domingo, 23 de novembro de 2008

Crava os dentes




Duas torres. Ele tinha certeza. Eram as copas em aço escovado ou outro nobre metal de vultoso lustre espelhando os raios solares até a remota distância de sua propriedade. Avistara ainda antes da curva que contornava o araçá do alto da colina, quase na última cancela. É certo que flagrara a visão de relance e pelo retrovisor, mas sabia que nada naquela paisagem semi-virgem que fosse natural refletiria com tal fidelidade o brilho sujo de civilização. Seu horizonte até então asséptico em traços de colonização humana estava agora violado por dois pequenos pontos distantes, um par de ectoplasmas materializando um impulso maciço incessante, truculento e sem o mínimo indício de orquestração.
Já quase chegando à casa de tijolos à vista que concluíra há dois anos no alto da chácara, refletia naquele petulante sinal de progresso no meio da paisagem. Depois dos anos Obama e do fracasso de seus sucessores em conter a crise econômica mundial, que sempre se revelou tal qual um monstro invisível, incontrolável e em perpétua mutação para se camuflar de seus oponentes, Hainner sabia que sua única solução era a mesma já receitada nos filmes de ficção pós-apocalipse: montar um bunker bem abastecido de água e comida, esperando o dia em que as escopetas seriam postas à prova pela proximidade dos mortos-vivos. Ele só não se conformava porque, se desconhecia a chave para todos os problemas da humanidade, ao menos tinha a certeza de possuir a solução para a fome no mundo. E ela estava a bordo de seu carro a hidrogênio. Mas sabia que se tratava de tabu secular, milenar, atávico e, literalmente, indigesto.
Estacionou próximo à porta dos fundos, já com os pneus gordos de lama acumulada durante a subida. O sol começava a se deitar na cabeceira do horizonte. As pernas de Hainner formigavam pelas horas de revezamento entre acelerador, embreagem e freio. Desativou o sistema de alarme pelo leitor de íris ao lado da porta da casa e arregaçou as mangas da camisa para começar a descarregar o veículo. Abriu o porta-malas e tirou de dentro dele as sacolas de supermercado, levando-as para o corredor que fazia divisa entre a despensa e a cozinha. Depois foi a vez da caixa de isopor, de fundo frio e úmido, com peso maior do que ele parecia ter sentido ao abastecê-la ainda na cidade. Certificou-se de ter trancado bem seu carro, acionou o alarme, levantou a caixa de isopor deixada no chão, sentindo seu fundo gelado e sujo de gramíneas e alguns pequenos nacos de terra. Entrou na casa de costas para a porta, cuidando para não raspar com a caixa nas paredes, temendo desequilibrar-se com o atrito e assim deixá-la cair. Depois, depositou-a sobre a mesa de madeira no centro da espaçosa cozinha, que divisava com a sala de jantar sem paredes, apenas tendo por demarcador de fronteira um balcão antes com tampo de mármore para se cortar carne, mas que com o tempo Hainner substituiu por uma prancha de imbuía sugerida e doada por um amigo de seu pai, Joseph, o contador de histórias bem humorado que nunca era levado a sério, posto que só falava a verdade.
A cozinha de Hainner era farta em apetrechos culinários. Embora o ferramental fosse rústico em acabamento, nenhum chef sentiria falta de artigos de cutelaria para o preparo de carnes, quaisquer que fossem. Um luxo que ele nunca aproveitara devidamente, não que lhe faltassem habilidades para aprimorar o hobby que era herança de família. Suas vindas cada vez mais raras para a chácara, com prazos se dilatando entre uma ocasião e outra devido a sua agenda sempre lotada de compromissos profissionais, tornavam seus dotes de culinarista quase que uma promessa em vias de não se cumprir antes de sua aposentadoria. Mas ele resolveu que não iria mais esperar pelo passar daqueles poucos anos que o separavam de se radicar em definitivo para aquelas terras dos confins. E o fez de forma radical, permitindo-se a regalia de fugir do meio urbano antes mesmo de fechar a semana. E mais: programando, com requintes de meticulosa ousadia, um banquete ao mesmo tempo egoísta e incomum, em que juntaria na mesa os prazeres do paladar com a acidez da saudade.
Abriu os armários da despensa e fez inspeção visual para certificar-se do arsenal de condimentos que teria à disposição. A profusão de aromas logo saltou para todo o ambiente, num misto de coentro, pimentas, cheiro verde, alho, gengibre, açafrão, majericão e outras especiarias que gritavam ao olfato. Orgulhou-se de ter cada condimento devidamente embalado em jogos de frascos devidamente etiquetados, todos bem abastecidos e dando a Hainner a garantia de poder se fartar em possibilidades e combinações. Depois, recorreu a suas sacolas de supermercado, dispondo-as sobre a mesa de madeira e certificando-se de seus conteúdos: algumas frutas, uma garrafa de pinot-noir, arroz selvagem, batatas e outros itens coadjuvantes de sua ceia. Os protagonistas esperavam por sua apreciação na caixa de isopor azul clara, que já gotejava a transpiração do gelo acomodado em seu interior.
Sem pressa, foi aos poucos desgrudando a fita adesiva transparente que colava a tampa da caixa. Antes de abri-la recorreu às gavetas da pia, para encontrar, na terceira de baixo para cima, um avental de cozinha tão alvo e engomado que poderia ser usado por um neuro-cirurgião. Vestiu-o, certificou-se de as mangas estarem mesmo bem arregaçadas e voltou novamente as atenções à sua caixa de Pandora. Tirou a tampa de modo cuidadoso, como quem desvenda uma relíquia, depositando-a verticalmente sobre uma cadeira de vime que restava silenciosa próxima ao fogão a lenha. Afastou as pedras de gelo que insistiram em não derreter ou se quebrar com o sacolejar da viagem. Avistou então suas iguarias cuidadosamente embaladas em recipientes plásticos transparentes. Tateou-as com as pontas dos dedos, sentindo estarem tão geladas que cogitou vestir as mãos com luvas de borracha. Pressionou e sentiu a consistência ainda tenra, embora cristalizada pela baixa temperatura. Esfregou os dedos médio e indicador sobre a superfície plástica, tentando desembaçá-la. Avistou então um mamilo, quase roxo e retraído, murcho pelo frio e pela pressão dos cubos de gelo que lhe fizeram companhia por todo o tempo de viagem. Começou então a operação de desenvase, retirando aquele par de seios bem menos volumosos do que os que conhecera ao natural, joviais e de bicos tão altivos que pareciam intimá-lo mesmo quando por baixo de um tecido leve de penhoir, fazendo-se presentes com discreto mas indisfarçável volume. Hainner colocou o recipiente plástico contendo os seios na pia e abriu a torneira, deixando a água a fazer o papel de resgatar cor, volume e consistência. Voltando à caixa de isopor, levou as mãos até outro par de carnes, desta vez de nádegas, enrugadas e com pigmentos quase azulados pontilhando a superfície alva e bojuda. Mal lembravam a sinuosidade hipnótica que contornava aquele tão bem esculpido relevo de mulher. Era agora uma peça de açougue que Hainner também tentava reviver debaixo de água corrente. Em seguida, retirou da caixa um recipiente plástico contendo todo o órgão reprodutor: vulva, duto vaginal, trompas, ovários e útero. Todo o conjunto aparentava agora uma composição de carnes e filamentos de tecidos difícil de ser identificada e pouco preservando a similaridade com os esquemas gráficos desenhados para iniciar adolescentes no conhecimento da própria anatomia. Por fim, Hainner retirou um copo plástico tampado que continha um pouco de leite retirado das glândulas mamárias. Observou-o contra a luz para perceber se ainda estava congelado, dando-se conta então de que havia reconstituído sua consistência líquida e que até vazara um pouco pela borda da tampa. Retirou o copo de dentro do plástico e colocou-o no interior da geladeira, para esperar até a hora de servir a refeição. Molhou acidentalmente o indicador ao efetuar a operação, lambendo-o mas sem sentir nenhum sabor, apenas uma consistência um pouco empedrada que lhe desceu arranhando levemente a garganta.
Agora, com todas as peças devidamente dispostas debaixo d’água, Hainner passava a cogitar como iria prepará-las. Tirou a caixa de isopor de cima da mesa, dispondo sobre ela uma tábua de carne e alguns recipientes plásticos puxados aleatoriamente de dentro de um dos armários. Sobre o tampo de imbuia que divisava a cozinha da sala de jantar, esvaziou o conteúdo das sacolas de supermercado e distribuiu frascos e galeteiros de condimentos que retirara da despensa. Hainner então ligou o aparelho de som, decidindo ouvir música das antigas para fazer fundo de sua experiência gastronômica: Modest Mouse.
Resolveu começar pelas nádegas, preparando-as com cogumelos. Retirou-as do recipiente plástico, depositando o par em uma travessa de vidro, já percebendo ter a água surtido efeito na recomposição da cor e volume. Virou-as com a parte de carne para cima, limpando inicialmente as gorduras e cortando em escalopes finos e pequenos com uma faca corta-fiambre, que logo se mostrou muito desajeitada para a função, tendo de substituí-la por uma faca para trinchar. Tarefa cumprida, pôs a porção para marinar com azeite e o sumo de um limão. Acrescentou sal, pimenta e um dente de alho esmagado. Depois, partiu para os cogumelos, cortando-os em fatias grossas, pois apreciava a consistência, descascando em seguida uma cebola e picando-a finamente. Interrompeu a operação para abrir a garrafa de pinot-noir. Foi até até a sala de jantar retornando com uma taça retirada de dentro da cristaleira. Apreciou o aroma da rolha e serviu-se da bebida, sorvendo seu sabor levemente amendoado e de taninos expressivos que lhe formigavam a parte superior e interna das gengivas. Sentiu sua acidez mordiscar o fundo da boca, lhe atiçando o maxilar bem no encontro das mandíbulas. Pronto, sentia-se mais instigado a continuar sua experiência.
Antes de fritar os escalopes que fatiou daquelas nádegas opulentas, decidiu encontrar o destino culinário mais apropriado para o par de seios. Como no caso das nádegas, virou os seios com a carne para cima, limpando as gorduras, sentindo então serem as peças repletas de vasos cavernosos que dificultavam a tarefa. Decidiu assimilar que era aquela a condição de preparo do alimento, aceitando arcar com alguma dificuldade em rasgá-lo com os dentes ou digeri-lo. Depositou-os com os mamilos para cima em uma forma metálica. Pegou o ralador que ficava pendurado sobre a pia e assim espargiu sobre o par de carnes o pó de um dente de alho, seguido por pitadas de sal e pimenta. Também temperou com noz-moscada e uma colher de sopa de hortelã picado. Por fim, quebrou um ovo em uma xícara, separando a gema para usá-la besuntando os seios com sua viscosa e dourada consistência. Untou um tabuleiro com margarina, distribuindo no centro uma circunferência de papel alumínio. Dispôs sobre a superfície o par de seios e regou-os com um fio de azeite e uma dose do pinot-noir. Cortou três batatas e afundou no centro de cada uma alguns grãos de sal grosso, distribuindo as fatias ao redor dos seios. Levou para assar em forno quente, ficando então por conta de preparar o terceiro prato de seu banquete.
Decidiu fazer um ensopado com o órgão reprodutor. Tirou-o da embalagem plástica e lavou-o mais um pouco em água corrente, sentindo o muco se desprender da carne. Não demorou para duto vaginal e útero recobrarem a consistência flexível, desmaiando sob as mãos cuidadosas de Hainner, que sentia a carne mais e mais solta à medida que ocorria o descongelamento. Colocou a peça toda em uma panela com água, levando-a ao fogo. Enquanto deixava cozer, voltou novamente sua atenção ao escalope feito de nádegas.
Derreteu margarina em uma frigideira, juntou cebola e deixou cozer ao lado da panela onde acomodara os genitais. Ficou por um tempo apreciando o vinho e observando as iguarias entrando em processo de ebulição, enquanto seus aromas começavam a tomar conta do ambiente. Adicionou cogumelos na frigideira, saltitando-os por um tempo e depois colocando as roliças fatias em uma caçarola. Logo mais iria misturar a combinação aos escalopes, mas agora precisava conferir o andamento do assado de seios: abriu o forno e regou as peças com o molho que ia se formando, aproveitando a oportunidade para espargir mais uma dose de pinot-noir sobre o apetitoso par.
Escolheu como único acompanhamento o arroz selvagem, que retirou da embalagem e deixou cozinhar normalmente, até a casca escura se soltar do grão como uma fina pele que salta deixando surgir a parte alva de seu interior.
De volta aos genitais que estava cozendo, retirou-os do fogo e os escorreu em água fria novamente. Agora sentia toda a composição, da vulva aos ovários, elástica e consistente, fazendo Hainner se encantar com a retomada do rubor mas temendo por gerarem um prato de difícil mastigação. Foi então que se deu conta de ter feito a opção certa ao se decidir pelo ensopado, posto ser o tipo do preparo em que poderia fatiar a carne em nacos bem pequenos. Foi o que fez. Cortou em tiras mínimas, mas teve o capricho de contornar o bico do clitóris com precisão cirúrgica, deixando-o como um brinde a ser encontrado posteriormente em meio ao caldo. Sentiu o crespo dos ovários na ponta dos dedos quase que como um bócolis em formato de carne. Raspou o interior do útero com a unha do indicador, sentindo sair dele uma leve camada esbranquiçada, que não se deu ao trabalho de observar mais ou mesmo de querer lavar melhor. As trompas foram fatiadas de forma a quase lembrar os anéis de lula que tanto apreciava em suas viagens de veraneio, principalmente quando gratinados e no acompanhamento de vinho branco. Deixou aquela porção descansando na tábua de carnes, passando então a picar uma cebola e derretendo margarina em uma caçarola, juntando tudo e temperando com sal, pimenta, noz-moscada e uma pitada de açúcar. Adicionou água, um pouco de leite e deixou arrefecer. Mais um gole de vinho, mais uma olhada nos seios ao forno, mais uma vez atenções voltadas ao escalope de nádegas. Agora, era o momento de fritar a carne misturada à cebola e aos cogumelos. Trocou o som no aparelho por jazz: John Coltrane. Vez ou outra recorria ao ensopado de genitais para mexer a mistura, evitando que os ingredientes se concentrassem no fundo da panela. Enquanto os pratos se preparavam por si só, adiantou-se em arrumar a mesa. Separou sua melhor louça e os talheres da prataria que há muito restavam escondidos e preguiçosos no armário da cristaleira. Tirou da gaveta da cozinha o guardanapo de pano com suas iniciais bordadas e voltou a encher a taça de pinot-noir. O porta-copos fazia combinação com os suportes metálicos para os pratos quentes. Como base da bela mesa, uma toalha de crochê com pontos tão fechados que praticamente não se permitia avistar a superfície abaixo dela. Deixou ao lado de seu prato uma cumbuca de barro que iria usar como recipiente do ensopado. Também já trouxe da geladeira o copo com leite materno, agora mais próximo da consistência natural do que quando chegara na chácara. Deu-se ao luxo até mesmo de dispor ao centro da távola um castiçal de bronze, tendo apenas trabalho de encontrar velas na despensa, por pouco não queimando seu escalope com cogumelos. Correu até um dos armários retirando uma garrafa de vinho do porto, despejando um gole da bebida sobre a frigideira. Esfregou o fundo com uma espátula para se certificar de que os escalopes não estavam grudando na superfície, mesmo sendo ela de teflon. Temperou com um pouco mais de pimenta moída e sal, recorrendo à geladeira para acrescentar à mistura duas colheres de nata. Tampou a panela e deixou em fogo baixo.
Bateu gemas com nata em uma travessa, juntando nela a sopa quente, mexendo a mistura até dissolver a composição. Voltou a levar o ensopado ao fogo, mexendo por mais alguns minutos. Desligou o forno ao perceber que seu assado já estava dourado e crocante. Fez o mesmo com os escalopes e, em seguida, com o ensopado e o arroz selvagem. Seu banquete estava pronto para ser servido.
Deu-se ao luxo de ainda preparar belas composições visuais em cada um dos pratos: ramos de hortelã sobre o assado de seios; alecrim e salvia flutuando sobre o ensopado; e um desenho abstrato com nata adornando os escalopes com cogumelos. Muniu-se de uma luva de pano e levou, um a um, os pratos até a mesa. Acendeu as velas, sentou-se, cobriu seu colo com o guardanapo e respirou fundo para sorver os aromas postos à mesa. Serviu-se inicialmente de uma porção de arroz selvagem, mas sem grande interesse por aquele complemento tão insípido perto dos demais pratos. Tirou o tampo que cobria a travessa dos escalopes e mergulhou sobre eles uma concha que voltou à superfície transbordando de uma generosa porção. Outra concha utilizou para içar pedaços finos de carne submersos no ensopado, preenchendo o conteúdo da pequena cumbuca feita de barro, a mais rude das peças postas à mesa. Para completar a composição de seu prato, utilizou um garfo e uma tesoura de aves para cortar a parte de um dos seios que mais atiçava seu apetite: o cume com o mamilo saliente apontando para o teto.
Após bebericar um gole de vinho, iniciou sua degustação pelo ensopado, sorvendo-o sem o auxílio de talheres, apenas virando a cumbuca de barro sobre os lábios. Sentiu quando lhe vieram à boca os pequenos pedaços de carnes. Percebeu a consistência viscosa lhe amarrar o céu da boca, mordiscando os pequenos nacos que restaram após engolir o cremoso líquido. Percebeu um dos grandes lábios deslizar por sua língua, brincando com o pedaço de carne até rasgá-lo com os dentes da frente e rolá-lo garganta abaixo.
Em seguida, misturou uma porção do arroz selvagem à fritada de escalopes de nádegas com cogumelos. Levou uma garfada cheia do bocado até sua língua curiosa e receptiva, cujas papilas ansiosas absorveram as nuances gordurosas e levemente doces daquela iguaria tão incomum. Hainner fechou os olhos para sentir a suculência daquelas finas tiras de carne. Tentou fazer associação com algum outro alimento e percebera uma semelhança com vitela e cupim, embora o preparo em forma similar a strogonof acabasse por fazer essas percepções sucumbirem na cremosidade da nata e na consistência macia dos cogumelos.
Chegara a vez de provar os seios. De fato a pele ficara com uma leve crocância, mas o interior permanecia tenro e suculento. Partiu diretamente pelo ponto da carne que mais lhe chamava a curiosidade: o mamilo. Hainner recortou-o fazendo um giro de faca apoiado na pressão do carfo, alfinetando seu centro cuidadosamente, apenas para cumprir com a função de ponta do compasso. Levou o bico do seio à boca, repousando-o sobre a língua e assim ficando por alguns segundos. O único sabor aparente foi o da gema do ovo. Passou a mastigá-lo suavemente, levando a carne dos dentes de trás para os da frente, fazendo novamente o caminho oposto e assim ficando, como que em um jogo lúdico e gastronômico. Mas após mascar o mamilo por um tempo, percebeu ser difícil de romper com sua consistência viscosa e resistente. Salivou e tentou deixar a tarefa de corte para os dentes da frente sem êxito, buscando depois trocar pela de esmagar com os sisos, mas novamente sem efeito. Pensou em tirar da boca e deixar em um canto do prato, mas resolveu engoli-lo inteiro, junto com o gole de leite materno que aguardava em um copo pelo momento de ser degustado. O mamilo foi ingerido junto com a branca e gordurosa bebida, tão consistente que chegava a parecer um colostro. Hainner lambeu o fundo do copo, com sua língua tentando tatear todo e qualquer resto da bebida.
Ele se preparava para continuar a refeição quando o som de um carro se aproximando roubou sua atenção. Levantou-se apressado mas cauteloso, cogitando a possibilidade de poder ser um marginal, ou mesmo um policial (hipóteses esta muito mais remota). Não apagou a luz da vela com receio que isso desse ao misterioso visitante a certeza de haver alguém em casa. Foi até a cozinha tomando para si um afiado cutelo, desligou o aparelho de som e caminhou pé-ante-pé até a porta da frente. Olhou pela fresta da janela mas nada conseguiu avistar. Abriu a porta lentamente, forçando a visão para tentar identificar algo do lado de fora. Viu a luz do carro se apagar. Hainner observou alguém saindo do veículo e falando distraidamente ao celular, de costas para a casa. Aproveitou a situação para sair pela porta e se esgueirar por trás de uma das grossas pilastras de cimento da varanda. A misteriosa figura desligou o aparelho e passou a caminhar em direção à casa. Hainner levantou o cutelo pouco acima de sua cabeça, preparando-o para uma estocada certeira.
- Hainner!
De pronto identificou a voz feminina. Abaixou o cutelo e se pôs ao lado da pilastra, deixando-se avistar. O vulto abriu o celular e guiou a luz do aparelho em sua direção.
- Puxa, não me assusta, Hainner. O que você estava fazendo aí?
Sem esperar resposta, a esguia sombra se aproximou e beijou-lhe a boca no escuro, caminhando em seguida na direção da casa.
- Brrrr... vamos entrar que aqui está frio e eu estou com fome. Fala alguma coisa!
Ela então passou a limpar o solado de suas botas no capacho posto à frente da porta.
- Hainner, isso aqui está que é só barro. E ainda tive de sujar meus pés para abrir as duas porteiras. Olha, eu vou tirar as botas pra não sujar tudo dentro da casa. Ah, mas você eu aposto que nem pensou nisso, né. Tomara que pelo menos tenha entrado pela porta dos fundos, que daí só sujou a cozinha. E aí, não vai falar nada? Nem um “que saudades, meu amor"?
Novamente sem esperar resposta, ela tirou as botas e entrou na casa. Hainner apenas a seguiu sem saber o que dizer ou o que fazer. Entrando na casa, a observou estática, em frente ao banquete, parecendo não saber que reação tomar diante da cena. Hainner passou por ela, deixou o afiado cutelo ao lado de seu prato, sentou-se e voltou a se servir de arroz selvagem.
- Está servida?
Sem haver qualquer resposta ou mudança na expressão fisionômica de sua interlocutora, Hainner insistiu.
- Aproveite enquanto está quente.
- Eu não acredito.
Ele cinicamente olhou para os pratos à sua frente e novamente a fitou como quem diz “o que?”, ao que veio a resposta.
- Eu não acredito que você está me comendo de novo!
- Não, querida, daquela outra vez foi só um pedaço da coxa.
Ellen sentou-se lentamente, ainda parecendo não acreditar.
- Você não pode fazer isso?
- Tanto posso como fiz. Aceita uma batata pelo menos.
- Seios com batatas, Hainner, de onde você tirou essa?
Sem parar a refeição, ele prosseguiu em suas explicações.
- E com sal grosso, Ellen. Combina, experimente.
- E o que são esses outros pratos?
- Surpresa!
- Conta.
- Tem tudo que eu mais gosto em você.
- Bunda e xoxota.
- Exato!
- E... ficou gostoso?
- Meu amor, você é uma delícia.
Ellen ficou mais envaidecida, mas logo recobrou sua indignação.
- Hainner, você não pode usar minhas células tronco assim!
- Meu bem, claro que posso. Mesmo porque somos cientistas, isso é uma pesquisa.
- Ah, bela desculpa.
- Já te disse que essa é a chave para acabar com a fome no mundo.
- Sim, mas para fazer órgãos de animais.
- Aceita vinho?
- Qual é?
Ele encheu mais sua taça e a entregou a Ellen enquanto prosseguia no diálogo.
- Pinot Noir da Casa Chambly’s 2010.
- Foi um bom ano, mas aposto que é transgênico.
- Você jamais perceberia a diferença.
Ellen bebericou e olhou para os pratos com certa atenção. Estava faminta pela viagem.
- O que te deu na cabeça de fazer esse... banquete?
- Meu amor, você disse que ia passar dois meses na Europa. Deu saudade.
- Sim, e você daí me come pra matar a saudade.
- Os índios antigamente comiam seus rivais para adquirir suas virtudes, sabia?
- E você me come assim, sem me convidar nem nada?
- Se eu soubesse que você viria antes...
- Quis fazer surpresa.
- Então, sinta-se convidada. Ainda está em tempo de aproveitar. Experimente-se.
Ellen olhou a tudo parecendo resistente ao convite mas mesmo assim com certo apetite e curiosidade.
- Hmmmm... acho que vou aceitar um pedacinho de seio.
- Esquerdo ou direito?
- Tanto faz. Nem você sabe qual que é um e qual que é outro.
- Eu quis dizer direito e esquerdo do se ponto e vista aqui na me...
- Ai, serve de uma vez!
- Tá, vou pegar desse aqui que eu já comecei a comer.
- Tudo bem. Gostou do meu mamilo?
Hainner levantou-se e pegou mais um prato na cristaleira.
- Olha, confesso que ele dá trabalho pra mastigar. Da próxima vez vou ralar. Olha aqui seu prato.
- Parece crocante por fora.
- E é.
- Mas fibroso por dentro.
- Daí não sei. Prova.
- Hmm...
- E aí?
- Calma, deixa eu comer um pouco e já te conto.
- Tá.
- Como é que você me faz isso? Já pensou se fosse o contrário?
- Você me comendo? Acharia ótimo.
- Então, tá, vamos combinar um jantar romântico pra gente comer você.
- Hmmm... e que parte minha comeremos.
- Pinto no espeto.
- Ah, sendo assim, bom apetite, você vai comer sozinha.
- Vou chamar uns convidados então.
- Você já vai mesmo ter coragem de mostrar meu pinto pra todo mundo.
- Não é seu pinto. É apenas uma cópia idêntica dele.
- Grande diferença.
- Pois é.
- Ei, você não vai dizer o que achou do seu sabor?
- Hmmm... sabe que até que meu seio é gostoso.
- Você toda é gostosa.
- Ai, obrigada.
- Ellen, meu amor, você é uma delícia, seja crua ou temperada.
- Ai, que romântico... ei, espera um pouco. Um daqueles seios não é meu.
- Como?
- Aquele outro, maiorzão, não é meu.
- Não é isso, é que eu comi o mamilo do seu outro seio, então ficou menor.
- Mentira, tá muito menor.
- OK, é que um dos seios é de quando você era adolescente.
- Ah, é? Então já vamos saber isso, basta só eu pegar uma porçãozinha dele e fazer um teste de DNA que rapidinho a gente fica sabendo do resultado.
- Tá bom, eu confesso. O maiorzão não é seu mesmo.
- É de quem então?
- É... da sua irmã!
- O que?!
Foi a última vez em que Hainner viu Ellen. Mas não a última em que a comeu.



Mario Lopes

4 comentários:

Anônimo disse...

nossa mario sempre soube da sua excelente criatividade , + nunca imaginei q fosse chegar tao longe , rsrsrs
beijos , luciane !!!!!

Anônimo disse...

Obrigado, Lu. Para retribuir tão gentis palavras, vou te convidar para jantar aqui em casa, aceita? ;-)
Beijos.

Mario

Anônimo disse...

..Nossaaaaaaa,quando eu "crescer", quero ser como você...rs...
Beijos
Maria

Anônimo disse...

Tipo... canibal?
hehehe Tô zoando, né. Beijo, Maria. E não seja modesta porque você dá show.

Mario