Camila, assim que passou na faculdade de medicina em outra cidade, deixou sua casa e sua família para trás. Passou a morar em um pensionato feminino onde as regras eram rígidas e qualquer infração era punida com a expulsão. Todas as outras meninas, todas estudantes, eram fiéis às determinações impostas. Homens? De jeito nenhum. Nem pais, irmãos, namorados, etc... Assim que chegou lá, foi recebida pela governanta que a pôs a par de todos os regulamentos e logo em seguida, a encaminhou para o quarto. Mal chegara lá, ouviu batidas na porta. Eram as veteranas visitando a novata.
Após meia hora de falatório, Camila ficou novamente sozinha a refletir sobre tudo que viu e ouviu desde que chegara aquela estranha cidade. Nada lhe era familiar. As ruas pareciam erradas, como se nelas faltasse algo vital, cuja ausência resultava em uma ilusão. As pessoas tinham feições estranhas, não como a de um mero desconhecido, mas como a de seres irreais. O chão em que pisava, o céu que a cobria e até mesmo a coca-cola que havia tomado eram completamente diferentes das de sua cidade.
No meio desse caos desconhecido, Camila tentava lembrar dos pais para se acalmar e assim, acabou entendendo o motivo pelo qual, há 5 anos atrás, sua mãe não a deixara passar o feriado na praia com sua amiga, argumentando que a distância e a saudade mexeriam com seu psicológico. Lembrando disso, ela logo compreendeu o motivo da represália, afinal, se mesmo mais velha, ela passava por uma situação de solidão e havia apenas 3 horas que chegara, imagina o que não sentiria a alguns anos atrás.
Concentrou-se novamente e seus olhos se encheram de lágrimas, mas antes mesmo que uma escorresse sua mente já efervescia com soluções:
-Saudade passa, ligarei para casa todos os dias de manhã e de noite.
-Não, só de manhã. Aí eu me desligo deles e mando notícias uma vez por mês, ou por semana. Duas vezes por semana. Isso.
Camila sabia que faria amigas, quem sabe ali mesmo no pensionato, afinal lá deveriam existir no mínimo uns 20 quartos. Alguma de suas vizinhas haveria de gostar dela, ou pelo menos na faculdade acharia alguém, uma amiga, um amigo, ou até algo mais. Acharia alguém, tinha que conseguir.
Aguentar aquela estranha cidade, vivendo em um lugar repleto de regras onde sentia que estava sendo julgada a cada segundo e que, no menor passo em falso, estaria na rua e consequentemente, fora da faculdade, não era uma tarefa pra ser cumprida em completa solidão. Precisava de um alicerce, alguém que a ajudasse a superar aquele fardo.
Assim, no seu primeiro dia de aula, Camila foi para aula sorrindo, esperançosa em encontrar alguém que simpatizasse e entendesse seus receios, cobrindo a lacuna deixada pela ausência de sua família e amigos. Porém, durante todo o período, só lhe dirigiram a palavra os professores, perguntando-lhe o nome, e um rapaz que esbarrara com ela sem querer. Ela voltou para casa correndo, bateu a porta com raiva, e foi reprimida pela governanta que também acabara de chegar:
-Você não está em casa e aqui exigimos respeito.
Camila chorou. Que falassem em respeito, regras, e qualquer outra coisa, mas que não pronunciassem a palavra casa. Trancou-se em seu quarto e ligou para seus pais, já aos prantos, e, ao contrário do que imaginava, também foi reprimida por eles, que a queriam estável e exigiam que ela fosse forte, não se deixando abater por essas pequenas bobeiras.
Já não sabia o que pensar. Não tinha amigos, família e nem mesmo a sua cama que tanto a confortara durante os dias tristes. Agora estava sozinha, numa cidade desconhecida, rodeada de pessoas estranhas e com regras assustadoras.
Surto de lucidez. Sua família não queria seu mal, apenas a alertava sobre a importância de manter-se forte para alcançar a máxima concentração nos estudos. Podia voltar para casa em alguns fins de semana, e assim, rever o pessoal da sua cidade. Não estava realmente sozinha. Se não arranjasse amigos por aqui, poderia usar a internet pra manter o contato com o povo de lá. Não estava sozinha.
Mas, não é por ter essas soluções que desistiria de fazer amizades por lá. Afinal, só um dia havia se passado e passaria no mínimo 6 anos frequentando aquele lugar e vendo e revendo as mesmas pessoas.
Porém, nada ocorreu como ela desejava. Quanto mais os dias se passavam, mais sozinha ficava e aos seus olhos, todos a odiavam. Aonde Camila ia, achava que a olhavam com desprezo, e chegava até a ouvir murmúrios de humilhação relacionados a ela. Nunca ouviu claramente, mas tinha certeza que aqueles cochichos só podiam estar ligados a sua pessoa.
Na pensão, sua situação ia de mal a pior. Não bastasse ser ignorada na faculdade, era também humilhada na sua própria “casa”. A governanta lhe lançava um olhar de repreensão que valia por mil palavras e a deixava acuada com receio de cometer algum erro. Comia com pressa, pois não queria ficar a mercê das outras meninas, sempre tentando puxar um papo para a humilhar.
Voltava para seu quarto e já não ligava mais para casa. Seus pais pediam que aprendesse a se virar e ligasse só quando necessário. Ela entendia, mas às vezes se revoltava de tal forma que jurava nunca mais voltar para casa. Jurava nunca mais falar com ninguém, já que o mundo tanto a desprezava. Aprenderia a ser feliz sozinha, viveria como uma ermitã. Chegou até em pensar a sair da faculdade e tomar outro rumo qualquer, mas algo a prendia àquela loucura.
Para completar seu quadro, coisas estranhas aconteciam em seu quarto. Desde a sua primeira crise de choro, alguns objetos sumiam esporadicamente. Primeiro, uma caneta azul que usava para fazer as anotações em aulas sumiu de seu penal, o que não foi nada alarmante, visto que ela poderia ter esquecido na mesa ou deixado cair da mala.
No dia em que apresentou um trabalho para toda a sala, e lógico, percebeu os sorrisos disfarçados estampados na boca das meninas do seu pensionato, suas queridas vizinhas, o que sumiu foi seu relógio. Camila realmente não lembrava de tê-lo tirado, e preferia descartar a hipótese de que alguém a tinha roubado furtivamente.
3 dias depois, em que tudo ocorrera normalmente na faculdade, Camila sentiu que poderia ligar para casa sem mostrar nenhuma instabilidade. Assim que desligou o telefone, ela notou algo de diferente em seu quarto. Não sabia distinguir se algo estava fora do lugar ou se algo estava faltando. Só sabia que alguma coisa estava errada. Passou a examinar cada canto, com olhos atentos, sempre olhando para porta para ver se não ouvia passos. Quem sabe não fosse uma brincadeira das meninas, tentando a fazer de boba para que fosse motivo de risos.
Algumas coisas não estavam lá, como seu caderno, sua pulseira de prata e um prendedor de cabelo. Quem poderia ter acesso a seu quarto? Ninguém, ela tinha certeza disso. As regras lá eram rígidas e claras, mas pelo menos garantiam total privacidade dentro do seu espaço. Camila ficou enraivecida. Pensou em telefonar de novo para os pais, mas achou que aquele seria um bom momento para provar a eles que conseguia se virar sozinha. Resolveria esse mistério.
No outro dia, ela andou observando a tudo e a todos, e mais do que nunca, cada rosto lhe pareceu suspeito. Era como se todos lhe perseguissem e a odiassem.
Chegando em casa, mais coisas estavam faltando. Um enfeite de mesa em formato de flor, o porta celular, um par de meias que antes estava jogado sob o pé da cama, e até seu all star não estavam mais em seu lugar. Era impossível que alguém entrasse lá, mesmo porque desde que ali chegara havia instalado travas internas. A janela também era trancada por dentro. Resolveu passar a noite em alerta.
Quem sabe o intruso não a esperasse dormir e usasse de algum truque furtivo. Passou a noite em claro, e quando o dia começou a clarear, Camila olhou no relógio e viu que ainda poderia dormir por uma hora. Cerrou os olhos e sonhou que estava nua na faculdade. Todos a olhavam com desprezo, rindo de sua aparência e tinham algum objeto seu em suas mãos. Um rapaz loiro segurava seus tênis, um outro seu prendedor de cabelo. A menina ruiva levava seu caderno e sua caneta, a morena o enfeite de mesa, e outras duas carregavam o porta celular e o par de meias. No meio de todas essas pessoas, surgiu a governanta da pensão, vestida em um manto preto, com um metro a mais do que tinha na vida real. Abriram espaço para ela passar e seus olhos estavam escarlates como sangue. Andou lentamente, parou bem à frente de Camila, e abriu os braços, deixando a mostra o que escondia sob o manto. Lá estava o porta retrato de sua família, e a bonequinha de porcelana que havia ganhado de sua avó quando ainda era criança.
Camila acordou assustada, levantou-se rapidamente, e constatou o que temia.
O porta retrato e a bonequinha não estavam lá. Correu para porta, destrancou-a e olhou para o corredor tentando avistar algum fugitivo, mas nada. Conferiu as janelas, e os trincos estavam exatamente como havia deixado na noite passada.
Temia ir para aula, pois se os roubos aconteciam mesmo com ela no quarto, imagine o que não roubariam na sua ausência. Receava também suas vizinhas e a governanta, ainda mais depois de seu sonho. Estava sozinha, sem nenhum aliado.
Foi para aula, e ao voltar, não se surpreendeu ao ver mais coisas do que nunca faltando. O quadro da parede, o relógio da cabeceira, o estojo de maquiagens, o saco de roupas sujas, e até mesmo a colcha haviam sumido. No banheiro, os absorventes normais também não estavam lá, obrigando Camila a usar um interno.
Colocou seu pijama e dormiu. Teve uma noite tão tranqüila que chegou a ter esperanças de abrir os olhos e ver que tudo estava novamente no sue devido lugar. Mas não, mais uma dúzia de coisas havia sumido. Seu quarto começava a ficar vazio, e ela não achava soluções para resolver o problema. Foi ao banheiro, e ao tentar tirar o O.B, sentiu algo estranho. Apalpou com calma, pegou um espelho e tentou de todos os ângulos, mas não havia luz o suficiente. Fechou os olhos e se concentrou.
Não havia nada ali.
Nada.
Camila se desespera. Em um surto inconsciente, sai do seu quarto alucinada, gritando para quem quisesse escutar:
-Cadê minhas coisas?
Ela corria pelo corredor, batendo nas portas com força.
-Cadê? Quem pegou meu caderno? Minha boneca?
Ela entra no 1° quarto cuja porta estava aberta e revira tudo que vê pela frente. Com violência, desarruma a cama, abre as gavetas e põem abaixo tudo que estava sob a mesa.
-Cadê? Eu quero minhas coisas!
Chorando, encosta-se na parede, cobre o rosto com as mãos e murmura, como se alguém a escutasse.
- Cadê? Me roubaram..cadê...
Deitada, Camila abre os olhos ainda sonolenta. Mira seu antigo quarto e sorri por estar em casa, em seu ambiente familiar e longe daquele pensionato que tanto a atemorizava.
Tudo estava no seu devido lugar. O porta-celular, a bonequinha, a colcha. Seu All Star estava encostado no lugar de sempre, o porta-retrato estava sob a cabeceira, bem ao lado de sua caneta azul e seu caderno de anotações. Ela respira aliviada e vai ao banheiro lavar o rosto.
Escova os dentes e fica algum tempo se olhando no espelho, quando se lembra que estava menstruada.
Ao tentar tirar o O.B, sentiu algo estranho. Apalpou com calma, pegou um espelho e tentou de todos os ângulos, mas não havia luz o suficiente. Fechou os olhos e se concentrou. Mas...
Não havia nada ali.
Nada.
Letícia Mueller
3 comentários:
Letícia, muito legal sua habilidade de transportar o leitor para dentro do ambiente da personagem e, principalmente, para dentro da mente dela.
Beijo, Fofulety.
Mario
boring.boring. boring.
fofulety de cu é rola.
Blogueiro de merda é veado.
Pastor de acéfalas é idiota.
anônimo de cu
é covarde...
analfabeto funcional obviamente
seria uma ótima descrição para sua pessoa
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