Há alguns anos, uma poetisa curitibana escreveu um relato de suas memórias extremamente tocante, tanto pelo realismo da narrativa quanto pelo desencadear surpreendente dos fatos. Luciana do Rocio Mallon contava que era uma menina extremamente rebelde nos tempos de colégio e que isso lhe gerava atritos com colegas de classe, desembocando até mesmo em segregação, agressão física e humilhação. Sua franqueza era desconcertante: ela revelava que, por ser de família bastante humilde, foi até uma lixeira num intervalo de recreio resgatar os restos de um lanche para se alimentar, o que de pronto resultou em deboche das crianças com as quais dividia a sala de aula. No espírito bateu-levou, tratou de partir para cima dos seus desafetos e, por conseguinte, foi sumariamente levada à secretaria para permanecer com a psicóloga da escola pelo resto do período. Mas, ao invés de lhe dar uma advertência ou corretivo, a profissional apenas disse: “vamos agora praticar rockterapia”. A menina não entendeu, mas então observou curiosa sua instigante tutora temporária colocando no aparelho de som uma música do Queen. A canção a tocou de pronto, mesmo sem compreender o que Freddy Mercury e sua trupe comunicavam com aquela profusão sonora que beirava a histeria. Esta não foi sua única sessão de rockterapia, pois Luciana se meteu em novas encrencas. E toda vez era a mesma coisa: a menina era levada à psicóloga, que soltava algum som irado para aplacar sua dor, tratar seus ferimentos íntimos e mantê-la viva, com o espírito inflamado e cheio de coragem para enfrentar depressão, crueldade e outros sentimentos dissonantes. Claro que todo esse conflito de reações interiores não era da percepção consciente de Luciana, mas sua saúde emocional estava sendo devidamente alimentada naquele momento, regada por ondas sonoras. Um resgate de auto-estima feito por solos de guitarra e gritos agudos.
The Smiths – How Soon Is Now
A banda atingiu tal grau de carisma que uma enquete chegou a apontar o vocalista, Morrissey, como “o ser mais maravilhoso do mundo” (?!). E mais, ele é considerado atualmente o mais importante inglês vivo. Suas letras, embaladas pelas melodias do guitarrista Johnny Marr, falam de timidez, da dificuldade do primeiro emprego e de dores cotidianas quase inconfessáveis. Sensível, o vocalista é ainda um engajado militante vegetariano, proibindo o consumo de carne em seus shows. Completavam a banda Andy Rourke e Mike Joyce, que esteve no Brasil recentemente discotecando em boates pelo país. Subindo ao palco sempre com um ramalhete de flores no fundilho das calças, Morrissey liderou a banda que foi considerada a redenção do pop. A música do clip abaixo foi considerada a mais triste de todos os tempos. Mesmo assim é terapia pura para os fãs.
Pink Floyd – Confortably Numb
Os pais da psicodelia tiveram um histórico nada compatível com o de uma banda que possa oferecer algo de positivo a seus fãs. O mentor do início do grupo, Syd Barrett, era um junkie inveterado. Usaram tantas drogas que nem lembram daqueles primeiros tempos. Fizeram tantos experimentalismos sonoros que até o ruído íntimo de órgãos humanos foi usado como música. E, mesmo com toda a sua carga auto-destrutiva, a banda acabou ficando tão influente que gerou a trilha sonora de um ícone cinematográfico: “The Wall”, protagonizado pelo músico Bob Geldof. Em algumas músicas, o Pink Floyd exorcizava o fantasma do pai de Roger Waters, guitarrista cujo progenitor morreu em campo de batalha. Também disparava seus instrumentos contra o sistema de ensino repressor, a intolerância e o consumismo. Tinham tanto a dizer que seu som foi até para os confins do espaço sideral a bordo da sonda Voyager.
Radiohead – No Surprises
Reza a lenda que em todo ano terminado com o número 7 surge um disco antológico no rock. Isso aconteceu em 1997 com “OK Computer”, o álbum aplaudidíssimo em pé (ou de joelhos) pelo mundo todo. Com letras abordando paranóia, medo e até ternura, o Radiohead legou ao final do milênio passado uma obra seminal. Sua melancolia rasgada encontrou eco no cérebro aturdido de milhões de jovens de variadas nacionalidades, tendo, em comum, a noção de impotência perante uma engrenagem social que transforma suor e lágrimas na graxa que a lubrifica. Eis um trecho da música deste clip: um emprego que te mata lentamente / feridas que não vão cicatrizar / você parece tão cansada e feliz / bote abaixo o governo. Assista ao clip e prenda a respiração. Quando ele se encerrar e você refletir bem, provavelmente perceberá que, mesmo na suavidade, Radiohead não é terapia de consolo, e sim de choque.
Killing Joke – A New Day
Com nomes de músicas sugestivos como “Prozac People”, o Killing Joke surgiu como uma influente banda britânica do pós-punk. Agressivos e até repulsivos no palco, eles sustentavam nessas características suas similaridade com Sex Pistols e outras vedetes underground daquele momento. Porém, mostravam ser verdadeiramente politizados e transpareciam erudição em suas referências. Eram truculentos tanto na aparência quanto no peso do som e na mensagem de suas letras. Religião, nazismo, Niesztche e outras usinas de espinhosas controvérsias surgiam em seus discursos com tom pouco conformista. Até na Guerra do Iraque os caras meteram a palheta. Na verdade, a não-explosão do Killing Joke reside no fato de o som não ser sujo demais ao ponto de ser punk nem refinado demais ao ponto de ser cult. Mas ouvintes mais argutos se identificam, pensando “não sou só eu que estou indignado com essa merda”.
David Bowie – Heroes
A partir dele, esquisitões do mundo todo passaram a saber se aceitar. E mais: aprenderam que ser esquisitão pode ser fashion. Com pupilas de cores diferentes e figurinos extravagantes durante o período da era glitter (mais precisamente em sua fase Ziggy Stardust), Bowie era o andrógeno que todos admiravam e a censura temia. A pudica sociedade norte-americana tolerava os shows de sandice e violência com Alice Cooper e suas jibóias no palco, mas não sabia como classificar aquele britânico que transpirava sexo e drogas sem fazer apologias explícitas em seu rock’n roll. Carismático, encontrava empatia por parte do público mais intelectualizado, retraído e inconformado. Foi personagem (interpretando ele mesmo) e trilheiro de “Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituta”, onde cantava: “nós podemos ser heróis pelo menos por uma noite”. Inspirador até para quem está no fundo do poço.
Tear For Fears – Shout
Os nomes, tanto da banda quanto desta canção, foram inspirados na teoria do Grito Primal, do psicanalista Arthur Janov, que, a grosso modo, indica a importância de se berrar para expulsar os demônios interiores. As letras da banda tocavam em assuntos que iam da vontade de se viajar pelo mundo à preocupação com a violência contra a mulher, transitando por traumas menores, como a dificuldade de se chegar naquela pessoa por quem se está apaixonado. Foram das patologias globais (“Mad World”) à cura pelo amor (“Seeds Of Love”). Roland Orzabal e Curt Smith se separaram mas seu som pop bem produzido é uma excelente conciliação entre forma, conteúdo e originalidade. Só que é terapia para quem está bem integrado, havendo neles quase nada de subversivo. No clip abaixo, você poderá ver a banda ladeada por adeptos do Grito Primal. Então, você já sabe: qualquer coisa, dê um grito.
REM – Shiny Happy People
Só o fato de o nome da banda fazer referência ao momento em que estamos sonhando (REM = Rapid Eye Movment, nosso estágio de sono mais profundo) já indica que o quarteto gosta de incursionar na psique humana. Mas vai além, o REM sempre foi o queridinho da crítica por conciliar melodias memoráveis com letras sensíveis, politizadas e libertárias. O vocalista Michael Stipe foi protagonista de diversas façanhas: mostrou que é possível ser um pop star gay sem afetação ou necessidade de ostentar extravagância, declarou-se pansexual (o que significa amar a tudo e a todos indistintamente), mostrou que não é preciso escancarar sorrisos para ser simpático e, de quebra, tornou-se mentor de uma geração sem dizer me siga, pelo contrário, a mensagem da banda é a de se trilhar o próprio caminho. A música deste clip é uma apologia ao amor e à felicidade com a participação da B-52’s Kate Pierson.
Apresentação dispensável, comentários idem. Mas, como nunca é demais elogiar o maior quarteto da história (e aqui não estamos falando só de música), faz-se necessário (re)afirmar que Beatles é terapia planetária. Incursionaram pela psicodelia em “Sargent Pepper Lonely Heart’s Club Band” e extrapolaram no álbum branco. Mas em “Yellow Submarine” eles chegaram ao clímax em suas influências lisérgicas, cantando o amor e a compaixão de forma tão inspirada e criativa que permanecem absolutamente insuperáveis. A letra da música abaixo, que fala de uma solitária que cata o arroz jogado em um casamento e de um padre redigindo sermões que ninguém ouve, é apenas uma célula de um organismo complexo, engenhoso , lírico e absolutamente inexplicável surgido nos anos 60 em Liverpool. “No final das contas, todo o amor que você dá é igual ao amor que você recebe”, John Lennon.
New Order – True Faith
Esta é, sem nenhuma chance de errar, a banda que fez a carreira mais contrastante da história do pop. Foi da mais sepulcral depressão à mais extasiante euforia em menos de uma década. Iniciou como Joy Division, um angustiado grupo de Manchester liderado por Ian Curtis, que se matou por vivenciar as letras traumáticas que declamava nos palcos. Os remanescentes da banda criaram o New Order e, álbum a álbum, foram externando uma faceta absolutamente inimaginável: exuberante, viva e... alegre. Se antes seu instrumental era rudimentar e bruto, em pouco tempo se tornou tecnológico e clean. Se no início a mensagem era “no solution”, logo se tornou “dance, dance, dance”. E nunca foram acusados de alienação por conta disso. Principalmente por se tornarem a banda mais independente do planeta, talvez a única que faça aquilo que realmente quer. Assim como deve ser a vida.
Legião Urbana – Perfeição
Renato Russo se tornou praticamente um messias da música brasileira. Sem ter nenhum medo de pieguice, tratou de temas surrados como rotina conjugal, amor e fraternidade, dando adornos tão delicados e originais que se tornava impossível classificá-lo como brega. Tinha a audácia de misturar budismo, cocaína e relações familiares no mesmo saco. Fazia shows marcados por discursos polêmicos e incitação ao vandalismo. E compôs tantas músicas de sucesso popular que um dos álbuns da banda, “Quatro Estações”, teve todas as suas faixas tocadas nas rádios – fenômeno só comparável mundialmente ao disco “Thriller” de Michael Jackson. E o que os admiradores mais sentiam em suas composições era a verdade com que Renato cantava, ele era legítimo. A música abaixo é um sarcástico check-list de incontáveis frustrações coletivas. Só que com final redentor.
Menções honrosas: