domingo, 23 de agosto de 2009

Hábitos De Consumo


Nem a perícia nem a polícia entenderam quando arrombaram a porta. Depois de cinco dias sem dar sinal de vida, e com o cheiro começando a preocupar os vizinhos de apartamento, encontraram Murilo já em adiantado estado de putrefação, sentado no sofá da sala e com a boca aberta, provavelmente pela queda do maxilar em decomposição. A TV estava ligada, exibindo em looping o menu interativo do filme “Bilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças”. Em sua mão esquerda, a única pista: uma minúscula calcinha de cotton roxa com lacinhos laterais e o forro virado para fora.

Dez dias antes e a 500 quilômetros dali...

Evilásio fingia dormir enquanto apreciava Pamela se vestindo. Admirava seu corpo ainda preservado mesmo depois de tantos anos de casados. Sabia que era uma mulher atraente. E também sabia que a mosca varejeira do ciúme estava incomodando-o mais do que de costume. Resolveu que naquele dia tiraria à prova suas suspeitas. Enquanto Pamela desceu para preparar o café, Evilásio ligou para o trabalho e alegou suspeita de Influenza A para ficar em casa. Contudo, cumpriu normalmente com seu ritual diário, vestiu-se com roupas de trabalho, comeu seus cereais ao lado da esposa, brincou com o gato e despediu-se dela com o mesmo beijo mecânico de sempre.

Saiu com o carro e o estacionou na esquina de casa, ficando de guarda para a eventual chegada de um tipo suspeito. Até o meio da manhã, tudo estava na mais absoluta normalidade, sem qualquer movimentação digna de alerta. O tédio já deixava Evilásio sonolento, mexendo no dial para tirar do noticiário e encontrar alguma música animada. Foi quando Pamela saiu de casa a bordo de seu Golf. Evilásio abaixou-se por trás do painel de seu veículo temendo ser visto. Pamela prosseguiu pela rua sem perceber o carro do marido, indo no sentido oposto e se distanciando cada vez mais. Evilásio ligou seu Peugeot e teve trabalho na perseguição, por pouco não perdendo o rastro da esposa em meio ao trânsito tumultuado da capital. A tarefa de acompanhar um carro à distância era mais difícil do que ele havia suposto, não poderia se aproximar demais sob o risco de acabar sendo visto, como também não poderia se distanciar muito sob pena de não mais localizar seu alvo.

O Golf de Pamela então entrou na garagem de um hotel que Evilásio considerou um tanto suspeito. Resolveu deixar seu carro em frente ao estabelecimento com o pisca-alerta ligado. Entrou disfarçando sua tensão e olhou para a escada que vinha da garagem, percebendo que alguém estava subindo, provavelmente Pamela. Evilásio, para estranheza da recepcionista, nada disse e foi para uma sala contígua à recepção, pegando um jornal na mesa de centro, abrindo-o e sentando-se, camuflando o rosto por trás das notícias de podridão do senado federal. Um pouco trêmulo, percebeu que era Pamela que chegara na recepção pelo toc-toc de suas botas. Esticou o olho direito discretamente para fora do periódico e a viu conversando com a recepcionista. Apenas pediu uma chave, sorriu, agradeceu e caminhou em direção à escada que dava acesso aos quartos. Evilásio destrambelhadamente jogou o jornal no sofá e levantou-se de súbito, indo até o balcão enquanto tentava acalmar mentalmente seus batimentos cardíacos. Perguntou à atendente para qual apartamento estava indo a moça que acabara de conversar com ela. Teve três dígitos como resposta: “203”. Evilásio repetiu o número para si mesmo, respirando fundo e se perguntando se deveria chegar arrombando a porta. Não, ele não teria força para tanto e ninguém iria abrir se ele simplesmente batesse, a não ser que fossem amantes muito descuidados. Perguntou para a recepcionista se ela tinha uma chave reserva, recebendo então a resposta de que se ele tivesse interesse no quarto poderia pegá-la com a própria moça que acabara de chegar, pois ela apenas estava lá para conferir as acomodações, já que pesquisava hotéis para acomodar seus tios que viriam do interior. Evilásio então se deu conta de que, de fato, sua esposa comentara que faria esse levantamento para seus familiares, a pedido dos próprios. Embaraçado e temendo que Pamela o flagrasse ali, tratou de entregar uma nota de R$ 50,00 à recepcionista, ordenando "eu não estive aqui, ninguém esteve aqui". Saiu rapidamente do hotel, entrando em seu carro e dando uma ré para esperar a esposa também tomar a rua.

Logo, Pamela saía da garagem a bordo de seu Golf, sendo novamente perseguida por Evilásio. Agora ela pegava a marginal e avançava pela cidade sabe-se lá para onde. Evilásio então viu que seu celular estava tocando, piscando sobre o painel do veículo. Era Pamela. Fechou a janela e abaixou o som do rádio, tentando se concentrar para aparentar normalidade. Atendeu. Pamela perguntou se ele viria almoçar em casa, Evilásio respondeu que não seria possível, pois naquele dia estava uma loucura no trabalho. Ela então comentou que almoçaria num shopping e ligou justamente para perguntar se ele se importaria de almoçar perto do trabalho. “Imagina”, respondeu Evilásio, “tudo bem, amor”. Pamela perguntou se Evilásio queria que ela comprasse algo para ele e explicou que aproveitaria para enviar as fotos do filho pelo correio, pois foram mandadas pela colônia de férias e a avó do garoto certamente gostaria de vê-las. Evilásio indagou por que não mandava por e-mail, mas já sabia a resposta: a mãe de Pamela não tinha computador. Ela recomendou que ele se alimentasse bem, disse que estava com um pouco de enxaqueca e se despediu. Evilásio ficou certo de que aquele telefonema tinha a única e exclusiva intenção de rastrear sua presença em casa, para Pamela saber se poderia encontrar seu amante já na hora do almoço.

Suas suspeitas foram se confirmando quando viu Pamela estacionar seu carro na frente de uma sex shop. Evilásio conseguiu um espaço para parar seu veículo do outro lado da rua. Viu Pamela sair, acionar o alarme e dar a volta no carro. Evilásio sabia que ela não assumiria estar comprando algo para usar com o amante, mas sim que era uma surpresa que estaria fazendo para o marido. Decidiu então que esperaria ela fazer as compras ao invés de dar um flagrante dentro do estabelecimento. Só que Pamela não entrou na sex shop, e sim em uma farmácia ao lado. Evilásio forçou a visão para ver o que ela iria comprar, tinha certeza de que seriam preservativos ou KY. Errou. Pamela comprou seu tradicional remédio contra enxaquecas (uma caixa verde com tarja vermelha muito fácil de identificar), abrindo ali mesmo um copo de água mineral e tomando um comprimido.

Pamela voltou para o carro e Evilásio recomeçou a discreta perseguição. No estacionamento do shopping, ficou a três carros de distância ao passar pela fila da cancela eletrônica, perdendo o Golf da esposa de vista. Ficou circulando por um bom tempo no estacionamento, mas não conseguiu encontrá-la. Deixou seu Peugeot numa vaga bem distante da porta de acesso ao shopping, e correu para dentro do estabelecimento, apressado e ao mesmo tempo cuidadoso para encontrá-la sem ser visto.

Depois de muita procura, avistou Pamela entrando numa loja de roupas femininas. Evilásio estava certo de que compraria lingeries. Ficou na frente da vitrine, fazendo de conta que apreciava as peças em exposição, mesmo sabendo que causaria estranheza nas vendedoras se ficasse naquela condição de observador por muito tempo. No lado interno da loja, viu a esposa sendo atendida e apreciando calças jeans e blusas. Todas peças comportadas. Despediu-se da vendedora e caminhou rumo à porta do estabelecimento, fazendo Evilásio correr para a frente de uma loja de artigos de informática, ficando de costas e com a cabeça baixa, encolhida entre os ombros.

Evilásio foi perseguindo Pamela num cuidadoso distanciamento de duas lojas entre ambos. Ela parava para olhar uma vitrine, ele fazia o mesmo imediatamente, e assim foram caminhando. Intrigado, Evilásio percebia que nenhuma das vitrines vistas por Pamela eram comprometedoras, ela parava para ver relógios, sapatos, jóias, óculos, luvas, objetos de decoração e até chapéus femininos. As suspeitas só voltaram quando ela entrou em uma agência de viagens. Para onde ela queria ir? Suspeitíssimo. Evilásio ficou à espreita, olhando de longe pelas paredes envidraçadas, mas sem conseguir avistar direito a esposa. Olhou o relógio e percebeu que o horário do almoço já avançava. Pensou em pegar um pão de queijo para enganar a fome enquanto Pamela conversava lá dentro sobre a viagem misteriosa. Mas ela logo saiu da agência, caminhando pelo corredor em direção à praça de alimentação. Evilásio ficou em dúvida, não sabia se entrava na agência para perguntar aonde a esposa queria viajar ou se continuava seguindo-a. Temeu perder seu rastro e optou pela perseguição.

Na praça de alimentação, foi para a fila do McDonald’s e ficou a uma boa distância vendo a esposa encher o prato de salada num buffet por quilo. Evilásio sentou-se por trás de uma pilastra que dificultava sua visão mas tinha a vantagem de camuflá-lo muito bem. Vez ou outra, esticava o pescoço para apreciar a esposa se entretendo com chicórias, alfaces e tomates-cereja. Até que a viu atender o celular. Conversou sorridente com alguém do outro lado da linha que Evilásio tinha certeza: era ele. Depois de algumas esticadas de pescoço, viu Pamela desligar o aparelho e voltar a comer seus verdes. Agora, restava saber se ela havia combinado de encontrá-lo em algum lugar ou se ele viria até ela. Passados alguns minutos, chegava um rapaz bem aparentado que se sentou em frente a Pamela. Agora Evilásio não aguentava mais ficar esticando o pescoço de quando em quando, resolvendo sentar-se em outra mesa que lhe dava uma visão privilegiada. Apesar de não ter mais a pilastra obstruindo o contato visual, a nova mesa ainda ficava muito distante, dando apenas para perceber que os dois conversavam animadamente. Ela sorrindo, muito simpática, ele retribuindo e precipitando o corpo para a frente a fim de falar mais próximo. Deixou com Pamela uma carta ou documento que ela apreciou e logo guardou em sua bolsa. O rapaz se levantou, despedindo-se de Pamela com um discreto beijo no rosto (para não dar bandeira em público, Evilásio tinha certeza) e seguindo seu caminho pelos corredores do shopping. Evilásio resolveu segui-lo.

Já não suportando mais a tensão, resolveu abordar o elegante e misterioso rapaz. Colocou-se à sua frente e perguntou de onde ele conhecia a moça com a qual acabara de conversar. Sem entender a abordagem um tanto direta e beirando a truculência, ele apenas respondeu que ela era cliente de sua agência de viagens, que ele ligou para avisar que Pamela esquecera lá a cotação de um pacote, pedindo que voltasse para buscar, mas que, ao ser informado por ela que estava na praça de alimentação, resolveu ele próprio levar pessoalmente o documento. Insatisfeito, Evilásio indagou para onde era o pacote de viagens. Soube então que eram algumas propostas, para praias do nordeste e de Santa Catarina, para duas pessoas, pois ela estava planejando uma viagem surpresa para fazer com o marido. Não teve como Evilásio não se sentir desconcertado com as respostas dadas pelo agente de viagens, lembrando que Pamela vivia realmente dizendo que ele estava estressado e que precisava de uma viagem de férias. Pediu desculpas e voltou a caminhar em direção à praça de alimentação, sem dar maiores esclarecimentos ao rapaz.

A mesa de Pamela agora estava vazia. Evilásio voltava então à arriscada brincadeira de procurar pela esposa ao mesmo tempo em que se cuidava para não ser visto por ela. Mas os minutos iam correndo e nada. Uma perseguição ingrata, sem pistas ou rastros. Quando já ia desistindo de sua odisseia de shopping center, resolveu parar e refletir sobre quais seriam os locais suspeitos. Talvez o cinema, seria um lugar (quase) perfeito para namorar sem o risco de ser flagrada. Se fosse essa a escolha, ele não saberia o que fazer, pois a essa altura Pamela muito provavelmente já estaria em uma das dez salas, sendo que ele não teria como saber em qual delas entrou. A segunda suspeita seria a de que Pamela foi embora do shopping, estando agora nos braços de seu amante em alguma cama redonda. Também neste caso, não haveria o que pudesse fazer. A terceira opção era de que Pamela entrara em alguma loja onde pudesse comprar presentinhos para seu amante. Mas daí as opções seriam inúmeras. Resolveu tomar a atitude mais simples e óbvia: ligar para Pamela e indagar onde ela estava. Foi o que fez. Pamela atendeu, respondendo simpática que ainda estava no shopping, na Saraiva, vendo livros que precisava comprar para a faculdade. Que já havia impresso as fotos numa das lojas e que logo mais as enviaria para a mãe. Questionado sobre o motivo da ligação, Evilásio apenas conseguiu responder que ficou com saudades. Pamela se desmanchou de meiguice ao telefone, dizendo que há muito ele não fazia isso e que ficara muito feliz com a atitude. Despediram-se e Evilásio correu para a escada rolante, atropelando alguns passantes até chegar ao segundo piso, onde ficava a loja da Saraiva.

Após procurar e procurar, Evilásio começou a dar por certo que Pamela havia mentido. Realmente deveria estar na tal cama redonda àquelas horas. Mas novamente se surpreendeu ao identificá-la na seção de CDs e DVDs ouvindo alguns discos para escolher quais comprar. Evilásio pegou o primeiro livro que viu na seção de auto-ajuda e abriu-o em frente ao rosto, olhando a esposa por cima de um exemplar de Lair Ribeiro. Pamela agora se deslocava pela loja, olhando para as prateleiras aleatoriamente. Logo iria para os livros da seção de sexo, deduziu Evilásio. Errou novamente, Pamela chegava na fila do caixa para pagar e colocar em uma sacola livros e outros produtos que escolhera enquanto o marido a procurava desesperado pelos corredores do shopping.

Fora da loja, agora Pamela caminhava até o banheiro feminino. Evilásio comprou um sorvete de casquinha e ficou disfarçando próximo à porta. Pamela saiu ainda ajeitando os cabelos. Andou até a franquia dos Correios. Como a loja era muito pequena, Evilásio não se arriscou em entrar. Apenas ficou aguardando a saída de Pamela, escondendo-se por trás de um quiosque de perfumes. Algum tempo depois, ela saía, pagava o estacionamento do shopping e avançava em direção à garagem, tudo acompanhado por Evilásio, já cansado de seu jogo de gato e rato, decepcionado e aliviado com o resultado de sua investigação.

No caminho para casa, ainda levantou a hipótese de que Pamela se encontraria no trajeto com aquele amante cuja existência já começava a ser realmente descartada por Evilásio. Algum tempo depois, mais uma vez contrariando as suspeitas de Evilsáio, ela entrava com seu carro na garagem de casa. Ele ainda precisava esperar pelo menos meia hora, pois estava muito cedo para chegar do trabalho. Decorridos os 30 minutos, Evilásio saiu da esquina e chegou em seu lar. Foi recebido com beijos e um CD de MPB dado de presente. “Tem mais surpresas?”, ele indagou, “quem sabe...”, ela respondeu. Evilásio não sabia quando ela falaria da viagem que fariam, só sabia que ele próprio não poderia tocar no assunto, pois Pamela descobriria que o marido a seguira durante o dia.

Naquela noite, Evilásio ainda deu uma última investida, revirando a bolsa da esposa enquanto ela dormia. Não achou nada de suspeito, apenas seu estojo de maquiagem, um par de brincos de pérolas, a correntinha com pingente de maçã que ele lhe dera no aniversário, os óculos de grau, um prendedor de cabelo em formato de gravata borboleta e algumas balas de aniz. E ainda encontrou os tickets dos Correios e da Saraiva, além da tal carta do pacote de viagens que ela cotara para fazerem juntos. Voltou para a cama e dormiu abraçado a Pamela, com os lábios suavemente colados à testa da esposa, sentindo-se ao mesmo tempo culpado e feliz.


Três dias depois, no horário de almoço, quando Pamela foi ao supermercado buscar algo que faltava para a refeição, tocaram a campainha e Evilásio colocou a TV no mute para ir até a porta. Era um carteiro devolvendo uma caixa que não chegara a ser entregue porque o destinatário não se encontrava em casa para recebê-la. Evilásio estranhou, mas leu o nome de sua esposa no remetente, aceitando a correspondência de volta, deduzindo se tratar das fotos enviadas para a sogra. Despachou o carteiro, fechou a porta e levou a caixa até a mesa de centro na sala de estar. Virou-a e conferiu o destinatário, cujo nome ele na verdade desconhecia: Murilo, um cara que morava longe, pelo que indicava o endereço. Abriu a caixa e encontrou em seu interior um DVD do filme “Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças”. Foi a vez de abrir a caixa do filme. Deparou-se então com uma minúscula calcinha de cotton roxa com lacinhos laterais. A mesma que vira Pamela vestindo há três manhãs enquanto ele fingia dormir. Pelo cheiro e aparência, ficava evidente que a peça havia sido usada, provavelmente por um dia inteiro. Ao seu lado, um bilhete com a caligrafia de Pamela no qual se lia: “Para você matar saudades do meu gosto”. Neste momento, Evilásio teve a ideia de colocar em prática seus dotes de químico industrial.



Mario Lopes

Nenhum comentário: