domingo, 16 de novembro de 2008

Sete pitis masculinos



Piti é reconhecido como um fenômeno tipicamente feminino, caracterizado pela histeria descontrolada em uma situação limite. Afinal, mulher não tem pudores de exteriorizar os sentimentos, e todos sabemos que homem não chora, não é mesmo?
Essa predisposição feminina para chutar o pau da barraca sempre foi flagrante na arte e na vida. O exemplo mais atual é o recém-estreado, delicioso e absolutamente imperdível “Vicky Cristina Barcelona”, tendo Javier Bardem como pivô e vítima dos mais histriônicos pitis da filmografia de Woody Allen. Já a manifestação mais remota pode ser conferida com Eva no Genesis. Ela não deu piti? É, mas se Adão não tivesse aceitado o tal fruto proibido, certamente o Livro Sagrado seria um tanto mais volumoso do que já é...
Porém, macho também tem seus momentos Amy Winehouse. Aqui vão incríveis pitis masculinos em cada uma das sete artes. Você vai começar a achar que homem também tem TPM.

Cinema
“Um Dia De Fúria” é um filme-piti. E hardcore. Na verdade, o cidadão indignado que vai à forra com o mundo, vivido por Michael Douglas, é um paladino contemporâneo, que vinga a audiência em suas dores de Procon cotidianas. Trânsito, violência, neuroses urbanas e outras obrigatoriedades da vida em sociedade fazem fila para aporrinhar o protagonista, que as repele na base do golpe de taco de baseball. Na cena que você verá a seguir, ele aborda um fast-food fazendo de refém a plácida e omissa freguesia, que é tão gado quando o próprio hambúrguer que mastiga. E faz indagações extremamente pertinentes ao robótico casal de atendentes. Incrível o quanto uma metralhadora israelense pode incrementar a qualidade de atendimento.




Dança
O primeiro piti do clip da música “Black Or White” de Michael Jackson é do pai do Macaulin Calkin, que aqui faz um fedelho metido a performer de air guitar. Mas não é este o que interessa, mesmo porque o referido trecho é um descarado plágio de um clip do Twisted Sisters. Pupilas bem dilatadas para o que se passa depois do minuto sete (a partir do qual está editado o trecho a seguir), quando nosso herói desbotado se transforma de pantera em vândalo de ferro-velho. Não se sabe ao certo o motivo do chilique, mas, ao que tudo indica, o gatilho foi uma suástica pichada no vidro de um carro. Daí em diante, o bólido é vítima de todo tipo de porretada. E o Jacka não perdoa nem mesmo as casas e estabelecimentos comerciais ao redor, quebrando janelas, vitrines e até letreiros luminosos que não tinham nada a ver com a ira do deus pop. Este clip, que é considerado um dos dez mais inovadores de todos os tempos pela MTV, chegou a ser censurado pela violência toda, e Michael Jackson teve de escrever uma carta de retratação pública, pedindo desculpas pelos excessos. Agora é tarde, coisa braba.




Música
Uma garota encantadora que está “sempre me olhando, oh não”. A letra da música “Charmer” do Kings of Leon praticamente só tem isso a dizer. Mas mesmo com um texto assim tão, digamos, minimalista, a banda consegue dar à canção uma pegada pungente e nervosa, surtando à medida que a orquestração cresce em vigor. Se bem que quem surta mesmo é o vocalista, Caleb Followill, que emite um gritinho histérico pontuando cada frase, parecendo avisar que está ficando fora de controle. Existem vários pitis no mundo musical (Britney Spears que o diga), como as performances de Jimi Hendrix macetando sua guitarra contra o chão do palco, mas, musicalmente falando, e esquecendo o lado cenográfico da coisa, “Charmer” é uma canção-piti por excelência. Encha o carro de amigos, pegue a estrada, ligue o som no máximo volume e brinquem de quem grita melhor que Caleb, é terapêutico.




Pintura
Esse é hors-concours. “O Grito”, de Edvard Munch, parece berrar “não aguento mais” para quem passa por frente da tela. A fonte de inspiração pode ser encontrada na própria vida de Munch, criado por um pai austero, e que, ainda pequeno, assistiu à morte de sua mãe e de uma irmã. Quando adulto, ele se complicou envolvendo-se com uma mulher casada que só lhe trouxe mágoa e desespero. Enfim, passou a vida com motivos para ter piti. E cristalizou toda a sua revolta em um quadro singular. Que serviu até de inspiração para vinheta da MTV e máscara para personage de filme de terror. Abaixo, você pode conferir um clip com peças de Munch e obras que representam o movimento expressionista alemão. A trilha sonora é “The Great Gig In The Sky”, composição fenomenal executada pelo Pink Floyd, sendo que o autor, o tecladista Richard Wright, infelizmente veio a falecer no presente ano. A voz de Clare Torry entra no exato momento em que surge a obra-prima de Munch. Nada mais adequado, pois seu solo vocal é um longo, alucinado e soberbo grito.




Escultura
O mictório de Marcel Duchamp é uma mistura de piti de artista excêntrico com desaforo público. O pai do dadaísmo queria mesmo escrachar com a crítica estabelecida, definindo a peça de banheiro como objeto de arte. O pai do dadaísmo teve ainda outros rompantes de “criatividade”, ao transforar, por exemplo, uma roda de bicicleta em peça de exposição. Mas nada superou seu singelo mictório. Abaixo, um video com obras de Duchamp e de outros dadaístas célebres, sendo que nele você poderá ver a inusitada obra-prima. Mais ousado que isso, só mesmo se ele levasse para a exposição a peça abastecida.




Literatura
Quando Édipo descobre que fez amor com a mãe e matou o pai, ele não se contenta em dar um piti: fura os próprios olhos. Talvez não seja apenas o maior piti da literatura, mas sim o maior piti masculino da dramaturgia. “Édipo Rei” de Sófocles é considerado o primeiro romance policial do Ocidente, e, como toda boa tragédia grega, não é nada sutil em suas labaredas emocionais. Mais tarde, Freud lançou a definição do chamado “complexo de Édipo”, afirmando que todos nós temos a esquisita sina de querer um incesto básico misturado com um homicídio culposo de nosso progenitor, coisinha light. Mas, convenhamos, levar isso às vias de fato é para fazer qualquer um surtar e querer comer os próprios olhos depois de fritos. Os deuses devem estar loucos. Aqui está um quadro do Fantástico, apresentado por Viviane Mosé, que se propunha a discutir filosofia com linguagem popular e que aqui discorre sobre as tragédias gregas, dentre elas “Édipo Rei”, que chegou a virar adaptação para novela da Globo. Neste caso, quem deve ter tido um piti foi o Sófocles.




Teatro
Aqui não é o artista quem tem o piti, mas sim a platéia. O grupo catalão La Fura Dels Baus exibe, em seus espetáculos, experiências radicais que quebram a chamada “quarta parede”: aquela imaginária que separa os atores do público. São famosos por aterrorizar a audiência com apresentações surpreendentes em galpões minuciosamente preparados do ponto de vista técnico. Os atores, dirigidos por Jürgen Müller (que pode ser visto em entrevista na reportagem abaixo), utilizam serras elétricas, pedaços crus de animais e até contatos físicos um tanto hostis com os espectadores, tudo em clima nervoso, hiperbólico. Havia um espetáculo em que apontavam para o público escolhendo quem teria suas roupas arrancadas do próprio corpo para ser crucificado nu – na verdade o faziam com atores da companhia disfarçados de platéia, mas, como ninguém sabia disso, o pânico era geral. Em seus trabalhos, a realidade atual é jogada no rosto da platéia de forma explícita e com generosas doses de violência, sexualidade e energia. As cenas exibidas na matéria são da montagem “S'estrena Imperium”. Pena estar em espanhol, mas conforme-se: poderia ser falada em catalão.




Homem dá piti, sim. E chora também. A única diferença é que não tem maquiagem para borrar.



Mario Lopes

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