domingo, 30 de agosto de 2009

O Cadelo



Pelo assobio ao telefone, já deduziu quem era. Otto olhou ao redor para ver se estava sendo observado pelos colegas de trabalho. Cobriu o aparelho com a mão e começou a arfar como um cachorro, bem próximo do bocal. Ela então iniciou o diálogo com sua voz feminina e dominadora:
- E como tá o meu cadelo hoje?
Otto voltou a olhar para os lados a fim de se certificar de que sua conversa não estava sendo ouvida pelos demais.
- Atiçado. E a dona dele?
- No cio.
- Hmmmm... E vai virar minha cãzinha?
- Só se o cadelo dela latir.
- Au, au.
- Mais alto.
- AU, AU.
- Não tô ouvindo.
Olhou ao redor e viu que os colegas continuavam trabalhando em suas baias sem perceber nada de anormal. Resolveu arriscar.
- AU! AU! AU! AU!!!
Dona Dalmira, que servia cafezinho em uma das baias, esticou o pescoço para ver o que estava acontecendo, fazendo Otto esconder o rosto atrás do monitor de seu PC.
- Meu cadelo tá fraquinho?
- Satine, eu tô no trabalho.
- Hmmmm... então é uma ótima ocasião pra mostrar que é mesmo meu cadelo.
- Você sabe que eu sou.
- Prova. Late alto!
- Satine...
- Late!!
Otto, temeroso e resignado, desceu para baixo de sua baia e latiu a plenos pulmões, chamando a atenção de toda a repartição. Desligou o celular e se levantou, ajeitando a camisa e tentando disfarçar, mas Ramiro, gerente de vendas, o fitou como que esperando por uma boa explicação para a cena.
- É o toque do celular. Mas já mudei.
Nem Ramiro nem os outros colegas se mostraram convencidos, mas deixaram a situação por isso mesmo, já que o ocorrido era tão inusitado que ninguém conseguia ter certeza do que realmente havia escutado e visto.

No caminho para casa, Otto refletiu em o que aconteceria se, numa happy hour da vida, contasse aos colegas que ele tinha uma dona. Com certeza iriam rir dele e censurá-lo. “Mas só porque não conhecem a Satine”, reconfortou-se. Aquela loira de coxas poderosas, seios opulentos e fantasias ensandecidas recompensava cada gesto de obediência com sessões de intimidade inenarráveis. Animalescas como ele nunca sonhara ser possível. Sentia seus instintos primais virem à tona com um impulso selvagem em que mordidas, lambidas e saliva eram apenas o couvert de um banquete de carnes e suores. A cama virava uma savana de apenas dois animais. E era pequena para tanta caça, tanto safári de sensações. Com ela, ele era um cachorro do mato feliz, domesticado de dia e alimentado de noite.

Ao chegar em seu apartamento, mal colocou a chave na porta quando ela se abriu.
- Olha o que eu comprei pra você.
Disse Satine, tirando uma coleira de dentro da bolsa branca. Otto, ao olhá-la apoiada no batante da porta de vestido listrado e cinta-liga, colocou a língua para fora a salivar.

No dia seguinte, jantavam em um restaurante requintado, quando Satine o repreendeu com o uso dos talheres.
- Mas cadelo não come assim, de garfo e faca.
Otto deixou os apetrechos de lado, enfiando seu rosto no prato e passando a rasgar seu mignon au poivre com os dentes, para repulsa de um elegante casal na mesa ao lado e orgulho de sua dona, que agora o recompensava com o pé descalço afagando seu sexo por baixo da mesa.

Na quarta-feira, enquanto era levado para passear no parque, buscando quando em quando um pedaço de arame de sutiã que Satine atirava na pista de cooper, ele indagou pela enésima vez:
- Você ainda vai ser minha cãzinha, né?
- Vou. Agora pega, pega!

Ainda na mesma semana, foi lavado por Satine na banheira e teve o corpo enxugado com o uso de um secador de cabelo.
- Aaaaiii!!
- Que foi, cadelo?
- Você me queimou nas costas, afasta esse secador aí.
- Ah, é? Então vai pra fora!
Satine engatou a presilha da corrente em sua coleira e puxou Otto até a porta.
- Satine, calma.
- Vai ficar lá fora até se comportar.
- Mas eu tô nu.
- Ah, e cadelo veste roupa por acaso. Fora!
Foi nu em pêlo para o corredor do edifício e ouviu o “blam!” às suas costas. Ficou entre o medo de ser flagrado e a indignação de ser expulso da própria casa. O constrangimento era maior que o frio no corpo molhado. Tentou secar-se balançando o corpo para tirar a água dos pêlos imaginários. Para continuar o jogo, passou a andar de quatro de um lado para o outro. Então ouviu o som de sua porta sendo trancada a chave. Desesperou-se, mas sabia que agora, mais do que nunca, precisaria fazer o jogo dela para adentrar em seu lar novamente. Percebeu que Satine o observava pelo olho mágico. Então, começou a uivar, pedindo que abrisse a porta. Não obtendo a reação desejada, passou a arfar sorridente, com língua de fora e olhar de cachorro pidão. Arranhou a porta com a “pata” direita e choramingou. Olhou o painel numérico sobre o botão do elevador, temendo que a porta se abrisse com a chegada repentina de um condômino, mas por sorte estava no térreo. Ouviu então vozes por trás da porta de um dos apartamentos vizinhos. Ficou receoso que alguém fosse sair para o corredor. Passou a arfar e a fazer truques, ficando de joelhos em frente à porta e rolando no chão pelado. Nada. A chave da porta vizinha começou a girar, alguém estava realmente saindo para o corredor. Pôs-se a uivar mais alto, desesperado. O trinco do apartamento vizinho se mexeu. Então Otto latiu com o vigor de um rottweiler, arranhando a porta em pânico. Ela se abriu, fazendo-o cair para dentro do apartamento. A porta foi fechada por Satine logo em seguida e Otto se precipitou sobre o corpo de sua dona, a princípio grunhinho, mas logo em seguida lambendo-a obediente, aliviado e feliz. A noite seguiu-se com o melhor sexo oral que já praticou e recebeu em toda a sua vida.

Satine continuou com suas sandices. Certa vez, em um motel, colocou Otto na beira da banheira de hidromassagem, obrigando-o a urinar dentro dela de quatro e com uma perna levantada. Em outra ocasião, espalhou pelo próprio corpo pedaços de carne crua, obrigando Otto a devorar cada naco, alguns dos quais estrategicamente distribuídos em sua anatomia. Já em outra, apagou as luzes do apartamento, cobriu bem as janelas e o fez procurá-la usando apenas o faro, formando no chão um rastro de objetos que aromatizou com o cheiro de seu sexo.

Mas as contra-indicações daquela relação não tardaram a aparecer. Otto teve um problema no menisco por andar muito tempo de quatro; ficou com um vergão no pescoço num dia de semana em que Satine o puxou com muita força pela coleira, gerando indagações embaraçosas dos colegas de trabalho; e ainda por cima se pegou acordando aos uivos numa noite em que Satine não foi ao seu apartamento.

O cúmulo aconteceu em um final de semana, no qual Satine teve de viajar e propôs a Otto que ficasse acorrentado a uma das pilastras de concreto da sacada de seu apartamento. Ao ladrar contra a proposta, Satine afirmou que a extensão da corrente daria a ele acesso à cozinha, ao quarto e ao banheiro, permitindo assim condições de usufruir dos principais cômodos de sua casa, sem falar da própria sacada, onde poderia tomar um arzinho. Porém, claro, ela levaria a chave do cadeado. Otto recusou-se terminantemente. Indignado, perguntou a Satine o que faria se houvesse um incêndio: “lato pra vizinhança?!”. Indagou então por que ela não o levava na viagem, recebendo a resposta de que não fabricavam casinha de transporte no tamanho dele. Acabaram não entrando em consenso. Irritada com a desobediência, ela boicotou seus encontros com Otto depois da viagem, evitando visitá-lo por quatro dias. Ele ficou sem ninguém para lhe dar banho ou levar para passear, deixando a barba ficar espinhenta por falta de tosa. Furioso com a indiferença de sua dona, esbravejou quando ela lhe ligou no trabalho em uma manhã cheia de serviço.
- Sabe o que aconteceu? Não era só você que estava me observando pelo olho mágico naquela noite. A minha síndica também estava. E viu tudo! Falou para o prédio inteiro que eu estava no corredor nu, molhado, uivando e latindo. E agora?
- Agora você mija na porta dela!
- Ah, sim, e transo com a perna dela, que tal?
- Não, isso você só faz em mim.
- Sabia que hoje eu vou ter de dormir num hotel?! Ééééé, tem reunião de condomínio e eu não posso botar minhas patas no prédio. Sabe por quê? Adivinhe quem vai ser o assunto da noite?
- O cadelo.
- Isso mesmo, o cadelo. Este que vos fala!
- Late baixo! Junto!
- Fala a verdade, você nunca vai ser minha cãzinha, né?
- Quieto!
- Olha aqui, pra mim chega! Cansei de ser seu cadelo. Você é uma fora da casinha! Procura outro pra adestrar! Tchau!
Bateu o telefone, bufando, e olhou ao redor, estranhando o silêncio. Viu então que todos os colegas de escritório estavam parados atônitos em suas posições de trabalho, com os olhos arregalados direcionados a ele. Enfurecido e rompendo com aquele silêncio tenso, Otto rosnou:
- Grrrrrrrrrrrrrrrrrrr!!!!!!!
Todos imediatamente voltaram às suas funções assustados, fazendo de conta que nada houve e que não testemunharam a conversa ao telefone.

Caminhando no final do dia, em direção a um hotel barato próximo a seu trabalho, pegou uma rua pouco movimentada onde viu uma cena que lhe deu arrepios: um funcionário da prefeitura fazendo os serviços de carrocinha, pegando os cachorros de rua com um cabo comprido, tendo em sua ponta uma espécie de laço de arame eletrificado. O funcionário laçou um dos pobres animais, fazendo-o paralisar com o efeito do choque, caindo instantaneamente no chão e estrebuchando em desvario, sendo então arrastado pela cauda até o veículo. Otto ficou compadecido do bicho que agora quase considerava seu igual. Mal teve tempo de penalizar-se quando sentiu um laço como aquele vindo por trás e lhe descendo pelo alto da cabeça, apertando seu pescoço e liberando uma descarga elétrica que amorteceu seus sentidos. Tentou livrar-se inutilmente, com seus dedos não mais conseguindo obedecer corretamente os comandos cerebrais. Caiu no chão quase desfalecido. E, enquanto era arrastado pela calçada até um veículo próximo, conseguiu mover as pálpebras para cima e ver Satine puxando-o pelas pernas.
- Você foi um cadelo mau. Muito mau.


Mario Lopes

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