sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Precisamos de um Milagre




Tinha alguma coisa esquisita se passando lá no céu.
Todos estavam parados olhando. Era intervalo, e marmanjos e criançinhas se misturavam no enorme pátio do colégio religioso. Cada um, com seu pescoçinho erguido, olhando para as nuvens e tentando decifrar o que acontecia no alto de suas cabeças.
Freiras, professores e professoras, coordenadoras, a tia da cantina, a mocinha da limpeza, o inspetor, o segurança... não tinha um que não mantivesse seus olhos colados no firmamento azul e branco que os cobria.
O que acontecia lá no alto? Ninguém saberia dizer e nem ousava tentar.
Limitavam-se a deixar a boca aberta, o queixo caído e os olhos arregalados, como se aquilo já bastasse como explicação. Não havia o que falar.
O certo seria que todos tivessem saído em disparada no momento em que tudo começou. Afinal, o barulho que se sucedeu à explosão deixaria qualquer pessoa normal com os pelos arrepiados e o coração em disparada, tamanho o desespero.
Mas então, porque aquela calma?
Mesmo depois de um susto em que alguns até chegaram a desmaiar, o povo mantinha-se atento as movimentações aéreas.
A coisa estava realmente esquisita. Do céu azul com nuvens que estamos habituados a ver, restava apenas alguns restolhos. Tudo estava se transformando em um cenário tão absurdo e surreal que talvez não fosse possível nem em filme.
Os espectadores assistiam a tudo de uma maneira um tanto inusitada. Em silêncio absoluto, eles mal se olhavam para checar a opinião do outro e averiguar se alguém ali estava com medo. Geralmente é assim que as pessoas entram em pânico, vendo as outras amedrontadas.
Ouvia-se uns ruídos, mas eles também vinham do céu, assim como qualquer movimentação visível. As coisas estavam tão diferentes que parecia que até aquelas pessoas, ali paradas olhando os acontecimentos, mudavam de alguma maneira.
A cada nova nuance adquirida pelo firmamento, um novo sentimento reinava nos corações dos espectadores, fossem eles idosos como a diretora do colégio, ou imaturos como as criançinhas do pré.
Depois da explosão, a atmosfera ficou negra a ponto de não se conseguir enxergar um palmo à frente do nariz. Ninguém se moveu.
Quando aos poucos as luzes foram novamente aparecendo, o céu, de início azul com poucas nuvens, foi tomado por uma revoada que em um ritmo lento, alterava as cores daquele imenso firmamento.
Um som baixo, quase inaudível, vinha lá do alto. Um zum zum zum tão discreto, que a menor das distrações passaria despercebido.
Ninguém ali procurava entender ou buscar explicações, tão forte a admiração e o encantamento pelo que estava acontecendo. Era como um ato de respeito calar o pensamento, e apenas observar.
Passaram-se várias horas e todos permaneciam ali, calados e estáticos, movendo apenas as pálpebras dos olhos e as narinas. Não havia o menor sinal de cansaço. A senhora com problema de coluna parecia ter esquecido sua doença, e a menina com a perna engessada exibia uma força descomunal. O pátio estava cada vez mais apinhado de gente.
Os pais, avós, irmãos, amigos e responsáveis que foram buscar os seus filhos no colégio surpreenderam-se todos de imediato diante do céu alterado, e como que hipnotizados, juntaram-se ao resto do pessoal e ergueram seus pescoços até onde a natureza permitisse.
Cada vez mais, o céu exibia o que parecia ser um quadro experimental de um artista nervoso, e ao mesmo tempo feliz. Era como se as cores tivessem sido colocadas por um pincel com vida própria, frenético e ansioso, nas mãos de um pintor harmonioso e contente. Um combate entre a arte e o artista, em que ao invés de lutarem um contra o outro, agregavam-se e produziam beleza.
Fora do colégio, já era noite, quase 22h00. Lá dentro, os relógios obedeceram o tempo, e deixaram de funcionar. Mas não fez diferença. Ali, ninguém pensava em horas ou seria capaz de mover seus olhos para outra direção que não fosse o céu.
Quando foi chegando perto da meia-noite, o som que vinha lá do alto foi aumentado lentamente.
Pequenos pontos de luz foram aparecendo em diversos locais do céu, e aos poucos, foi se tornando visível o que afinal estava fazendo com que tudo aquilo estivesse acontecendo.
A música, cada vez mais alta, emocionava a todos. Sinos e instrumentos de cordas harmonizavam com o movimento feito pelas luzes que se acendiam cadenciadamente, como se o maestro do espetáculo fosse uma brisa suave.
Os espectadores, pela primeira vez em horas, começavam a se excitar. A curiosidade fazia o sangue das veias agitar-se e os corações estavam prestes a explodir de ansiedade.
A canção tornou-se reconhecível. Era uma bela melodia natalina, universal, linda. Até o mais dos insensíveis e desumanos se emocionavam com ela.
As crianças buscavam as mãos dos seus pais em meio à multidão. Aquele era um momento para ser compartilhado em família, com seus eternos. Algo inacreditável estava para acontecer, e todos sabiam disso.
A platéia antes estática e calma se movia com impaciência, buscando todos ficarem próximos das pessoas amadas.
A música tocava cada vez mais alto, e por mais que os sons de sinos e violinos fossem incrivelmente reais, a única coisa que se via ao olhar para o céu eram os pontos de luzes e as cores suaves que o enfeitavam.
De repente, os sinos pareceram se agitar e os violinos calaram-se. As luzes do céu se apagaram, e o céu voltou a ficar negro. O badalar era estonteante e soava como se anunciasse a chegada de algo de outro mundo.
Os filhos apertavam as mãos de seus pais, e os pais, apertavam ainda mais as mãos dos seus filhos. Todos os olhares continuavam voltados para o céu.
Até que tudo ficou mudo. Um silêncio arrebatador percorreu o pátio, aumentando ainda mais as expectativas.
Foi então que, subitamente, quando todas as luzes do céu se acenderam, surgiu na imensidão uma das figuras mais populares dos sonhos infantis.
Medindo quase dois metros de altura - e uma barriga tão grande quanto ele próprio - trajando roupas felpudas de um vermelho vivo com as mangas em um branco alvo, um gorro caindo ao lado da cabeça e uma barba branca brilhosa e milenar, o famoso Papai Noel apareceu.
Com seu trenó inteiro enfeitado, e as nove renas – incluindo a do nariz vermelho – o bom velhinho gargalhava ao ver a expressão de espanto de todos. Depois de mostrar seu belo talento em guiar um trenó levado por renas encantadas, ele estacionou seu veículo na imensidão, e com um pulo, saltou para fora, parando bem no meio do pátio do colégio.
Com as mãos sobre a cintura e o peito estufado, Papai Noel mirou cada um dos presentes, exibindo uma expressão de alegria por poder estar ali, pela primeira vez.
As crianças mais novas batiam palmas entusiasmadas, já pensando que presente pedir; os adultos se olhavam entre si, como se hesitassem em acreditar no que seus olhos mostravam; as crianças um pouco mais velhas cutucavam seus irmãos e tiravam sarro, lembrando de quando lhes fora dito que Papai Noel não existia.
Porém, todos em uníssono, compartilhavam do mesmo sentimento de encantamento e magia por estarem próximos a uma figura tão respeitosa, querida e polêmica: o Papai Noel.
O senhor de barbas brancas e roupa vermelha ficou parado assim por algum tempo, apenas observando os que ali estavam presentes, sem falar uma palavra.
Uma menininha Julia explicou para o irmão que o Papai Noel não sabia falar português porque vinha do Pólo Norte.
- Então como ele entende as nossas cartas?
- Os anõezinhos que traduzem para ele seu derdis.
- Mas então porque ele não trouxe um tradutor para falar com a gente?
A menininha calou-se, sem resposta.
Quase todos os adultos esperavam por uma espécie de sermão do bom velhinho, algo criticando o capitalismo e relembrando o espírito natalino. Alguns achavam que ele falaria sobre aquele papo de nunca deixar de ser criança e acreditar em contos de fadas.
Pensando nisso, um jovem estudante confessou pra seu colega:
- Cara, Papai Noel eu meio que sempre acreditei. Mas que ele não me peça pra acreditar em fada dos dentes. É bichisse demais, e outra, não faz sentido nenhum.
- E um velho barbudo e pançudo viajar pelo céu com 9 gazelas faz sentido?
Silêncio.
Uma senhora, também admirada com a aparição, lembrou-se de um ocorrido na sua infância, quando ainda menininha, ela discutia com dois meninos da escola que não acreditavam mais em Papai Noel.
- Ele existe sim! Eu sei, eu já vi!
- Para de ser mentirosa, todo mundo sabe que quem dá presente pra gente é o pai e a mãe.
- Não é seu burro! Eu vou provar!
Ela chamou os dois amiguinhos para irem dormir na sua casa, e juntos, eles ficaram escondidos em baixo da mesa, bem em frente à lareira, esperando o velhinho aparecer.
Lembrando do quanto rezou para o papai do céu fazer o Papai Noel aparecer, e de que foi tudo em vão, a senhora decidiu que, assim que o velho de vermelho começasse a dar o seu discurso, ela tiraria satisfações com ele. Porque afinal, ele não aparecera 50 anos antes?
Algumas famílias se abraçavam emocionadas, olhando bem para aquele homem e pedindo em mente que ele os abençoasse.
Quando, enfim, a expectativa era muito e todos esperavam pelo discurso do Papai Noel, ele respirou fundo, acenou para uma criança, deu um pulo e subiu em seu trenó.
Os sinos foram aos poucos ficando mudos e as luzes que formavam praticamente uma constelação no céu se apagavam lentamente. Sobre o olhar indignado de muitos, triste de outros tantos, e de encantamento da minoria, o Papai Noel foi embora sem dizer uma palavra.
A magia se desfalecera, e o público foi indo embora como se tudo não tivesse passado de uma peça de teatro. Só faltavam pedir o dinheiro de volta.
- Que absurdo esse homem! Que falta de educação! Só porque eu queria dar uma palavrinha com ele.
-É sempre assim né. Esses caras da alta nunca dão atenção para gente como nós.
- Exatamente. Isso que eu só ia pedir pra ele dar um toque no meu chefe pra ele dar uma aumentadinha no meu salário.
A senhorinha agarrou a mão da neta e saiu resmungando:
- Velho desgraçado, na próxima eu te pego seu miserável.
Perto ao portão de saída, outro pai olhou para sua mulher, e ainda meio desnorteado, falou:
- A gente tá é precisando de um milagre. Só desgraça, meu deus do céu.
Enquanto isso, ainda encantados e com os olhos marejados em lágrima pela emoção, a pequena Julia, de mãos dadas com a mãe e o irmão, olhou para ele e disse:
- Mano, acho que Papai Noel sabia falar português sim.
-É, também acho.
E deixaram o pátio, não sem antes acenar para o céu com um sorriso inocente nos lábios.


Leticia Mueller

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