Naturezas mortas mortas, é assim que ela chamaria a exposição. Flores e arranjos fotografados em cemitérios. E também lápides, esculturas fúnebres e outras artes do amém. Percorria os corredores de jazigos daquele pequeno território santo interiorano em busca de flagrantes congelados em bronze e cimento. Poderia ter escolhido um dia de semana qualquer, onde o ambiente vira um perfeito museu a céu aberto, sem os inconvenientes das almas ainda encarnadas transitando para sujar o fundo de um anjo barroco ou de uma cruz invadida pelo musgo. Mas agendara para si o Dia de Finados, supondo tornar arte os semblantes amargos e as mãos saudosas dos que viriam homenagear seus mortos. Era lotação de shopping center em um ambiente que, normalmente, só tinha a visita do vento durante o dia e dos bêbados e vândalos durante a noite.
No intervalo entre um clic e outro com sua Canon, semi-ajoelhada diante de um vaso ornamentado com flores de plástico já desbotadas em seus polímeros, percebeu uma senhora que deixava uma rosa vermelha sobre um túmulo e baixava a cabeça em seu minuto de oração. Tinha o figurino e silhueta esguia típicos de uma viúva de filme noir, com a diferença de aparentar uma lamúria autêntica, numa pose de devoção com as mãos contritas diante do peito e os lábios em silencioso murmúrio, tremulando frases santas. Fez o nome do Pai e virou-se para tomar o rumo do portão de entrada, mas a fotógrafa apressou-se em abordá-la, pois a luz crepuscular daria uma dramaticidade única àquela imagem dolorosa por dedução.
A mulher revelou não ser viúva e nem ao menos parente de quem estava naquele túmulo. Todo ano, no final do Dia de Finados, ela percorria as fileiras de túmulos identificando aqueles que não receberam visita dos vivos. Então, depositava uma rosa nos desguarnecidos por flores novas ou por algum cuidado recente na aparência. Recusou-se a posar para a foto, sem maiores explicações. A fotógrafa aceitou a recusa do convite e a deixou seguir seu caminho, admirando-a por aquele ato voluntário que cobria a lacuna de indiferença deixada por famílias pouco zelosas com seus mortos.
Voltou a semi-ajoelhar-se diante do vaso que deixara para trás, percebendo que a luz solar daquele final de tarde agora não mais banhava a peça, pois camuflou-se por trás de uma palmeira mergulhando o objeto na sombra. Teve de esperar que o sol declinasse mais no horizonte até que seus raios não mais fossem obstruídos pela copa. Aproveitou para descansar, havia passado o dia registrando muitas velas se dissolvendo no calor da chama, algumas tantas mãos abraçando rosários e um cachorro que repousava sobre o chão batido da última morada de um indigente (quem sabe o dono daquele animal morimbundo). Surpreendeu-se ao perceber que outra mulher estava agora à frente do mesmo túmulo da falsa viúva. Contrastando com a serenidade dela, tinha uma aparência de grande desgaste emocional e vestia-se totalmente de branco. Não orava, mas as lágrimas lhe brotavam das órbitas em profusão. Inclinou o tronco para pegar a rosa deixada pela falsa viúva, olhou-a com rancor indisfarçável e partiu seu caule ao meio, rasgando em seguida suas pétalas e picando a planta com as mãos enrugadas, agora ensanguentadas pelo rasgar dos acúleos. Jogou sobre o mármore do jazigo os restos da rosa, virou-se e partiu em direção ao portão do cemitério.
Intrigada com a atitude, a fotógrafa buscou explicação abordando um coveiro que improvisava o conserto de um buraco no calçamento cobrindo-o com um punhado de terra que trouxera no carrinho de mão. O homem repuxou as rugas das maçãs do rosto com seu sorriso simplório e balançou a cabeça com pesar. Então, explicou que aquela senhora vestida de branco era enfermeira plantonista, e que, todo ano, vinha correndo ao cemitério no final do Dia de Finados para tentar descobrir que mulher depositava flores na sepultura de seu finado marido. Que sempre chegava tarde demais para fazer o flagrante e vingava-se do falecido destruindo a homenagem da suposta amante.
A fotógrafa agradeceu a explicação, guardou seu equipamento e tomou o caminho do portão do cemitério. Antes de entrar em seu carro, olhou para o outro lado da rua e viu, num ponto de ônibus, a falsa viúva tirando um lenço branco da bolsa para cuidar dos sangramentos da viúva legítima.
Mario Lopes
domingo, 16 de agosto de 2009
Naturezas mortas mortas
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2 comentários:
Ótima postagem, história intrigante, gostei.
Thainá
Muito obrigado, Thainá. :-)
Beijo e seja sempre bem-vinda ao blog.
Mario
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