sexta-feira, 20 de novembro de 2009

O Divino Silêncio


Tomas era um belo rapaz que aprendera, a muito custo, viver sua vida prazerosamente.
Durante sua gestação, Márcia, sua mãe, sentia que carregava em seu ventre o que haveria de mais valioso em sua vida e na de seu marido. Aproveitaram juntos cada segundo dos nove meses tão esperados. A ausência de náuseas e dores de cabeça, o pouco inchaço e os chutes delicados do bebê foram para o casal como que os prelúdios de uma vida serena.
O bebê nasceu lindo e extremante saudável. Perfeito, como o esperado.
Dormia noites inteiras, mamava sempre nos mesmos horários e raramente chorava. Simpático, sorria no colo de qualquer um e não se importava em ficar longe da mãe como outra criança.
Era espertíssimo e curioso. Tudo o interessava.
Tomas aprendeu cedo a andar e, antes de completar um ano, já corria pela casa extasiante. Porém, Márcia e o marido percebiam que, apesar de sua esperteza, havia algo de errado com o garoto. Ele não esboçava reação a ruídos e não “atendia” quando o chamavam. Não reagia aos chamados da mãe. Não parava muito tempo em frente à TV e os seus brinquedos que emitiam sons não o entretiam.
Tomas já fazia de tudo, mas ainda não falava.
Quando fez um ano, e ainda não tinha emitido uma palavra, seus pais o levaram no médico, já preocupados com o diagnóstico quase óbvio. Mesmo estando preparados para a má notícia, não contiveram o susto ao ouvir da boca de um médico que seu filho tinha um problema. Seu primeiro e único filho, que nascera tão lindo e aparentemente saudável, escondia um defeito triste que o privaria de sentir uma das cinco maiores delicias que o corpo humano oferece.
A mãe chorava ao pensar que o filho nunca saberia o que é sentir o som aveludado de um violino, ou o drama de um violoncelo. Que nunca ouviria o canto dos pássaros e o frescor do barulho das águas. Tomas não entenderia o que é som. Talvez até nem sentisse falta, tão acostumado estaria com sua vida silenciosa, mas ao crescer sentiria o fardo de ser diferente. Se ele não tivesse que se relacionar, ir para a escola e fazer amigos, talvez nem percebesse que não era como os outros. Porém, caso se privasse de tudo, não teria uma vida propriamente dita e estaria sendo enganado para o resto da vida.
O casal conversou com um psicólogo especialista e concluíram que, para o melhor desenvolvimento do menino, a escola normal seria mais conveniente que a especial.
Foi assim que, aos cinco anos de idade, ele foi pela primeira vez para a escola e passou a interagir efetivamente com outras crianças. No início, a adaptação foi difícil, mas com o tempo e a colaboração das professoras, Tomas passou a ser visto como um bom amiguinho, pois era participativo e sociável. O tempo passou e Tomas continuou a estudar em escolas normais sem grandes dificuldades.
Já adolescente, o garoto passou a, timidamente, mostrar interesse por meninas, em especial por sua velha amiga, Beatriz, que o acompanhou desde o jardim de infância. Eram inseparáveis em todas as atividades escolares, passavam o recreio juntos e de quando em vez visitavam-se nos fins de semana. Porém, Tomas percebeu que a amizade havia se tornado um sentimento mais forte, do qual ele não poderia escapar. Temia que ao expor seu verdadeiro amor, não fosse correspondido e perdesse a valiosa amizade que havia conquistado ao longo dos anos.
Tomas sentia algo tão inexplicável e forte pela menina, que, durante as aulas de canto, em que Beatriz se destacava pelo talento, acreditava piamente ouvir sua voz aveludada ecoando em sua mente. Era tão bom ouvir aquela voz, que pensava ser capaz de passar o resto da vida, deitado sobre a grama de olhos fechados, apreciando.
Como era gostoso se deleitar com tanta doçura. Som divino, inexplicável, único, ainda mais para alguém que nunca ouvira um ruído sequer. O paraíso em ondas sonoras.
Tomas a ouvia em silêncio, pois tinha medo de que, por mais que explicasse exatamente qual era a sensação de ouvir, o chamassem de mentiroso, afinal nascera surdo e vivia surdo. Às vezes, pensava estar enlouquecendo por não ouvi-la falando, mas apenas cantando. Ela mal acabava o canto, reinava o silêncio.
Morria de curiosidade em saber como seria a sonoridade daquela voz que tanto o encantava. Imaginava como seu nome ou um “eu te amo” seria pronunciado naquele tom angelical acima da compreensão humana.
Porém, o destino não quis que ele continuasse a se deleitar com aquele canto e levou Beatriz para longe de sua vida. Tomas sabia que ela sempre fora intocável, assim como sua voz, e que aparecera para lhe dar a maior dádiva que poderia ganhar. Como um anjo, Beatriz se fora e deixara todo o caminho iluminado.
A cada momento, quando o silêncio dominava seu coração, uma voz no seu âmago cantava o som divino, inexplicável e único. O som dado a ele por Beatriz, a beata que partira sem saber ter feito um milagre.
O som que já não era presente, e sim apenas e tão somente, uma lembrança inaudível.




Letícia Mueller

Um comentário:

Anônimo disse...

Vou tomar a liberdade de usar um adjetivo contraditório para descrever o texto: tocante.
Beijo, Letícia.

Mario