Nos últimos tempos, ela nada lia ou escrevia. Estava com sua mente isolada em um mundo vazio que a levou inconscientemente a uma hibernação mental. Ela sentia seu cérebro como que congelado e seu maior medo era que com o menor sopro da inspiração, o calor de sua ânsia degelasse seus emaranhados encefalados, e no lugar do que antes havia um cérebro, aparecesse uma geléia de neurônios. Ela tinha medo de nunca voltar a ser como era.
Não tinha tempo para pensar. Vivia um ano difícil que a impedia de fazer coisas que realmente contribuíssem para o seu acúmulo de idéias. Na verdade, ela até pensava, mas só naquilo que milhares de “vestibulandos” eram obrigados a saber para passar na mais injusta prova seletiva dos culturalmente programados. Afinal, seu sonho era ser escritora e não via utilidade prática em ter o conhecimento da forma de reprodução dos pinheiros ou da sinfilia das formigas. Também ignorava o uso prático das assombrosas matrizes, com seus milhares de cálculos para chegar a resultados imaginários. A ela não interessava o grau de inclinação da Terra em relação ao sol, ou o modo de produção de civilizações que a muito tempo não existem. Aprendia as fórmulas das substâncias e de todas aquelas minúsculas partículas que formam partículas ainda mais minúsculas. Esforçava-se para entender leis da física, mas algumas delas se negavam a ser entendidas por ela. Eram tantos assuntos que a sua caixa de memória já estava saturada.
Mas não pense que isso serviu como empecilho para seus estudos. Ela “entendia” a matéria mesmo sem entendê-la e resolvia os 120 exercícios diários, sempre com uma margem de acerto superior a 90%. Não sabia como acertava as questões. Só sabia que o início da realização do seu sonho dependia de todo esse seu sacrifício.
Mas não pense que isso serviu como empecilho para seus estudos. Ela “entendia” a matéria mesmo sem entendê-la e resolvia os 120 exercícios diários, sempre com uma margem de acerto superior a 90%. Não sabia como acertava as questões. Só sabia que o início da realização do seu sonho dependia de todo esse seu sacrifício.
Assistia a todas as aulas, não faltava às revisões e aulas extras. É lógico que tudo isso era um fardo que a deixava cansada e deprimida, mas ela aprendeu a curar sua doença com o menor dos males: as aulas de Português, aproveitava os 45 minutos dedicados a esta matéria para respirar e guardar ar para que conseguisse sobreviver a todas as outras “inimigas”. As palavras, letras, verbos e textos eram como que seus alicerces, não podia perder o estímulo por elas ou se não fracassaria em qualquer projeto de sua vida.
E assim, ela se manteve durante todo o ano. Sentia como se estivesse sendo programada por conhecimentos irrelevantes e, a cada mês, olhava para si mesma e via-se como mais uma “bitolada”. Ela perdia sua essência. Para completar seu quadro, previa a injustiça a que seria acometida, vendo pessoas que apenas estudavam realmente um ano de sua vida (aquele) passarem no vestibular, enquanto ela, que desde a primeira série se esforçava e tirava boas notas, sendo reprovada.
Tudo isso acontecia junto com o seu pensamento de que não era mais a mesma. Sentia-se vazia. As boas idéias, os ventos que antes sopravam tão frequentemente e que se confundiam com sua respiração, ficaram escassos. Perdera o hábito da leitura e, consequentemente, os seus recursos linguísticos antes originais e inovadores, tornaram-se monótonos e repetitivos.
Nas poucas horas livres, seu maior anseio era escrever, mas tinha ojeriza de que as suas suspeitas se mostrassem verdadeiras. Não! Ela não aceitava isso! Queria ser escritora, nada mais. Mesmo tendo consciência de que só com muita dor na mão de tanto amassar papéis, dor de cabeça na busca da palavra certa, horas perdidas com idéias que a princípio pareceram boas, mas que no decorrer da escrita se mostravam péssimas... Só com muito sangue ela seria uma boa escritora. Sim, ela sabia disso.
Mas, tinha medo da dor... Da dor e da simples idéia de senti-la. Tinha medo da frustração por si mesma, preferia deixar as coisas assim, sem sonhos alcançados, mas pelo menos sem grandes derrotas.
Com medo de cair, ela se negou a chegar ao topo e sentir a glória da vitória. Ela abdicou do seu papel de ser ela mesma, e quis deixar um legado aos que não tem medo de perder, nem ganhar.
E aqui jaz seu primeiro, último e único texto.
Letícia Mueller
E aqui jaz seu primeiro, último e único texto.
Letícia Mueller
Um comentário:
Bases de Arhenius é toda substância que em solução aquosa libera como único anion o íon OH- denominado hidróxido.
Essa foi uma das bobagens que acumulei no meu HD mental para passar no vestibular, e que hoje não me serve para mais nada, sendo que eu só queria era fazer o que a sua personagem queria, Letícia. Aliás, fica claro ali a porção auto-biográfica da coisa.
Só nunca se auto-sabote, essa transição e esse medo da continuidade (e do ápice) já foram muito bem tratados nas obras do Marcelo Rubens Paiva, mas ele encoraja o movimento, logicamente, portanto siga adiante. O seu epitáfio certamente merece linhas bem mais felizes, Letícia, mas com o mesmo talento expresso neste post.
Beijo.
Mario
Postar um comentário