quinta-feira, 27 de agosto de 2009

De deuses a vagabundos


“O mais feroz dos animais domésticos é o relógio de parede: conheço um que já devorou três gerações da minha família.”
Mário Quintana

Nunca os animais de estimação estiveram tão em voga quanto hoje. John Grogan, autor de “Marley e Eu”, que o diga. Pet shop, clínicas estéticas e veterinárias, academias, padarias – e uma infinidade de opções para deixar a vida do seu bichano cada vez mais prazerosa. Quer ganhar dinheiro? Abra uma pet shop. Só não dá mais dinheiro do que abrir Igreja – porque competir com Deus não é negócio.

Desde que o ser humano surgiu e distinguiu-se de toda a Criação, sentiu necessidade de possuir uma companhia que não questionasse suas ações ou rivalizasse o tempo todo consigo. Resultado: lá se foi a domesticar cães, cavalos, porcos, cabras e toda uma gama de animais necessários para sua sobrevivência. No entanto, o cão era diferente. Não era comida (menos na China, é claro). Era companheiro. Era obediente. E toda essa submissão corrompeu de tal forma o ser humano que ele não teve dúvidas – então, cães, gatos, peixes e pássaros foram condenados a aturar eternamente o desejo humano de companhia. Desde então, os animais fizeram história: Calígula, por exemplo, promoveu seu cavalo a senador - e olha que ele trabalhava mais que nossos atuais representantes. E eu não poderia deixar de citar outro equino famoso: “Bucéfalo”, cavalo de Alexandre, o Grande. No Egito, gatos, crocodilos, serpentes, leões, besouros, hipopótamos, etc, etc, eram deuses – os egípcios sim, literalmente adoravam os animais!

Durante a Idade Média, os camponeses dividiam o teto carinhosamente e de bom grado, com seus animaizinhos de estimação: cães, gatos e... doninhas, ovelhas, esquilos, papagaios, porcos e macacos (isso sim é amar a natureza!). O único problema era explicar porque o porquinho do filho mais novo (e nesse caso refiro-me ao suíno mesmo) havia virado refeição. Animais e humanos viviam em tal simbiose que os bichanos até frequentavam a Igreja – e rezavam em latim. Mas como nem tudo são flores nesta vida, aos gatos restava o trabalho – de deuses idolatrados no Egito Antigo a meros caçadores de ratos, quanta humilhação...

Mas como eu não acho graça nenhuma em ficar olhando o pobre peixe entediado dentro do seu aquário e nem o pobre solitário infeliz passarinho cumprindo pena na sua gaiola, me deterei nos inevitáveis e adoráveis cães e gatos.

Se você não gosta de animais ou não possui um em casa, não visite aquele amigo que tem dois pudles e um siamês. É praticamente impossível encontrar alguém que tenha um animalzinho, que não tente fazer você ficar horas sentado no sofá só para ouvir as inúmeras histórias do(s) bichano(s), além de querer te mostrar todas as fotos que tirou desde o momento em que o mesmo desmamou até a de ontem, enquanto ele se espreguiçava. Também não aconselho a visitar aquela tia que tem dez gatos, se você é alérgico. A não ser que você esteja procurando um tratamento de choque e pretenda ficar imerso nos pêlos dos bichanos (que se espalham por todos os cantos da casa), para ver se cria imunidade...

E quando dois donos se encontram, então? A disputa é inevitável: cada um procura impressionar o outro, falando sobre as peripécias e particularidades do seu bichinho. É nessa hora em que se escutam “pérolas”, e descobrimos que existem cães que comem tangerina, melancia, strognoff e pizza de aliche (e usam guardanapo no final), que “falam” para o dono que querem brincar (e o dono jura que o Rex articulou MESMO a palavra), que seguem os donos nos passeios e retornam sãos e salvos para o lar (foram fazer caminhada, manter a saúde) e que ainda sabem fazer manobras no skate. Ou ouvimos os amantes de gatos discorrerem apaixonadamente sobre a independência, inteligência, sensualidade e elegância dos bichanos (se fossem humanos, seriam perfeitos – se bem que teriam alguns contratempos, pois o olfato felino é 14 vezes mais forte do que o dos humanos – Já se imaginou sentindo tantos odores assim? Iria ficar maluco tal qual o protagonista do livro “O Perfume”). E se você é fã de cães não vá querer discutir com aquele teu amigo que ama gatos. Cada um com suas afinidades.

O ser humano é muito engraçado mesmo: adora dar características humanas para os animais. Ainda nem comprou o ser de sua devoção e já lista todos os nomes possíveis e imagináveis – desde os óbvios “Rex” e “Totó” até os mais estapafúrdios, como “Ferro Velho”, “Já te disse” e “Espelotada”. A maioria prefere dar nome de gente para o bichinho - da ex-sogra-chata para aquela Vira-Latas preguiçosa, do ex-namorado tranqueira para aquele gato rajado, do vizinho entroncado para o chihuahua... Ah, mas existem também os amantes da História, que batizam as criaturinhas com nomes imponentes: Zeus, Thor, Pégasus (a pessoa nem desconfia que Pégasus era um cavalo alado e batiza o hamster com esse nome). Pobre animal, não pode escolher o dono e nem o próprio nome... E então, ao chegar a seu novo lar, ganha identidade, passa a ser o mais novo membro da família, torna-se o centro das atenções, mesmo sendo conhecido pela alcunha de Zequinha, Teco, Miguel, Fulano, Negão, Fred, Juninho, etc.

E o pior é que tem gente que leva esse negócio do “mais novo membro da família” tão a sério que passa a tratar o bichinho de forma bizarra, como se ele fosse o bebezinho humano que todo mundo acha fofo: de repente, o pobre coitado se vê envolto em mantas, com babados, fitinhas, lacinhos, perfume, roupas de grife e tudo o mais. Existem ainda aquelas pessoas que gastam fortunas na festa de casamento ou de aniversário dos seus bichinhos, ou que deixam generosas quantias nas clínicas veterinárias para suprir os gastos com os exames de raio-x, ultrassom, cesária – sem falar nos afortunados bichinhos que fazem academia, tomam banho de ofurô, tem dieta balanceada, divertem-se nas “baladas”, vão ao salão para manter o visual “impecável”. Há que se preservar o bom senso, e exageros não devem ser percebidos como o “normal”. Fazer festa de aniversário e levar no spa? Fala sério, existem milhões de crianças que nunca receberam parabéns ou comeram bolo no dia dos seus festejos. Subverter as coisas não é saudável. Nem é correto. O problema é que, na maior parte das vezes, o correto não é o mais fácil, ou o socialmente aceito. Promover festa de casamento de cachorro dá mais ibope do que doar cesta básica para família carente e analfabeta. Que mundo louco, não?


Rubia Carneiro

2 comentários:

. disse...

Essa do cavalo senador trabalhar mais do que os nossos de Brasília foi ótima, Rubia. rs Quem dera a população desse um coice em Sarney e companhia. Muito bacana seu apanhado geral sobre o tema, curti muito. Nada mais natural, afinal, quem é Carneiro não pode se restringir aos animais domésticos, né. rs Beijo, Rubia.

Mario

Rose Lopes disse...

Acabei de me sentir uma pessoa completamente sem laços afetivos com o mundo animal... Mas ainda prefiro assim: sem ração pra comprar, sem veterinário pra pagar, sem canil pra limpar, etc, etc, etc... Sei que alguém diria "sem o carinho do bechano pra receber" mas sabe que eu ainda prefiro assim... Mas eu respeito os Zequinhas, as Fofas, as Ninas e todos aqueles donos que juram que seu bichinho quase fala... Respeito porque sei que se há algum sentimento que não se explica, é esse: o afeto entre aquele que espera ancioso a chegada de alguém especial e o alguém especial que tem certeza da anciedade de alguem lhe esperando em casa.