Nada como a arte mais impactante do mundo para gritar informações que às vezes nos negamos a aceitar. Os opostos podem não se atrair de forma magnética e absoluta, porém se seduzem de maneira involuntária e, aparentemente, inexplicável. Mas só aparentemente. Da tela do cinema transbordam exemplos que já estão impregnados no inconsciente coletivo (vide a enquete “Qual o casal mais inviável do cinema?” da comunidade Centro Europeu Cinema Digital:
http://www.orkut.com/CommPollResults.aspx?cmm=29124951&pct=1180236722&pid=442073868).
Em King Kong, a delicada personagem de Naomi Watts apaixona o gigantão truculento, acerebrado e peludo mais querido da sétima arte; em Geração Proteus, uma máquina sólida e fria copula com a suave e humana Julie Christie, em Terminal, uma aeromoça cosmopolita fica encantada com um homem cujo universo se restringe a um aeroporto. Os exemplos continuariam indefinidamente: Titanic, A Primeira Noite De Um Homem, Perdas E Danos, Meninos Não Choram, Ghost... daria para fazer um blog só de casais com características opostas.
Na música não é diferente. Sem querer ir muito longe, de Eduardo E Mônica a Romance Ideal, a velha história do amor improvável que acaba dando certo (ou enlouquecendo os amantes) é um clichê inevitável, recorrente e perpétuo. É o Côncavo E Convexo do Roberto Carlos. Poderíamos passear também por outras artes para testemunhar novos exemplos desta bizarra mecânica do desejo, mas fiquemos com o cinema, onde tudo é (por motivos óbvios) mais flagrante.
Seja para abrir ou para fechar diálogos de potenciais casais cinematográficos, a dificuldade é sempre externada de alguma forma, pois é ela que garante o desenrolar interessante da trama e nos faz torcer. Em Orgulho E Preconceito, a heroína afirma categoricamente: “você seria o último homem do mundo com quem eu me casaria”, para logo em seguida sentir-se magnetizada pela boca de seu interlocutor. Em Saída De Mestre, a primeira frase dita pela arrombadora de cofres ao ex-parceiro de seu pai criminoso é “eu já não disse que nunca mais queria ver seu rosto?”, sendo que os dois (obviamente) acabam o filme juntinhos como se aquela frase quisesse dizer justamente o contrário. A regra é repelir para conciliar.
Para complicar ainda mais a situação, os casais iguais parecem sempre fadados a uma relação fracassada. No clássico Era Uma Vez No Oeste, a meretriz de Claudia Cardinale se vê na sina de solitária ao perceber que o bandidão de olhos azuis vivido por Henry Fonda é muito similar a ela, bem como os demais bandoleiros presentes no filme. E o casal mais famoso do cinema, Scarlett Ohara e Rhett Butler de E O Vento Levou, também não leva sorte por, segundo o próprio personagem de Clark Gable, serem iguais demais.
Mesmo que não haja incompatibilidade pelas próprias peculiaridades dos personagens, as forças opositoras acabam vindo de fora. Alguém acredita que Romeu seria tão apaixonado por Julieta, e vice-versa, se não houvesse a objeção feroz das famílias Montecchio e Capuleto? Notoriamente, a famosa incompatibilidade de gênios vem somada a forças adversas do ambiente: não bastasse Julie Andrews ser totalmente avessa ao estilo absurdamente rígido de Christopher Plummer em A Noviça Rebelde, ela ainda tem de enfrentar uma rival ardilosa, sua condição de celibatária e a ascensão do nazismo em solo austríaco. Quanto mais desfavorável o contexto, mais oportunas se tornam as circunstâncias para o enlace do casal. Mais os opostos se atraem. Até no inocente Encantada tudo tem de chegar ao limite do inviável: envenenamento, bruxaria e um dragão gigante, só para levar ao clímax uma circunstância que por si só teria tudo para dar errado. Ou alguém apostaria no enlace de um cético advogado de Nova York com uma princesa de conto de fadas?
A resposta para o mistério da oposição atrativa, que nem cupido parece entender muito bem, não está na sessão de romances das locadoras, mas sim na de documentários. Mais precisamente nos referentes a ciências (?!). Na coleção Cosmos do falecido astrônomo americano Carl Sagan pode ser lançada uma luz esclarecedora sobre o tema. Aparentemente, a explicação não tem nada a ver com glamour ou romance. Einstein afirmou que a menor distância entre dois pontos não é uma reta. E, para complicar ainda mais, sentenciou enigmaticamente que uma reta, no espaço, é uma curva. As duas colocações se complementam. O universo é como um balão inflado, cuja parte de matéria se encontra na fina superfície de borracha. Sendo assim, se você atirar uma flecha no infinito, que sempre avance em linha reta no universo, ela irá descrever uma parábola e acertar... suas costas. Em outras palavras, se você avançar no cosmos para procurar a coisa mais distante que existe nele encontrará a si mesmo. E existe algo mais opositor e complementar a você do que você mesmo? O que procuramos no outro é também nosso avesso, nossas costas.
É zen. É yin yang. Mal e bem, sorte e azar, amor e ódio andam juntos. É como seu tórax e suas costas. Ao contrário do que muitos pensam, as oposições não são facções distantes: céu lá no firmamento, inferno lá debaixo da terra. Estão lado-a-lado. São as famosas duas faces da mesma moeda. Não esqueçamos que a baixíssima temperatura o gelo queima. E que o cúmulo da alegria é chorar de tanto rir.
Os extremos nos são atraentes porque os limites são nossa condicionante genética. A superação é nosso instinto mais primitivo. Desde as bactérias que consistiram nas primeiras formas de vida, fomos evoluindo continuamente. Essa evolução tem por prerrogativa atravessar as adversidades. Só se cresce através delas, só aumenta o músculo que eleva os halteres. Somos seres incompatíveis à vida: não fossem nossos artifícios tecnológicos, seríamos os mais vulneráveis animais da natureza. Aqueles de pele fina, que sucumbem a uma infinidade de viroses, que adoecem por água não filtrada e alimentos não lavados. Contudo, somos atraídos pela natureza, porque somos parte dela. É um casamento com o meio que nos cerca. Somos avessos às agruras do ambiente mas mesmo assim dependentes dele. Os opostos em convívio perpétuo. Só nos complementa aquilo que nos faz crescer, aquilo que nos exerce alguma força de oposição. E o casal compatível não é aquele em que o homem e a mulher vestem moletons da mesma cor, praticam os mesmos esportes e um completa a frase do outro. Estes terão o tédio por karma. Passarão a eternidade procurando novas drogas de aluguel num vídeo coagido, como diria o Rappa, preferencialmente com um home theatre de som bem poderoso para não precisarem conversar, já que entenderão dos mesmos assuntos e até saberão o que o outro está pensando.
Incrível como a leitura disso tudo é tão clara na natureza e na arte. No amor selvagem dos animais, a mutilação e até a morte de um dos cônjuges durante a cópula seriam uma ameaça à perpetuação das espécies, não fosse a lei da atratividade dos opostos. Via de regra, o macho aceita e se submete à sanha e ao apetite da fêmea por uma ordem natural do universo: astros menores (machos) são atraídos pelos maiores (fêmeas). Para copular é preciso mostrar-se preparado, só assim se é escolhido. A troca parece justa: uma vida por outras várias que irão nascer. E ao parir, momento de ápice de qualquer fêmea, também é necessário estar preparada para agonia, choro, vísceras e o delírio de gerar um novo ser. A dor e o prazer caminham em perturbadora harmonia.
Luís Fernando Veríssimo afirmou que o contrário do amor não é o ódio, mas sim a indiferença. E é por isso que Scarlett Ohara só percebe que ama Rhett Butler quando ele, ao ser indagado sobre o que ela fará da vida sem tê-lo a seu lado, lhe diz “sinceramente, não dou a mínima”. Porque enquanto se odiavam era sinal de que ali havia a possibilidade do amor: a faísca próxima ao elemento de combustão. E também é por isso que Martin Luther King repetia: “o que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”. Os opostos se atraem não porque se conflitam, mas porque se complementam. Já a indiferença é o nulo, o neutro. O nada. A eletricidade pode salvar um paciente em cirurgia ou matar uma criança por um curto circuito. Ela cura ou fere. O ponto neutro significa desativá-la. Há um lado ótimo em se perceber que ira e tolerância são quase irmãs: a esperança de paz para a humanidade, de um dia vermos judeus e palestinos, chineses e tibetanos, americanos e o resto do mundo abraçados e dividindo o mesmo planeta sem discórdia. A sabedoria dos samurais lhes permitia ver o oponente não como um indivíduo que devia ser extirpado, indigno de existir, mas como um agente necessário à sua própria evolução. Ao ponto de agradecerem seus desafetos.
Na condução deste raciocínio, pode se ter a impressão de que o bom casal é feito de rivais. Não se trata disso. Casais, bem como qualquer tipo de dupla (ou mesmo grupo), precisam se estimular mutuamente, necessitam alimentar centelhas de antagonismos que os façam evoluir, juntos e individualmente. Lennon e McCartney passaram a vida criando obras antológicas, mas também se degladiando. O time quase invencível de Bernardinho é formado por atletas no ápice da tensão, exaustão e competitividade, mas se denominam uma família. Só é imprescindível que o estímulo mútuo esteja acompanhado de respeito. E que a relação não seja de disputa ou cobrança: o que você precisa é de alguém inspirador. E só a diferença é inspiradora. Não existe nenhum grande pintor que tenha vivido apenas de auto-retratos.
Uma pesquisa americana mostrou que os casais que mais perduram no relacionamento são aqueles em que os dois brigam demais e aqueles em que ambos não brigam nada. Claro que não são sinônimo de casais felizes, mas, de certo modo, se atraem com suas diferenças ou se toleram em meio a elas. Os casais em que só um dos lados briga são aqueles em que há maior índice de divórcio. Óbvio: um dos dois lados é o neutro, é a indiferença. Ele apaga a relação. É o botão off.
O paradoxo dos opostos que se atraem (paradoxo, não contradição) fica evidente até mesmo nos filmes antigos. E isso não por causa das histórias e sim da técnica. O preto e branco é oposto e complementar. O preto, ausência de todas as cores, se casa perfeitamente com o branco, presença de todas as cores – ao contrário do que nossos olhos querem falsamente nos afirmar, pois acreditamos que a página em branco está esperando para ser preenchida, ledo engano. Luz e sombra, dia e noite. Opostos. Atraentes. A estética do código binário.
O problema é que toda vez que alguém ataca a teoria de que os opostos se atraem lança comparações estapafúrdias: logo imaginam um maestro casado com uma cantora sertaneja. Claro que daí se cai no ridículo. O correto seria imaginar o maestro casado com uma artista plástica: ele auditivo, ela visual; ele intérprete, ela autoral; ele erudito, ela sábia. São os opostos com um fio condutor. Evoluindo juntos, sem ser nos mesmos trilhos, porque senão seria egoísmo e não amor. Outro contra-argumento de baixo nível (de inteligência) é apontar para a garota meiga casada com o mau caráter que a espanca: ora, neste caso não é um problema de carência de similaridades, mas sim de ausência de coerência, de amor próprio, de dignidade, de auto-estima, de respeito, de tudo. É preciso que haja oposição sadia, oposição com convergência. Não fosse a necessidade do “algo em comum”, diríamos que Madre Thereza de Calcutá e Saddam Hussein formariam o par perfeito. É preciso uma mesma diretriz, um mesmo “corpo”, uma mesma moeda. E oposição não quer dizer radicalismo, não é oito ou 80, está mais para 15 ou 30, que tal? Caso contrário, faltará companheirismo, e não se sustenta uma relação feita totalmente de “você-lá-eu-cá”. É preciso estar junto, só não se deve “ser” junto. A oposição radical cai no absurdo daquela anedota do masoquista pedindo ao sádico: “me bate”, ao que o outro responde prazerosamente: “não”.
É importante notar que mesmo com a “ausência de tudo”, não há como negar que algo em comum a tal moça meiga encontrou em seu marido-algoz. E também aí se encontra um estímulo primitivo. A imagem clássica de nossos ancestrais das cavernas, quando em casal, não é a de um macho e uma fêmea de mãos dadas. Ele a arrasta para seu abrigo puxando-a pelos cabelos. O mesmo impulso que leva uma moça de fina estirpe dos dias de hoje a se imaginar nos braços do rude pedreiro que faz a reforma de seu jardim de inverno. A imensa maioria dos homens acredita que as mulheres caem em contradição ao desejarem um parceiro que seja, ao mesmo tempo, poeta e estivador do cais do porto. Não há nenhuma incoerência nisso, é que todos queremos também a oposição dentro de nossos próprio cônjuges. Somos ambiciosos e desejamos toda a palheta de cores, não nos contentamos apenas com o cinza ou o amarelo. Nós homens também queremos essa amplitude e dicotomia. Não foi Nelson Rodriguez quem afirmou que “todo homem quer uma mulher que seja uma dama na sociedade e uma puta na cama”?
Nós queremos a oposição porque equilíbrio não é apenas a imagem da balança estática, com os dois pesos em igualdade, é também a gangorra em seu sobe-desce, o pêndulo indo para lá e para cá, o desafio me tirando do ponto de conforto, da apatia.
A coisa mais em comum que dois cônjuges devem ter é a individualidade. E você sabe que ama verdadeiramente uma pessoa quando percebe que quer que ela seja exatamente como é, e não como você gostaria que ela fosse – simplesmente porque daí deixaria de ser a pessoa que você ama. O certo não é “eu te amo APESAR das nossas diferenças”, mas sim “eu te amo POR CAUSA das nossas diferenças”. Quem procura alguém que seja seu espelho, vai passar a vida correndo atrás do próprio rabo. Lançado flechas ao infinito. Um cupido de si mesmo, apunhalando-se pelas costas.
E só para fechar a questão: se os iguais se atraíssem mesmo, todos seríamos gays.
Se alguém pensa o oposto disso tudo, que se manifeste, porque o oposto me atrai.
Mario Lopes