como se a gente não fizesse isso. É como a Dona Selma disse: a gente bate, faz silêncio por um tempo, depois começa tudo de novo.
Isaias, o Síndico:
- Gente, então precisamos tomar alguma atitude.
Luizão do 42:
- Sim, mas qual? Multa?
Isaias, o Síndico:
- Não sei. Temos multa pra som alto, mas eu não sei se isso se aplica a gemeção.
Dona Sandra, do 53:
- Claro que se aplica! E gemeção por acaso não é som alto?!
Isaias, o Sindico:
- Calma, Dona Sandra. Ele pode recorrer e eu não posso simplesmente escrever “multa por gemeção” no boleto de condomínio dele. Isso dá até processo por danos morais.
Renato, marido de Clarice do 55:
- É a gente que tem de processar ele por danos morais! Eu tenho um primo que é dono do apartamento 41 e botou à venda, só que perdeu de vender porque um casal visitou aqui bem na hora de uma gemeção dessas e acabou desistindo. Isso merecia era processo por perdas e danos!
Raul do 22:
- Então vamos processar esse aí!
Isaias, o síndico:
- E como vamos provar? A gente traz o juiz aqui na hora do rala-e-rola por acaso?!
Dona Anésia do 41:
- Não vai ser preciso. Temos provas.
Isaias, o Síndico:
- Que provas?
Seu Armando do 12:
- Eu gravei tu-di-nho!
Isaias, o Sindico:
- Seu Armando, mas isso é invasão de privacidade!
Seu Armando do 12:
- Claro que não. O som está aí nos corredores pra quem quiser ouvir.
Efigênia do 32:
- Verdade, pior pra mim que tenho filha pequena.
Isaias, o Síndico:
- E cadê a gravação, Seu Armando?
Seu Armando do 12:
- Está aqui nesse meu gravador. Posso soltar a fita?
Isaias, o Síndico:
- Po-pode, Seu Armando, claro.
Rapaz do 43 e parceira:
- Hmmmmm... Hmmmmmmmmm... Vai... mexe... Aaaaaaaaaaaai!... Gostosooooo!!!!...
Isaias, o Síndico:
- Pode parar, Seu Armando, já foi o suficiente.
Renato, marido de Clarice do 55:
- Desliga logo, Seu Armando, cadê o respeito pela minha mulher e pelas senhoras presentes?!
Seu Armando do 12:
- Calma. Pronto, desliguei. Não é culpa minha, o botão tá com problema.
Alcides do 53:
- Pessoal, vocês não estão percebendo o que está acontecendo aqui?! Estamos todos sendo vítimas de um mesmo pecado capital. Alguém sabe qual é?
Condôminos:
- ...?
Alcides do 53:
- A luxúria, gente, a luxúria!
Dona Zila do 47:
- Isso mesmo, Seu Alcides. Eu até coloquei aquele lá nas preces da novena, mas não tem jeito. Vai parar no condomínio do capeta mesmo.
Raul do 22:
- Gente, vamos deixar mais prática essa reunião, depois a gente discute o sexo dos anjos.
Dona Zila do 47:
- Ai, que heresia!
Raul do 22:
- Desculpe, Dona Zila, eu disse “sexo dos anjos” no sentido metafórico, com todo o respeito. E aí, Isaias, vamos ou não vamos usar essa gravação do Seu Armando?
Isaias, o Síndico:
- Bom, não sei se vai servir como prova, mas todos estão de acordo que devemos abrir um processo? Levante a mão quem for a favor.
Lígia, a subsíndica:
- ...15, 16, 17. Pronto, 100% de adesão à proposta de processo.
Isaias, o Síndico:
- Jair, até que enfim você chegou.
Jair do 33:
- Desculpem, gente, boa noite. Eu estava de hora extra hoje.
Isaias, o Síndico:
- Sente aí e comece a redigir nossa ata por favor. A primeira decisão da noite é a de abrir um processo contra o condômino do 43.
Jair do 33:
- Aquele da gemeção? Mas logo agora que ele está saindo do condomínio?
Isaias, o Síndico:
- Como assim, Jair?
Jair do 33:
- É, ele comprou uma dessas casas de condomínio fechado em Santa Felicidade. Parece que vai casar, não sei. Só sei que vi ele no celular marcando mudança pro sábado que vem. Tá, mas processo por quê?
No sábado seguinte, o morador do 43 mudou-se com uma mestiça de parar o trânsito e nunca mais houve reclamação nem por som alto nem por gemeção. Isaias cancelou a reivindicação de processo levantada pelos moradores, Dona Sandra nunca mais precisou usar a vassoura para bater no chão pedindo silêncio ao vizinho de baixo, Lígia aposentou o copo que usava para ouvir através da parede, Dona Anésia não mais teve de recorrer ao Google para procurar o significado das palavras obscenas que ouvia de vez em quando, Raul parou de cronometrar a duração das seções de sexo, Alaor parou de se masturbar ouvindo os sons que ecoavam pelo vão central do prédio, Efigênia não mais ficou espionando para saber quem eram as parceiras do ruidoso condômino, Seu Zeca parou de escrever bilhetes malcriados que colocava por baixo da porta do rapaz, Seu Nestor parou de passar vergonha com as visitas, Dona Zila ficou na curiosidade de saber onde poderia comprar móveis tão resistentes, Alzira passou a conseguir assistir televisão e a descobrir que os sons do apartamento vizinho eram mais interessantes, Dona Selma parou de deixar o roupão e os chinelos de prontidão para o caso de ter de ir bater na campainha do gemedor no meio da noite, Seu Antero recobrou sua auto-estima com os tradicionais doze minutos de sexo três vezes por semana, Luizão viu dissipar seu dilema de dar uma dura no polêmico vizinho ou perguntar qual seu segredo, Seu Armando deixou as gravações guardadas em fitas K7 que ouve quando dá saudade, Alcides nunca mais ouviu da mulher o pedido para ir a uma clínica de disfunção erétil, Renato parou de ligar o som alto para tentar abafar os grunhidos do rival de performance e as reuniões de condomínio ficaram tão chatas que Jair brinca de jogo da velha consigo mesmo enquanto os moradores discutem sobre a instalação de sensores de presença nos corredores. E Clarice agora tem muito mais insônia do que antigamente.


Mario Lopes