Macho que é macho vai na parada gay Três amigos conversavam numa mesa de bar sobre suas aventuras de infância, gabando-se dos feitos corajosos que viveram desde os tempos de meninice. Alberto recordou da vez em que apostaram quem iria passar uma noite toda no cemitério, Everton emendou com o dia em que aceitaram o desafio de entrar no quintal da bruxa vingativa do bairro, e Sidney voltou a narrar o episódio em que perderam a virgindade no puteiro em que os homens da cidade juravam que as putas capavam com os dentes quem broxasse.
Enquanto as risadas feneciam após esgotarem o repertório de façanhas, Alberto indagou sobre o estilo de vida que adotavam no presente: os três casados, cultivando a barriga, sem novas aventuras, sem nada a comemorar ou acumular em fatos que gostariam de relembrar no futuro, estavam sendo os “sem-história”, e em nada mais lembravam os moleques e adolescentes sempre dispostos a tudo. Sidney concordou, mas também lembrou que aqueles eram tempos que não voltariam mais, foi uma fase, e que nem haveria mais desafio no mundo que pudessem encarar: já não tinham mais idade, há muito que invadiram o campo do proibido e provaram para si mesmos e para o mundo que não temiam nada, que eram macho-chos. Foi aí que Everton, até então acompanhando a história em hipnótico silêncio, contemplando as parcas borbulhas que se levantavam do fundo de seu copo de cerveja, resolveu se manifestar: disse que também concordava com Alberto, que se tornaram aventureiros aposentados, mas que ainda tinham, sim, de provar a si mesmos e ao mundo que eram de fato os macho-chos de outrora, e que, para isso, precisavam cruzar o último limite. Os dois colega ficaram em silencioso aguardo, esperando pela revelação daquele desafio que estava sendo proposto.
- Participar da parada gay.
Sidney e Alberto não se contiveram: enquanto o primeiro gargalhava achando tratar-se de uma galhofa do amigo, o outro conferia o fundo vermelho dos olhos de Everton, certificando-se se ele havia bebido demais. Sem se exaltar, Alberto revidou comentando desconcertado algo que para ele era mais do que óbvio: parada gay é coisa de... baitolas. Mas então veio a justificativa:
- Não, tem de ser muito macho para ir na parada gay. Ir em jogo de futebol no estádio, em boteco, em zona, isso qualquer projeto de macho faz. Comer bolinho de carne vencido, andar na Ipiranga de madrugada, beber whisky batizado com metanol em boate, isso tudo é coisa de frouxo. Se somos machos e não temos medo de nada, este sim é o desafio dos desafios. Vamos ficar entre três milhões e meio de boiolas. Vamos cruzar a Paulista de ponta a ponta no meio daquele exército de queima-roscas. Vocês têm medo?
A dupla se entreolhou sem saber o que responder. Acharam graça assegurando que se garantiam, que nunca nem ao menos tiveram amigo gay e não seria naquele momento que iriam ter medo do “inimigo”. Mesmo que em uma horda de milhões devidamente aparamentados em seus saltos plataforma e montados em poderosos trios elétricos que faziam tremer os Portinari do Masp. Sidney apenas sugeriu que fizessem antes uma estratégia para que a empreitada fosse bem planejada, quando então Everton o interrompeu dizendo que não haveria planejamento porranenhuma, que a parada gay estava acontecendo naquele exato momento e eles deveriam se deslocar para lá sem demora. Alberto fitou seu Orient: 15h15 daquele domingo; depois correu os olhos pela mesa repleta de cervejas e alertou que era perigoso.
- Tá com medo?
Diante da indagação de Everton, Alberto apenas se apressou em beber numa única talagada o que restara de cerveja em seu copo, limpando a boca com as costas da mão e levantando-se pronto para ir à luta.
Meia hora depois, estavam os três em meio à monumental muvuca gay, a maior do mundo. Caminhavam de peito estufado, sem dar trela ao assédio, brincadeiras e provocações. Cruzavam dragqueens colossalmente montadas sem retocar o olhar de afronta. Não abriam a boca, apenas seguiam em frente numa marcha silenciosa que contrastava com os anababescos decibéis de música eletrônica despejados pelos carros de som. Não havia chuva de purpurina, serpentina ou confete que os afetasse. Apenas desviavam o olhar de beijos na boca e outras cenas que consideravam excessivamente repulsivas, mesmo para seus resistentes estômagos de macho-chos.
Como a cerveja acumulada era muita, a bexiga de Everton pediu arrego. Não viu por perto nem banheiros químicos nem bares de portas abertas. Teve de pedir informações à única figura aparentemente hetero que encontrara no caminho: um policial (não, não era um clone do Vilage People como pensara inicialmente). Acabou sabendo pelo homem da lei de que dentro dos trios elétricos havia instalações luxuosas, contendo inclusive suítes com sanitários. Macho que é macho mija na rua, alegaram os outros dois. Mas ele não poderia mijar impunemente no meio de milhões de pessoas, corria até o risco de ser linchado caso o jato atingisse uma meia arrastão desavisada. Ouvira que bichas estocavam giletes nas gengivas, e ele presava muito por segu pingolim para correr um risco desses. Sem aguentar mais, correu para dentro de um dos trios elétricos enquanto seus amigos montaram guarda na porta, de braços cruzados e pose de maus. Minutos depois, Everton surge no alto do imenso veículo, vestido de sunga e asas de anjinho, ladeado por dois go-go boys esmerilhados em suas musculaturas. Everton e Alberto ficaram contemplando-o lá embaixo sem entender, boquiabertos com a cena do amigo dançando e esgueirando-se pelo corpo dos saradões. Everton lhes lançou um olhar gatiado e um beijo, num misto de ternura e despedida. Mesmo sem entender, mas já conformados pela baixa, Alberto e Sidney seguiram pela procissão de pederastia.
A dupla havia entendido que aquela era uma cilada, só podia, era o Everton querendo assumir e sem saber como, trazendo os dois colegas para dentro do purgatório luxuriante do qual fazia parte. Mas macho que é macho não arreda de um desafio, portanto resolveram prosseguir até o fim do trajeto, mesmo porque aquela era a direção de suas casas. Já haviam cruzado meia passeata quando veio em direção aos dois amigos uma serpente chinesa gay: várias bichas fazendo trenzinho debaixo de uma lona multicolorida, tendo à frente uma cabeça de boneco gigante que lembrava um leão excessivamente maquiado. Aos poucos foram sendo cercados pelo estranho brinquedo coletivo. Ficaram em posição de alerta, virados de costas um para o outro e já se preparando para o confronto. As voltas dadas pela serpente, aliadas ao mantra hipnótico do poperô, lhes davam uma sensação de vertingem progressiva. Quando Sidney olhou para trás, Alberto havia sumido. Gritou pelo nome do amigo sem obter resposta. Viu então a serpente se afastando e, ao final dela, alguém levantar a lona: era Alberto, agora com o rosto borrado de uma maquiagem mal feita, agarrado na cintura do parceiro à sua frente e mandando um beijo de adeus ao amigo. Alberto era agora o rabo da serpente.
Solitário em meio à multidão de bibas, Sidney ficou raciocinando com sinapses relâmpago para tentar entender o que acontecera. Deduziu que aquela era uma cilada de Everton e Alberto, claro, os dois queriam trazê-lo para aquele universos de prazeres bizarros mas sem saber como convidá-lo. “Aqueles dois nunca me enganaram”, pensou. Agora já associava a cumplicidade da dupla na infância como puro troca-troca. Sidney passou a acelerar o passo. Quando se deu conta já estava correndo. Ou melhor, tentando correr, pois seus passos eram sufocados pelo contingente de gays que brotava da terra aos milhões. Já não conseguia mais passar, estava preso enquanto o touch-touch martelava seus tímpanos. Seu rosto agora era pressionado entre tetas fartas de silicone e espartilhos lantejolados. Não tinha para onde fugir. Aos poucos era sufocado. Aos poucos era tragado e absorvido. Não havia escapatória.
22h47, Avenida Paulista. Os últimos remanescentes da passeata já dão traços de fraquejar e levantar dos meio-fios para pegar o rumo de casa. No chão, um mar e purpurina, leques, adereços e preservativos. Um tampo do bueiro se abre e Sidney vai saindo aos poucos de dentro dele, ainda trêmulo e com o olhar ressabiado, fazendo uma varredura visual de toda a Paulista. Ele fica em pé, limpa-se, batendo os braços para tirar a sujeira daquele bueiro fétido. De repente, alguém põe a mão em seu ombro e ele se vira. É a “bruxa vingativa do bairro”, a mesma cujo quintal o trio invadira na infância.
Mario Lopes