- Eu não usei aquele espartilho para você.
Não entendia o motivo da frase, já que na noite anterior ela havia dito que ele era a segunda pessoa para a qual usava aquela peça sexy.
- Não usei nem para te conquistar, nem para te seduzir.
Por que então ela havia feito na véspera aquela afirmativa que o colocava em um patamar privilegiado (ou semi)?
- Eu usei para mim.
Aquele foi o primeiro de um desfile de incoerências que o fez tomar uma decisão radical: daquele dia em diante faria o exercício da sublimação absoluta. Tudo que se referisse a sexo e mulheres, ele iria colocar em terceiro ou quarto plano, canalizando toda a sua energia e libido para artes, esportes e outros prazeres nobres. Sim, porque se uma mulher inteligente como aquela havia lhe deixado estupefato com tantas contradições, o que esperar então daquelas que, ao contrário da moça do espartilho, não tinham dois cursos universitários e uma habilidade de raciocínio e retórica invejável.
Começou por se desfazer dos livros de odes românticas, dando suas antologias poéticas de presente para amigos, até mesmo a de Drummond, seu livro de cabeceira. Em seguida, foi a vez dos discos, não poupando nem os vinis do Tim Maia. Despiu sua casa de referências a amores e mulheres, dando para a diarista o pôster-cartaz de “Dr. Jivago” (filme que a mãe dela tanto amava). E, por fim, jogou as fotos analógicas de seus romances passados em duas caixas de charutos que guardara de souvenir, arrastando também as digitais para uma pasta no PC que intitulou de “nunca mais”.
E, para lacrar seu ritual e sua nova fase de forma mais lapidar, resolveu fazer um retiro espiritual em um mosteiro de Ponta Grossa. A ordem aceitou seu apelo por uma inclusão de emergência, mesmo já tendo lista fechada dos visitantes da semana seguinte - alegou que já fora líder de grupo de jovens católicos e que tinha até feito um TCC – Treinamento de Líderes Cristãos. Funcionou.
O primeiro dia até que correu bem. Os monges comiam fartamente e os excessos à mesa de certo modo preencheram seus buracos no coração. No mais, a rotina era oração, confissão e passeios pelos frondosos bosques para meditar sobre a própria vida, ou, como diriam os monges, "na paz e no amor". Talvez tenha sido este o detonador dos problemas que vieram a seguir. A parte da paz, ele até que tirava de letra; já o amor... Sem acesso à web e com contato apenas com seminaristas visitantes de Pernambuco e os próprios monges, sua cabeça começou a dar voltas em cima justamente do assunto que o trouxera até o mosteiro. Sinal de celular não pegava lá também, e assim ele não tinha com quem conversar ou sobre o que conversar (seu interesse não havia mudado tão radicalmente ao ponto de ele preferir encíclicas a sexo ou o placar da final do brasileirão).
A carência de sinal do celular o fez pensar em outra coisa: mas... e se “ela” ligar? Dificilmente isso ocorreria, mas ele começava a ter uma pontinha de entusiasmo com a possibilidade. No segundo dia já não aguentava mais ler versículos e empunhar o terço, rezava era para que alguém o tirasse de lá. Não dormia, fritava na cama se remexendo de um lado para o outro e olhando para o celular, que deixara ligado mesmo sabendo não haver sinal. Os monges com os quais dividia o quarto começavam a pensar que ele estava com síndrome de abstinência de drogas.
No terceiro dia, dormira no joelhoflexório da capela enquanto os monges entoavam cantos gregorianos. Mas despertara com um estranho som. A “Ave Maria” cantada por Agnaldo Raiol. Estranhou e olhou para todos os lados em busca da fonte, afinal não havia aparelho de som ou TV no mosteiro. Foi então que percebeu justamente o monge que trocava flores no altar se coçando todo, apalpando-se por dentro da batina e tirando de dentro dela um aparelho celular que atendeu embaraçado. Resmungou alguma coisa e desligou-o, voltando à sua tarefa.
Num misto de curiosidade e indignação, indagou mais tarde, no refeitório, como era possível aquilo: um celular invadindo o mosteiro, pelas mãos de um monge e tocando no altar (embora a pergunta correta fosse: “como é que eu faço para o meu celular funcionar aqui também?”). A resposta foi simples e coerente: os monges não tinham como ficar absolutamente isolados do mundo, pois alguém poderia passar mal e algum elo de comunicação seria muito bem-vindo, daí o motivo do aparelho. Mas então é que vinha a parte mais curiosa, o aparelho só encontrava sinal da operadora no altar da capela. Não funcionava em nenhum outro lugar do mosteiro. “É o sinal divino”, concluiu um dos monges, seguido de riso de seus pares.
A noite do terceiro para o quarto dia foi de perturbação absoluta. Pensava em como poderia invadir a capela e chegar com seu celular no altar para obter sinal e assim receber uma suposta ligação da moça do espartilho. Saiu de madrugada do quarto, pé-ante-pé para não acordar nenhum dos quatro monges com os quais dividia as acomodações, e seguiu em direção à capela. Caminhou pelo jardim escuro, cuidando para não pisar nas tão delicadas gardênias e petúnias que um dos monges cuidava como se fossem filhas. Mas deu de cara com a porta trancada da capela, dando meia-volta frustrado por sua expedição mal sucedida.
No dia seguinte, tratou de se mostrar um homem de muita fé. Apressou-se no café-da-manhã e pediu para ir orar na capela antes do horário da reza, solicitação prontamente aceita pelos monges, felizes pelo entusiasmado e novo devoto. Rezou na primeira fileira, tirando o celular do bolso com as mãos quase trêmulas. Nada de sinal. Olhando para trás, viu que só havia ele no recinto naquele instante. Atreveu-se a caminhar até o altar. Bingo! Junto à mesa da eucaristia o sinal pegava que era uma beleza. E pasmem: “uma mensagem para você”, sinalizava a tela do aparelho. Neste mesmo instante, um dos monges (justamente o das idolatradas gardênias e petúnias) entrou no ambiente de adoração, fazendo-o prostrar-se de joelhos diante do altar e escondendo o celular com habilidade de trombadinha. O religioso ficou compadecido de ver aquele homem diante do Altíssimo, ajoelhado no mármore duro e frio (e que quase lhe lesionara os meliscos na pressa por se prostrar). Chamou os demais monges que estavam no jardim e todos vieram junto a ele para orar, ficando assim por uma interminável meia hora.
Durante o almoço, com as articulações dos joelhos em frangalhos, ouviu dos monges que ficaram muito tocados por sua demonstração de fé, mas que recomendavam que ficasse sentado no banco das próximas vezes, pois o altar é o espaço mais nobre da capela e só deve ser acessado de forma restrita. Foi então que teve um insight para voltar ao local e ouvir sua mensagem de voz: prontificou-se a trocar as flores, acender as velas e tomar outros cuidados para a boa manutenção do recinto. A solicitação foi aceita de bom grado pelos religiosos, crentes de suas boas e zelosas intenções.
Passou a tarde colhendo flores do campo e encontrou até mesmo uma tulipa que encantou o tal monge que cultivava o jardim. Fez um arranjo magnífico, trocou a água dos vasos e trouxe velas novas para substituir aquelas que já estavam no toquinho. Pronto, missão cumprida, agora sim vinha o verdadeiro dever de casa. Sinal ativo, ligou para sua caixa de mensagens. Suspense duplo: a demora para ouvir o recado somada à possibilidade de um monge chegar no meio da ligação. Era apenas sua mãe fazendo recomendações antes de ele viajar para o mosteiro. Frustrado, desligou o aparelho e ficou ali sentado, na beira do altar, esperando que viesse uma ligação repentina. Nada.
Os monges perceberam sua falta de apetite durante o jantar. Alegou que se sentia ainda um homem de pouca fé, o que compadeceu os religiosos, pois percebiam seus esforços, materializados nos cuidados com o altar e no auto-flagelo de orar por meia hora ajoelhado no mármore frio e duro. Novo insight surgiu: pediu para orar diante do altar durante a noite. Houve certa resistência dos monges, pois só liberavam a capela para orações noturnas em vésperas de dias santos, mas acabaram cedendo.
Passou a noite sentando na beira do altar e olhando para seu aparelho. Quando ouvia passos, escondia-o e se botava de joelhos, com as mãos contritas diante do peito e os olhos fechados. O eventual monge xereta suspirava comovido por tanta obstinação em nome da fé e retornava a seus aposentos. Quando já adentrou a madrugada, desligou o celular e foi para seu quarto aborrecido.
No café-da-manhã do quinto dia, prontificou-se a fazer valer seus supostos dotes de carpinteiro, pois poderia consertar o pé do altar, cuja madeira encontrava-se carcomida pela umidade e estava desestabilizada, com um pé mais encurtado, o que poderia até fazer cair o santo cálice. Novamente foi atendido pelos monges, cada vez mais alegres pelo devoto resoluto e servil que lhes fora enviado. E assim levou sua manhã e sua tarde, improvisando com apetrechos de marcenaria e catando pedaços de madeira de um galpão que ficava afastado do mosteiro, comportando equipamentos de agricultura de pequeno porte. Na verdade, não entendia nada das artes de São José, até pouco tempo achava que carpintaria era sinônimo de carpir. Inventou que a solução para a mesa era complicadíssima, e que por isso iria se demorar na tarefa. Ficou enrolando no altar tempo suficiente para receber algumas ligações de trabalho, que tratou de despachar de forma grosseira. Ligava a serra tico-tico para abafar sua voz e assim não ser flagrado pelos monges. Ao final do dia, voilà, a mesa estava finalmente estabilizada devido a um encalço de madeira que pregara grosseiramente ao pé mais curto. Os monges observaram o fruto daquela trabalheira toda com indisfarçável decepção, mas, tudo bem, o importante é que a intenção do fiel era muito mais bela do que suas habilidades com as ferramentas mundanas.
No sexto dia, antes mesmo de terminar o café-da-manhã, já avisara que precisaria costurar o sudário da mesa do altar (o qual rasgara na noite anterior), e que ainda tinha de pintar as paredes daquela parte nobre da capela, pois havia manchas (que também rabiscara na véspera). Claro, os monges mais uma vez aceitaram de coração aberto aquela oferta generosa de serviços gerais.
Teve de ser auto-didata para remendar o rasgo que fizera no manto que cobria a mesa, chegando a furar o dedo ao tentar penetrar a agulha com a linha. Também precisou ler na lata de tinta a quantidade de mistura certa para besuntar a parede com aquele verde água que fazia o fundo do altar. Enquanto "se esmerava" em seus serviços, era vez ou outra interrompido por novas ligações de trabalho e recomendações de sua mãe. Já estava cada vez mais grosseiro e impaciente nas ligações. O toque do aparelho (no vibracall, para não chamar a atenção de algum monge que passasse por perto da capela) era seguido por grande empolgação e, um segundo depois, por imensa decepção, já que nunca era a moça do espartilho. Ao final do dia, a capela estava presenteada com um sudário cortado por uma cicatriz na altura da ilustração do Espírito Santo; e o fundo do altar havia ganho um tom “avant-garde”, com um verde irregular que mudava de nuance por toda a superfície. Desta vez, os monges ficaram decepcionados e preocupados com o que a devoção daquele homem poderia ainda trazer de depredação naquele sagrado recinto.
No sétimo dia mal esbarrou no café-da-manhã. Apenas queria ir para a capela, pois percebera que havia infiltrações no teto e que o gotejamento certamente poderia danificar a mesa do altar e até causar um desmoronamento sobre os monges e os fiéis, “imaginem o caos, senhores!”, argumentou com os olhos avermelhados de quem passara a noite sem fechá-los. Assustados e desconfiados, aceitaram a oferta com relutância. Enquanto observavam aquele estranho fiel indo e vindo com escadas e ferramentas do galpão para a capela e da capela para o galpão, os religiosos se reuniram e entraram em consenso de que aquela situação estava um tanto suspeita. Decidiram que iriam espionar aquele bom homem atrapalhado.
Já quase adormecendo no alto da escada, sentiu o celular tremer no bolso da calça. “Será minha mãe ou meus clientes?”, pensou. Não, desta vez era sim a moça do espartilho. Como já estava insano pelas noites sem dormir e pelas confusões aprontadas no mosteiro, nem deu tempo para uma conversa amigável ou de reconciliação, foi logo reclamando da demora da ligação, o que de pronto gerou uma discussão via Embratel. Ela ainda alegou que, como tentativa de reatar o romance, havia lhe enviado o espartilho pelo correio, mas “já estou pensando em tirar o espartilho de lá”, alertou. “Tira, então tira o espartilho, tira!”, foram as últimas palavras ditas por ele, ouvidas simultaneamente pelos monges que espionavam à porta da capela.
Foi mandado embora por fazer ligações para tele-sexo. Teve ainda de arcar com uma pintura profissional do fundo da capela e com a compra de um novo sudário para o altar (enviou uma bandeira do São Paulo de sacanagem, “manto sagrado” de seu time do coração). Dois dias depois, o espartilho chegou pelo correio. Dorme abraçado com a peça todas as noites. Ainda não conseguiu reaver o livro do Drummond, nem os discos do Tim Maia.
Mario Lopes
2 comentários:
O que um homem não faz, não é mesmo?
Beijos, Mário.
Leticia
Nem me fale, Fofulety, nem me fale. rs
Beijo.
Mario
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