sábado, 20 de junho de 2009

A borra da menarca


No início do século passado, havia em Angicos, um dos mais modestos e áridos vilarejos da caatinga sergipana, uma menina de 11 anos chamada Jucelina que protagonizou uma breve e marcante história responsável por torná-la uma lenda local. Quando ocorreu sua menarca, abandonou correndo suas brincadeiras no pátio de chão batido da casa de sua avó, indo chorosa ao encontro de sua mãe e deixando as primas a olhá-la assustadas pelas frestas de janelas e portas no humilde casebre de pau-a-pique. A mãe limpou-a com um pedaço de pano e explicou à menina que agora ela já podia dar a luz. Jucelina não entendeu mas achou graça na mancha vermelha que estampou o pano, dizendo que se parecia com uma ponte torta. A mãe mal deu bola à observação da filha. Porém, menos de uma semana depois, toda a comunidade se viu isolada do resto do mundo por conta da queda de sua única ponte, matando e ferindo uma caravana de passantes que visitavam parentes vinda do semi-árido cearense.

Numa terra ávida por milagres, para muitos aquilo pareceu ser um sinal de talento premonitório da menina. Tia Juméria recordou de uma família árabe cuja matriarca afirmava poder ver o futuro pela borra do café. Não tardou a vislumbrarem ali um possível paralelo. Para tirar à prova os supostos poderes de Jucelina, tia Juméria se prontificou a cuidar da menina na época de seu sangramento e a tirar dela uma nova leitura visual da mancha que se formaria em seu paninho de higiene.
No mês seguinte, sem entender muito o que se passava, Jucelina apreciou o borrão e apenas disse que estava vendo algo parecido com um passarinho chorando. Passaram-se dias de especulação na comunidade, alguns dizendo que Jucelina seria enfim vista por todos como apenas uma menina sem poderes, e outros tentando fazer suposições sobre o que a figura de sangue representava: seria o Espírito Santo triste com o vilarejo? Ou então um pássaro de mau agouro trazendo maldição para seus habitantes? Nem uma coisa, nem outra. Quando caíram os primeiros pingos de chuva depois de uma estiagem que se arrastava por meses, todos entenderam o que as lágrimas de um animal aéreo significavam.

Um grupo de céticos ainda estava inconformado com a santificação à qual a menina estava passando por duas simples coincidências. Mas as leituras da borra íntima davam sinais de que iriam prosseguir, e a mancha do mês seguinte foi percebida por Jucelina como uma flor murcha. Cinco dias depois, falecia de tifo a jovem mais bonita de Angicos e região. Juciara foi velada e sepultada com a presença de grande parte do vilarejo, mas o que mais se conversava nesses encontros era mesmo a nova façanha de Jucelina.
A crendice só crescia mais e mais, e toda previsão encontrava depois algum fundamento natural ou fabricado por alguém da população. Quando, por exemplo, ela viu na mancha uma vaca sem uma das patas, as beatas perceberam a lógica premonitória de que uma das vigas que sustentavam o teto da igreja deveria estar cedendo. E, de fato, havia uma realmente carcomida por cupins, colocando em risco os fiéis e o pároco.

Assim, a comunidade toda passou a viver em função das menstruações de Jucelina. Todo mês, aguardavam as regras apreensivos em frente à sua casa. E sempre encontravam alguma lógica para suas leituras de menina-mulher. As colheitas e até matrimônios passaram a ser guiados pelos sinais surgidos em cada sangramento. Em dada ocasião, sua menstruação demorou a ocorrer, suscitando desconfianças na população quanto à sua pureza ter sido rompida e ela estar grávida. Mas logo desceu o sangramento e voltou o ritual de leitura da borra no pano de limpeza íntima.

Mas, tempos depois, quando a comunidade já estava acostumada com o ritual e sufocavam a menina de presentes, aconteceu uma surpresa desconcertante para todos. Ao ver a mancha formada, Jucelina, com os olhos vidrados e ao mesmo tempo lúcidos, disse pela primeira vez aquilo que para todos deixara de ser óbvio: “estou vendo sangue”, ela disse. Tia Juméria tentou nova chance, mas a menina agora só conseguia ver o que todos viam: sangue. Repetiu e repetiu tanto aquelas palavras que todos se convenceram de que Jucelina havia perdido seus poderes. Voltaram para casa revoltados, carregando debaixo dos braços seus presentes, porcos e galinhas. A cidade adormeceu sob o manto frio de decepção.

No dia seguinte, foram despertados por Corisco e seu bando, que fizeram naquele pedaço do sertão sergipano o extermínio de toda a população, num episódio que ficou reconhecido na posteridade como a mais fulminante sanha do cangaço. E também a mais sangrenta.


Mario Lopes

2 comentários:

Anônimo disse...

adorei Jucelina e suas borras íntimas. Adoreeeei *.*

beijos, Leticia

Anônimo disse...

Obrigado Letícia. Se algum dia também achar um "desenho" interessante, fique alerta: pode ser que você tenha poderes premonitórios. rs ;-)
Beijo.

Mario