domingo, 9 de agosto de 2009

Evert



Oi, meu nome é Evert. OK, não é meu nome, é um pseudônimo, mas você não tardará a perceber que é melhor eu não me expor. Há algum tempo, perdi o controle da minha vida e não recuperei até hoje. Vou contar a minha história, para alertar aqueles que, como eu, gostam de cinema. Ou melhor, eu gostava, hoje já não sei mais.

Eu sempre fui cinéfilo. Desde criancinha. Mas não cinéfilo de ir ao cinema, gostava mesmo era de ficar na sala de casa, comendo chocolate e enchendo o videocassete de filmes a tarde toda. O dia todo. Mesmo nas viagens de férias eu levava uma pilha de fitas VHS e uma TV portátil. Meus pais até apoiavam porque eu era o que menos dava trabalho entre os cinco filhos. Por conta disso, sempre fiquei enclausurado em casa, não me relacionava. E criei uma séria dificuldade em me sociabilizar.

Quando cresci, passei a trabalhar num banco, na área de informática, e só falava de números e sistemas. Percebi que a minha vida seria assim para sempre, que minhas maiores emoções reais se restringiriam a um porre na festa de final de ano da empresa, ou a uma viagem com os colegas para passar um fim de semana no litoral. Debaixo de chuva, provavelmente.

Foi aí que, numa tarde, assistindo ao DVD de Muito Além Do Jardim, eu decidi que o cinema tinha de me dar algo em troca. Sim, porque eu entreguei a minha vida para ele, nada mais justo que eu ganhar alguma compensação. Até aquele momento, eu havia passado a vida assistindo à vida dos outros. Cansei. Eu era um sedentário cansado, exausto. De início, pensei em tentar carreira de crítico cinematográfico, mas eu não era bom com as palavras. Então tive uma ideia que resolvi botar em prática imediatamente: iria colocar os meus conhecimentos dos filmes na vida real. Não sabia quando, não sabia como, mas faria isso, por mais vaga que fosse a ideia num primeiro momento. Era muita informação acumulada, para alguma coisa tinha que servir.

A primeira grande oportunidade surgiu mesmo na locadora que eu frequentava. Havia uma garota, uma ruiva, por quem eu era apaixonado. Mas não recordava de nenhuma conversa mole que eu pudesse jogar, nunca tinha cantado uma mulher, aliás, até então eu só havia dado um único beijado na boca, e por acidente na brincadeira de morder a maçã pendurada. Rendeu um tapa e acabou ali minha carreira de Don Juan de Marco. A propósito, se havia uma coisa dos filmes que eu sabia que não poderia aplicar eram as cantadas, elas só funcionavam na tela porque partiam de um Johnny Depp ou de um Brad Pitt. Faça um sujeito comum vestir máscara de Zorro e tentar passar maliciosamente seus dedos entre os dedos de uma mulher que recém-conheceu. No mínimo será agredido, no máximo será preso. Como eu fui sempre péssimo no "chega junto", paguei o fim da minha virgindade quando fiz 18 anos. E era justamente este desastre na arte do galanteio que estava ali, diante da ruiva, indecisa na escolha de um filme, analisando-os como quem apalpa frutas numa feira livre. Acabou pegando um com a Britney Spears em que a guria sai pelo mundo com umas amigas, tipo road-movie teenager. Eu achava um nojo. Ela ficou numa conversa longa com o atendente da locadora, que pelo jeito também era a fim dela. Foi aí que a ruiva, Lena era o nome dela, comentou que só queria pegar aquele filme porque gostava de carros conversíveis.

No dia seguinte, eu abri os jornais na firma procurando oferta de carro sem capota. Achei um impecável, lindo mesmo, um Stratus vermelho da Daimler Chrysler, e o cara da loja queria uma grana que eu não tinha e que acho que nunca iria ter na vida. Fiquei me imaginando como aquele inconsequente personagem do Nicolas Cage em Coração Selvagem, que burlou a condicional para sair pelo mundo a bordo de um conversível com a namorada. Também lembrei daquele filme, O Aviador, em que o Leonardo Di Caprio era audacioso e se endividou mas tinha a mulher que queria. Tá certo que não foram bons exemplos, um era marginal e o outro milionário, mas eu precisava de referências, de inspiração para essa empreitada. O problema é que meus holerites jamais comprovariam renda para parcelar a compra de um carro daqueles. Foi aí que eu lembrei de outro personagem do Di Caprio, aquele do Prenda-me Se For Capaz. Fui para a firma e falsifiquei todos os meus comprovantes de rendimentos. Mandei para o banco e pronto, dois dias depois eu estacionava aquela maravilha na minha garagem, sem saber como seria capaz de pagar as prestações. Mas nisso eu pensaria depois de ter a ruiva no banco do carona.

Na noite daquele mesmo dia, voltei a encontrar a guria na locadora. Desta vez ela estava indecisa e o atendente parecia não saber ajudar muito. Ela tinha na mão um Drugstore Cowboy e um Christiane F., então percebi que estava a fim de algo meio junkie mesmo. Ofereci o Trainspotting, disse que quem dirigiu era o Danny Boyle, ela fez cara de “quem?”, expliquei que era o mesmo cara que dirigiu o Quem Quer Ser Um Milionário, daí sim ela fez uma cara de ”também não sei”. Falei que ele ganhou um Oscar, pronto, ela se localizou. Pegou o DVD e me agradeceu. Percebi que ela sempre chegava lá por volta das sete da noite, provavelmente vindo do trabalho, e pegava alguma coisa para ver em casa. E isso era toda sexta-feira. Provavelmente, filminho de final de semana para ver sozinha. Era o que eu esperava. Eu sabia que não poderia oferecer carona no meu conversível logo de cara, porque ela poderia ficar com medo da generosidade de um estranho, e eu jamais iria conseguir dar a volta por cima e recuperá-la depois de um fora. Então, tinha de ir de mansinho, fazendo daqueles encontros na locadora uma conquista à prestação.

Na sexta da semana seguinte dei um “oi” e a garota pareceu ter demorado a me reconhecer. Agradeceu a indicação e disse que gostou, mas parecia não ter sido muito sincera. Disse que queria levar uma coisa mais “levinha” dessa vez, tipo “uma comédia romântica inteligente”. Era o mesmo que pedir uma teen movie intelectual, mas eu consegui algo para ela, ofereci O Fabuloso Destino De Amèlie Poulain. Ela olhou a capa, o verso, e, como era tudo coloridinho, resolveu aceitar a indicação. Disfarcei, fui atrás dela até o balcão e vi, no ticket de locação, que a ruiva deveria devolver na segunda.

Arrisquei e, na segunda à noite, lá estava eu, demorando um monte para escolher um DVD, só para esperar a Lena entrar na locadora. Deu certo. E desta vez ela realmente pareceu ter gostado do filme que recomendei. Claro que eu queria engatar e fazer outra indicação, seria sinal de que meu bom gosto cinematográfico tinha conquistado a confiança dela. Mas dessa vez a ruiva estava muito em dúvida, não sabia o que levar. Disse que as locadoras não deveriam ter sua divisão por gênero e sim por humor: se você quer alegria, lá estão os filmes que vão deixar você feliz; se quer superar seus medos, eis outra sessão; quer se sentir apaixonada? Opa, siga à direita. Depois ela riu com a própria ideia maluca e eu aproveitei, disse a ela que poderia indicar filmes de acordo com a emoção que queria ter. Ela duvidou, mas resolveu testar. Disse que tinha medo do que as outras pessoas poderiam pensar dela, do julgamento alheio, e eu indiquei Beleza Americana; depois falou que também tinha medo de se apaixonar, peguei A Corrente Do Bem; então continuou com a brincadeira revelando uma fobia muito esquisita: ela tinha medo de plantas, fui correndo em outra sessão e trouxe Adaptação para ela. A garota ficou impressionada, e então disse as palavras mágicas: que eu passaria a ser seu consultor de filmes.

De quebra, na saída da locadora, eu percebi que ela estava indo a pé para casa e passei com meu conversível de capota abaixada ao lado da ruiva para oferecer carona. Ultrapassada a barreira da desconfiança, claro que a garota aceitou, impressionada com meu possante. Eu a deixei em casa, mas ficou por isso – para um cara tímido e anti-social, eu tinha avançado demais naquela noite. Mas ainda arrisquei uma última cartada quando ela já havia saído do carro: convidei-a para ver filmes na minha casa. Ela virou-se e disse “sim”, que eu poderia pegá-la na sexta às sete, na locadora mesmo.

Mas como eu iria trazê-la para ver filmes na minha 32 polegadas? Nunca! No dia seguinte, fui numa loja de eletro-eletrônicos e comprei a maior e mais sofisticada TV que tinha no show room. Não foi difícil parcelar, eu já tinha toda aquela documentação falsificada mesmo.

Na noite de sexta, assistíamos Betty Blue no meu monumental aparelho LCD, filme que eu achava perfeito por ter romance, sexo e uma trilha incrível. Ela não pareceu surpresa com a primeira cena, era a prova de fogo, depois dela tudo seria plenamente aceitável e a ruiva não me acharia um tarado. Como eu já havia visto o filme, pedi licença e fui para a cozinha abrir uma garrafa de vinho (qualquer filme mostra que é item obrigatório, nem o Psicopata Americano dispensa). Só que ela pediu uma cerveja. Abri duas latinhas e, quando me virei para voltar na sala, me surgiu a surpresa: a garota estava enrolando um baseado. Eu só havia fumado maconha uma única vez na vida e forçado ainda por cima. Não sabia como reagir, mas não poderia dar uma de amador nessas horas. Agi com naturalidade. Bebemos, fumamos, conversamos, o filme passava mas nós nem aí. Eu tentei me aproximar, mas ela se esquivava. Ficamos naquele jogo por um tempo até que adormecemos.

Acordei de madrugada com a TV ligada no menu do filme. Ela dormindo serenamente. Fiquei apreciando seu rosto delicado com a pele branca contrastando com os cabelos vermelhos. Percebi que eu já não tinha mais o efeito da maconha na cabeça (até porque eu dei apenas duas bolinhas), só havia um buraco no estômago. Mas antes de ir para a cozinha, resolvi dar um beijo na Lena enquanto ela dormia. Só que quando aproximei meu rosto é que percebi algo apavorante: ela não respirava. Primeiro fiquei estático, petrificado. Depois, passei a andar de um lado para o outro sem saber o que fazer. Nunca tinha ouvido falar que maconha matava. Recorri à minha memória cinematográfica mas nunca havia visto isso em filme nenhum. Seria a combinação da canabis com o álcool? Pouco provável, porque ela bebeu só meia latinha da cerveja. O que a teria matado então? O que eu deveria fazer? Se saísse com ela assim, a polícia faria exame de corpo de delito e descobriria que a Lena estava drogada. Claro que me botariam a culpa. Olhei para o relógio e vi que eram quatro da matina. Eu presumi que ela estava morta há umas três horas, no mínimo. Não havia mais o que fazer. E eu também nunca tinha feito nenhum curso de primeiros socorros, nem saberia como agir. Fiquei agachado no canto da sala, com a cabeça entre os joelhos, pensando desordenadamente, só deixando o fluxo mental fluir em meio a flashes de puro desespero. Decidi que iria esperar amanhecer, porque daí talvez a presença da droga se atenuasse e nem fosse identificada na autópsia.

Quando o sol começou a entrar pela janela, eu acordei todo dolorido no chão, com a esperança de que aquilo tivesse sido um sonho, uma ilusão do THC. Fui até o sofá. Não, era mesmo real. Passei Bom Ar pela casa toda. Joguei o resto de baseado na privada e puxei a descarga umas cinco vezes. Limpei o cinzeiro com uma esponja e muito detergente. Queimei a esponja no quintal de casa. Trouxe uma bacia com água e sabão até a sala para lavar os dedos da Lena e tirar o cheiro. Só não consegui tirar o amarelo das pontas do indicador e do polegar. Escovei os dentes dela e passei um anti-séptico bucal embebido em algodão nos lábios e na parte interna da bochecha, esfregando com meus dedos. Então comecei a pensar na minha versão da história, naquilo que eu iria contar para a polícia: trouxe a Lena para casa, assistimos a um filme, dormimos e, quando acordei, ela simplesmente estava morta. Ensaiei na frente do espelho e repeti em mim mesmo a operação de higienização que eu havia aplicado na Lena, só que esfregando meus dedos com uma escovinha que achei na área de serviço. Ainda tomei uma ducha e vesti uma roupa com cheiro de amaciante, jogando a outra no cesto de roupa suja após me certificar de que não estava com cheiro de maconha. Estava um pouco, então joguei no tanque e despejei muito Omo até encher de espuma. Pronto, agora era tomar fôlego, voltar para a sala e ligar para a polícia.

Mas, quando eu cheguei na sala, a Lena não estava mais lá. Apenas seu cobertor, sem ninguém embaixo dele. Fiquei muito assustado e tentei recordar de filmes em que o corpo da vítima some, mas me deu branco. Ouvi então um barulho na cozinha e fui caminhando até lá, pé-ante-pé. Havia uma pessoa por trás da porta aberta da geladeira. Identifiquei pelos pés descalços: era Lena, em pé, bebendo uma garrafa de dois litros de refrigerante direto do gargalo. Ela fechou a porta, me olhou e simplesmente disse: “larica”.

Sentada depois comigo no sofá, ela me explicou, enquanto eu tomava um chá para me acalmar, que sofria de um tipo de catalepsia. Era como se morresse mesmo: do nada e sem motivo aparente, seus batimentos cardíacos e a respiração desciam a níveis que beiravam a inércia completa. Já chegou mesmo a ser diagnosticada como morta. “Por isso eu tenho fobia de plantas”, explicou, afirmando que aquele era um tipo de estado vegetativo. Disse que isso durava no mínimo quatro horas. Eu perguntei como era a sensação, e ela só soube me dizer que, no início, parecia que seu corpo estava deitado na relva molhada e só, em seguida apagava por completo. Daí começou a rir de chorar quando percebeu que eu estava mais cadavérico do que ela. Estava realmente branco de pavor, tremendo os dedos que seguravam a asa da xícara de chá.

Passado o susto, viramos amigos e passamos a assistir a DVDs juntos com frequência, todos por escolha minha. Eu sempre fazia uso de frases famosas dos filmes para impressionar, e funcionava. Até gastei uma grana preta me vestindo como os caras que se davam bem nos romances, o que me rendia outros tantos elogios. Como eu parcelei a compra dessas roupas de grife? Bom, você sabe. Enfim, eu estava feliz e o cinema agora me recompensava pelos anos e anos de minha inabalável devoção. Só que eu nunca conseguia me aproximar e beijá-la. Pior que isso, ela vivia me contando das suas histórias com outros caras, e não era nada santinha. Eu não sabia por que ela se fazia de difícil. Será que me achava repulsivo? Por que dava para tantos e não para mim? E, apesar de tantas histórias, contava que estava há uns dois meses sem transar, ou seja, falta de fissura é que não era. Enfim, eu não entendia.

Até que chegou o dia em que bebemos bastante ao ponto de ela passar a me provocar o tempo todo. Ficava se insinuando, se exibindo. Forçando um decote, caindo sobre mim “sem querer” no sofá, brincando debaixo das cobertas e fazendo todo tipo de situação capaz de me deixar fora de controle. Em um dado momento, ela disse algo sussurrado no meu ouvido que me acendeu por completo: “fuck me”. Eu perguntei, como num reflexo de quem desacredita em sua própria audição: “o que?!”. Ela apenas respondeu “nada” e encheu a boca de cerveja. Fiquei por um bom tempo pedindo “repete”, mas ela só ria e dizia que eu estava surtando, que não sabia o que tinha me dado. Claro que eu havia entendido perfeitamente o que a Lena tinha dito, mesmo que fosse um simples sopro eu dispensaria a tecla SAP, só queria uma confirmação. Depois de muitos risos e de eu ter ficado exausto com aquela brincadeira de gato e rato, acabamos adormecendo.

Acordei de madrugada e foi quase um deja vu: a TV na tela de menu de um filme (agora nem lembro qual) e a Lena quieta, adormecida, com seus cabelos vermelhos em contraste com a pele alva, iluminada pela luz que vinha da televisão. Quando me aproximei dela para dar aquele beijo tão protelado, percebi que a garota não respirava. Mexi seu corpo e não houve reação. Eu já ia me desesperando quando recordei do episódio de algumas semanas atrás: a Lena estava de novo com catalepsia. Resolvi tirar uma casquinha com a situação: dei um beijo naquela boca que há tanto tempo me evitava. Depois apreciei seu corpo. Coloquei a mão em seu peito, e de fato o coração parecia nem existir ali dentro. Aproveitei e resolvi a apalpar seu seio. Mais: decidi que iria ver seu seio. Lindo, lindo. Eu estava hipnotizado. Queria então ver o par. Abaixei a blusinha listrada e sem alças, e fiquei olhando por um bom tempo. Toquei-os como quem venera, pareciam sagrados. Tirei então toda a roupa da Lena, eu sabia que aquele estado dela duraria pelo menos quatro horas. Quando ela estava completamente nua, passei a beijar seu corpo todo. Demorei-me por longos minutos e não poupei nem um milímetro quadrado. Das juntas dos dedos às delicadas rugas atrás do calcanhar, não houve parte de seu corpo que meus lábios não houvessem tocado. Dei-me praticamente por satisfeito, mas daí recordei do que ela havia dito: “fuck me”. Naquele momento, lembrei do cara que transava com a garota em coma naquele filme que o Almodóvar dirigiu: Fale Com Ela. Então, resolvi aceitar aquela provocação da Lena, que me foi dita em tom de pedido e de desafio.

Acordei mais tarde, nu e abraçado à Lena. O sol já tomava conta da sala. Era sábado. Assustei-me, não porque ela ainda estava sob o efeito da catalepsia, mas porque estava nua. Eu precisava vesti-la, pois provavelmente ela desaprovaria eu ter me aproveitado daquele seu estado vegetativo. Pronto, a Lena vestida, agora era só eu passar um café e aguardar um pouco mais.

No meio da manhã, comecei a me preocupar. Eu não sabia se deveria tentar reacordá-la, mas uns tapinhas no rosto não fariam mal. Ela não reagiu. Resolvi esperar mais um pouco. Quando se aproximava o horário do almoço, eu já estava absolutamente inquieto. Andava de um lado para o outro e queria ir no posto buscar cigarros. Eu fumava quando ficava excessivamente estressado. E eu estava excessivamente estressado. Mas não podia sair de casa. O que aconteceria se ela acordasse e não visse ninguém? Eu poderia deixar um bilhete, quem sabe. Mas o que mais me assustava não era ela acordar e não ver ninguém. Era ela não acordar...

A garota havia dito que a catalepsia durava no mínimo quatro horas, mas não disse quanto seria o máximo de tempo daquele “fenômeno”. No meio da tarde, eu resolvi tomar uma atitude enérgica, dei tapas mais fortes nela, gritei no ouvido, chacoalhei. Mas nada. Então, já começava a se confirmar aquilo que eu tanto temia. Desta vez, ela estava mesmo morta.

Logo estaria anoitecendo. Eu até já havia decidido não atender se o telefone tocasse. Dificilmente isso aconteceria, mas o medo estava lá, significava que eu não podia ter contato nenhum com o mundo exterior. Eu daria bandeira. Mas por que essa guria morreu? Então eu lembrei daquela noite em que ela queria um filme junkie na locadora, aquela em que eu recomendei o Trainspotting. Fui na bolsa da ruiva e a revirei. Encontrei então uma porção de embalagens de comprimidos, alguns deles eram tarja preta. Talvez por isso ela estivesse tão animada naquela noite. Devia ter misturado com a bebida e deu nisso. Rolou, quem sabe, uma parada cardíaca. Nessa hora eu lamentei ficar vendo só filmes mas nunca ter sequer assistindo a um único episódio inteiro de ER. Merda.

O inevitável aconteceu, a noite caiu. E a Lena não despertou. Agora eu já estava convencido de que ela não voltaria. Levantava seu braço e ele caía como se dentro nem tivesse ossos. Eu estava nervoso demais para lembrar o que os gangsteres dos filmes faziam com os corpos mortos, mas a necessidade de me livrar da Lena já me atormentava. Eu sabia que, se a descobrissem morta, fariam autópsia e identificariam que ela bebeu bastante e misturou com barbitúricos. Pior, o resultado mostraria que eu transei com ela. Conclusão da polícia: eu a embriaguei, a dopei, a estuprei e a matei, lógico.

Lá pelas nove da noite chegou o taxi com os DVDs que eu pedi para a locadora por telefone. Peguei os filmes abrindo um pequeno vão na porta e passei o dinheiro para o motorista. Fechei a porta sem esperar o troco e fiquei ali, aguardando o som do taxi se afastando. Pedi os filmes que eu lembrava ter situações de gente se livrando de cadáveres. Eu precisava de orientação. O cinema me botou nessa, agora tinha que me tirar. Primeiro, revi o Cova Rasa. Não, serrar os ossos da Lena, eu não conseguiria. Nunca. Fui então para Um Plano Simples, mas de simples não tinha nada: neve, aquelas encrencas com a polícia, avião recheado de dinheiro, um amador e um retardado, iriam ainda me meter em encrenca maior. Parti para os profissionais: Pulp Fiction. Mas não tinha muito a ver, era a morte num carro e com muito sangue, meu caso era em casa e sem derramar uma gota de catchup. Começou a bater o desespero de causa quando botei Um Morto Muito Louco. Não lembrava o que tinha no Hannibal, mas resolvi rever mesmo assim. Não, eu não conseguiria comer a Lena até não restar mais nada de seu corpo. Pelo menos não conseguiria comê-la no sentido literal. Resolvi parar de ver filmes porque só estavam me deixando mais confuso.

Entrou a madrugada e me dei conta de que logo ela estaria cheirando mal. E a família da Lena? Deviam estar desesperados atrás dela. Eu nunca havia visto seus pais e a pegava sempre na locadora, mas teve aquela noite em que dei carona para ela até sua casa. Se alguém da família viu o carro chegando, eu estaria em sérios apuros. Dificilmente outro alguém na cidade teria um conversível como aquele. Agora eu teria de me livrar da Lena e daquele conversível caríssimo. Maravilha, passaria o resto da vida temendo ser preso e tendo de pagar uma fortuna por um carro que nem mais estaria dirigindo.

Acordei assustado. Não sei dizer como foi que consegui dormir. Acho que estava exausto e simplesmente apaguei. Ela continuava lá. No sofá. Imóvel. Eu me aproximei e a cheirei. Ainda não havia nenhum odor, talvez aquele perfume adocicado e persistente dela estivesse disfarçando. Só a pele que estava mais branca do que o normal. Reparei pela janela que já estava amanhecendo. E eu continuava sem solução.

Resolvi que iria ligar para alguém. Minha família é que não podia ser, não queria encrencar ninguém. Não poderiam nunca descobrir aquilo. Já não tinham orgulho de mim, mas também não precisavam ter vergonha. Muito menos daquele jeito. Imagina o que é ser parente de um assassino drogado estuprador. De um frustrado eremita, até se tolera. Mas foi nessa de ligar para alguém que cometi meu grande erro.

Lá pelas onze, chegou o Aurélio, meu colega de trabalho, assustado porque eu não quis dizer por telefone qual era aquela situação que me fez acordá-lo domingo de manhã. Mas susto mesmo ele teve depois que entrou. Ficou por um bom tempo que nem uma lagartixa, grudado de costas para a parede, apavorado e só dizendo “você matou ela, você matou ela”. Deu até vontade de corrigir aquele português horrível, que soa mal até para um cara tão mal letrado como eu, mas me desesperei com o desespero dele. Como já havia virado ato-reflexo, comecei a recordar de filmes com situações semelhantes, imaginando o que fazer. Eu poderia tomar uma atitude como em O Talentoso Ripley e matar aquela testemunha inconveniente. Ou poderia simplesmente dizer para ele ficar em silêncio e fazer como o marido chifrudo de Infidelidade, me entregando para a polícia. Só que esses dois filmes tinham final aberto, não dá para saber se os caras depois se deram mal ou bem. Malditos roteiristas indecisos.

Bom, por falta de inspiração dos filmes, resolvi deixar o roteiro por conta do Aurélio. Abri a porta e o cara saiu correndo. O que ele fizesse seria bem feito. Pelo menos é o que eu queria pensar. Quinze minutos depois, a revelação: ele fez o óbvio, como no final de Durval Discos, chamou a polícia. Uma viatura, felizmente sem sirene ligada, parava na frente da minha casa. Os dois policiais já entraram de armas em punho, me algemando. Ficaram conversando comigo, fazendo um monte de perguntas idiotas e falando pelo rádio. É claro que para todas as indagações eu sempre usava como resposta o maior de todos os clichês dos filmes policiais: “só falo perante o meu advogado” (e eu nem tinha advogado). O Aurélio devia estar sabe lá onde, talvez em casa contando o episódio para os amigos enquanto preparavam o churrasco de domingo. Por fim, chegou o pessoal da perícia, a polícia me levantou da poltrona e foram me levando para a viatura. No trajeto, não tive como não me sentir um pouco como o personagem daquele filme dirigido pelos irmãos Cohen: O Homem Que Não Estava Lá. Ah, mas que se foda! Merda, o cinema fez isso comigo e nem agora eu conseguia deixar de lembrar de filmes. Teria uns bons anos atrás das grades para recordar de todos os filmes que quise...

- Aaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhh!!!

Eu e os policiais nos viramos instintivamente em direção à casa. Eles voltaram para lá com armas em punho novamente. A voz era da Lena: “enfia no cu da sua mãe, idiota”, dizia a ruiva possessa. Chegando lá, a encontramos sentada no sofá, coçando o nariz e olhando ao redor, sem entender o que se passava. O legista então explicou que introduziu uma pena no nariz dela para ver se não havia algum reflexo capaz de revelar se a Lena ainda estava viva. Estava. Algemado e me escorando no batente da porta, eu não me conformava que uma simples pena poderia ter evitado aquele meu final de semana de pesadelo.

Deixei de ver a Lena, nunca mais assistimos a filmes juntos e hoje eu só peço DVDs pelo telefone, ou melhor, peço Blu Rays, e pela web. Fui demitido e quase me abriram um BO por estelionato, fraude e falsidade ideológica, mas eu fiz um bom acordo demissional e deixaram a coisa por aí. O Aurélio nunca mais falou comigo, aliás da única vez em que nos vimos casualmente num supermercado ele fugiu de mim como se eu fosse o Jason. Voltei para minha vida no casulo, só saindo da cama para fazer cursos pela web, me alimentar e assistir a filmes. Descobri que viver envolve riscos demais. Consegui me formar em um e-learning sobre ortografia e gramática, e passei a trabalhar em casa, fazendo consultoria de filmes e críticas para sites especializados (os leitores sacaneiam meu pseudônimo me chamando de Evert Richards). Devolvi aquela minha TV gigante, alegando que ainda estava no prazo dos 30 dias previstos pelo Procon. Fiz a mesma coisa com as roupas, o que rendeu uma enorme discussão na loja. Já o carro, tive de dar para um cara que topou pagar aquelas prestações todas, eu morri só com a entrada e a primeira parcela, que não eram pouca coisa.

Hoje eu sei que há um tanto de ilusão no ritual de escolhermos filmes, porque em muitas das vezes são os filmes que escolhem a gente. Na minha história, por exemplo, não tem como não recordar daquele desfecho de Carrie, A Estranha, em que a mão da coitada, já morta e enterrada, salta para fora da terra, fazendo a gente pular de susto quando achava que tudo havia acabado.

Aliás, a minha história mesmo também não tinha acabado. Dois meses depois, bateram na minha porta e fui atender: saltou para dentro da minha casa o braço esticado da Lena segurando uma folha de papel – nela se lia: “Teste de gravidez: Positivo”.



Mario Lopes

3 comentários:

Unknown disse...

Que cara doido... rs
Beijos!

Anônimo disse...

Pois é... rs
Beijos, Mila.

Mario

Karime disse...

hahahahahahahahahahaha!
Que história louca!! Demais!