Todo esportista é um sadomasoquista. Sádico porque esporte implica em vencer alguém, humilhar um oponente, causar dor no nocaute fulminante, na raquetada sem dó, na ultrapassagem impiedosa – mesmo que ferir não seja a intenção principal, ela ocorre necessariamente. Masoquista porque as condições para a prática de qualquer esporte são severas, não respeitando finais de semana, mau tempo ou indisposição, ignorando as preces da carne e as lamúrias da alma – “no pain, no gain”, já dizia o famoso ditado do povo mais competitivo do mundo. Considerando que a vida também é um esporte (o maior de todos, tendo até um livro discorrendo sobre o assunto: “Se A Vida É Um Jogo, Estas São As Regras”, de Chérie Carter-Scott), chegamos à constatação de que todos temos algo de sadomasoquista. E essa nossa vocação de machucar e sofrer se estende para as mais diversas modalidades, algumas um tanto aconvencionais: tem gente que entra na disputa para deter recordes, de número de tatuagens a quantidade de cigarros fumados de uma única vez; outras praticam os desportos do cotidiano: ser o mais rico, chegar na praia mais rápido que qualquer outro carro na rodovia, responder o maior número de e-mails possível no final do dia. Praticamos inúmeras pelejas com outros competidores e com nós mesmos ao longo de um dia e no decorrer de uma vida. Mas, de todos os esportes, um é o que mais assusta por ser o único que transforma aliados em opositores: o heartbreaking.
Não há um nome exato para o esporte (ao menos não na língua portuguesa), mas ele consiste em conquistar e arrasar corações desavisados. É o único esporte capaz de gerar, nos derrotados, reações sérias e instantâneas de depressão profunda, anorexia nervosa, perturbação mental e até de homicídio e atentado contra a própria vida. Difícil afirmar se o maior número de adeptos é do sexo masculino ou do feminino, mas abordemos como personagem de estudo a mulher, visto que a quantidade de filmes e referências em outras artes, como na música e na literatura, fazem parecer que ela é, de fato, o grande pivô das históricas trágicas, em que corações são pisados com salto agulha por puro deleite. Para fazer uma abordagem com certo grau de cientificismo, escalamos para debate quatro estudantes da área de comunicação social, são elas: Carolinni Tauscheck, Fernanda Lima, Luciana Calçado e A. P. L., que preferiu não se identificar por motivos que ficarão mais claros ao longo deste texto. Sendo acadêmicas de um curso que tem como principal alvo de estudo o comportamento humano (e, principalmente, por serem mulheres), certamente têm condições de discorrer sobre o assunto com certa desenvoltura. De outro lado, temos uma assumida heartbreaker concordando ou discordando das afirmativas, vamos chamá-la de Débora para não criar nenhum desconforto, seja por parte dela ou de alguma vítima que venha a ler este texto.
Como é o esporte?
Nenhuma das quatro convidadas conhece uma legítima heartbreaker, nem se assumiu como tal. Também não souberam definir categoricamente qual o perfil da esportista ou como se pratica a modalidade. O que ficou em consenso é que toda mulher tem um pouco (ou um muito) de “arrasa corações”. Fernanda, por exemplo, relatou com grande naturalidade sua experiência com um rapaz que a amava, sendo que a recíproca não era verdadeira. Sem qualquer constrangimento ou trauma de consciência, deixou claro que o usou apenas por prazer, mesmo sabendo ser ela uma paixão não correspondida do pobre e esperançoso rapaz. Chegava a ir com ele para motéis pedindo a uma amiga que lhe ligasse em dado horáro, fingindo ser sua mãe ordenando que voltasse para casa, a fim de escapar do seu escravo-amante. Com o desembaraço e frieza com que relata este episódio, Fernanda parece ser uma garota indiferente à dor das pessoas com as quais se relaciona, mas este, ela garante, foi um episódio isolado. Porém, só para se ter melhor noção do perfil da autora do relato, ela consegue convencer a todos que não entende nada de baralho para, logo que se inicia o jogo, mostrar-se expert no jargão do carteado e na arte de blefar. Ou seja, é sim capaz de ela ter se divertido com a situação de usar seu apaixonado como joguete, afinal dissimulação é, possivelmente, uma das maiores habilidades de uma heartbreaker. E o mais curioso: isso não a torna uma pessoa cruel, talvez apenas inconsequente.
Já Débora é mais prática na definição do esporte: “simples, é conquistar, usar, colocar na prateleira e partir para o próximo quando não tiver mais serventia”. Não foi precisa na explicação do que vem a ser ter “serventia”, apenas complementou dizendo que é “tipo quando enjoa”. Na verdade, a conversa com Débora indicou que a modalidade é praticada de forma muito mais intuitiva do que planejada e meticulosa como muita gente costuma achar – talvez uma concepção residual do estereotipo de femme fatale fria e calculista tão disseminado pelo cinema. Há até um “q” de inocência no modus operandis e nas justificativas, conforme foi se constatando na investigação de seu comportamento padrão ao longo da conversa. Mas é difícil fazer essas afirmativas de forma cabal, posto que (conforme já dito) ser dissimulada é possivelmente uma forte característica desse tipo de esportista, ou seja, pode estar apenas enganando a torcida.
Qual o prêmio?
Orgulho e prazer. Quase sempre nesta ordem. No caso de Fernanda, o prazer veio antes, ela garante, mas isso é uma exceção à regra – não esquecendo o fato de que ela não é uma típica heartbreaker (apesar de ter todos os predicados necessários para a prática). Luciana afirma que não está só no ego e no tesão a recompensa da heartbreaker: ela faz também para conquistar presentes, viagens e privilégios, como, por exemplo, maior chance de ascensão hierárquica em uma empresa, seja por dominar a fome de um macho poderoso ou por poder lhe chantagear. Carolinni (conhecida por Carol entre as amigas) vai além: ela acredita que a heartbreaker, de alguma forma, tem de tangibilizar e “documentar” suas façanhas, e o faz colecionando lembranças dos amores arrasados, como bilhetes apaixonados, fotos de viagens juntos e outros souvenirs que vai acumulando ao longo do tempo.
Débora concorda com as afirmativas do quarteto, e complementa frisando que uma arrasa-corações gosta de causar intriga e de ver homens brigando por ela, mas não casais, “daí já é baixaria”, conclui. Outro fator que faz uma heartbreaker ter aversão a brigas de casais está, provavelmente, no fato de que este conflito pode significar que irá sobrar para ela no final das contas...
Qual o perfil da praticante do esporte?
Há mulheres que têm volatilidade afetiva: ora amam, ora odeiam. Mas isso não corresponde às motivações de uma heartbreaker, pelo simples fato de que ela não é movida por estímulos descontrolados, e sim por uma noção real de que tem uma tarefa sádica a cumprir. Nessa obsessão, o quarteto manifestou-se favorável à ideia de que ela é uma pessoa que já amou mas não foi amada, portanto quer se vingar em cima de todos os homens. Luciana afirmou nunca ter se apaixonado, colocando-se assim sem opinião formada a respeito dessa possível vida pregressa infeliz das heartbreakers. E também talvez seja esse um dos motivos de ela própria não ser adepta do esporte. Outros pontos consensuais entre as garotas do quarteto: heartbreakers são geralmente mulheres inteligentes (mais do que bonitas); por dedução, são boas de sexo; muito vaidosas; não ambicionam viver um grande amor; geralmente são cultas e refinadas; e nem sempre são bem sucedidas profissionalmente – o que pode explicar a colocação feita anteriormente de que são capazes de usar o esporte como jogo de poder. Não souberam precisar se arrasa-corações são mais hetero, bi ou homo, só se sabe que este comportamento ocorre em todas as opções sexuais, entrando aqui o depoimento de A. P. L.. Quando tinha 18 anos, ela começou a namorar uma menina que conheceu pela web, e que morava próxima à sua avó. Bonita, esbelta e “carne nova no pedaço”, A. P. L. usou de seus charmosos olhos azuis para ficar com diversas garotas, pois estava se iniciando no universo gay. Chegou inclusive a ter um affair com uma miss, incitando ciúmes na namorada. O romance acabou e ela encontrou então um namorado hetero, mas A. P. L. exercitou, na homossexualidade, seu lado heartbreaker tanto quanto Fernanda (vide relato da primeira questão). Neste ponto é que ela entrou em uma tese que aponta para a possibilidade de as arrasa-corações terem um tipo de “vacina” contra a paixão: A. P. L. jogou no debate a teoria de que toda mulher só ama de fato uma única vez na vida, sendo que seu comentário recebeu aprovação de Carol e indiferença de Luciana e de Fernanda. A. P. L. disse que sua primeira namorada foi efetivamente a única pela qual se viu capaz de fazer loucuras, e que essa febre não mais se repetirá em sua vida. Se isso valer para toda mulher, como ela acredita, então não é tão difícil ser heartbreaker, posto que os riscos de perder o controle de seus romances, tornando-se dominada ao invés de dominadora, é praticamente inexistente.
Débora não entendeu a teoria de que mulher só ama uma vez na vida e preferiu nem entrar nos méritos. Mas riu quando indagada se o comportamento heartbreaker é mais presente no universo hetero, bi ou homo – a pergunta a fez recordar de uma frase de Claudia Raia no filme “Os Normais 2” que acredita resumir tudo: “toda mulher é bi, só que umas aproveitam e outras não”. Brindou com o copo d’água que estava bebendo e fechamos assim essa terceira pergunta do pacote, vamos à próxima.
Quem são os aliados/oponentes mais comuns de quem é heartbreaker?
Costumam pegar homens casados para não se prenderem, visto que as chances de relacionamento com compromisso se reduzem bastante. Luciana acredita que solteiro sustenta mais o ego da heartbreaker porque ele pode vir atrás dela sem tanto temor de ser pego (já que não há ninguém no seu pé para puni-lo por pular a cerca). Carol acha que heartbreakers atacam do office-boy ao chefe, embora este último seja mais visado. Ela e Luciana concordam que as arrasa-corações não gostam de caras “bananas”, em especial na cama. Por mais que o prazer venha depois do orgulho, continua sendo um item bastante importante na ordem do dia.
Débora entendeu que a colocação aliados/oponentes se refere ao mesmo personagem, ou seja, a homens que se tornam partners para logo depois serem jogados na sarjeta gritando lamúrias e impropérios pelo resto da vida; mas ela também acredita que há aliados e oponentes separadamente. Como aliados, ela alfineta sem dó: “não há melhor aliada para uma heartbreaker do que uma esposa que não faz de tudo na cama”; também coloca as amigas como importantes agentes de prospecção, apontando homens vulneráveis e ajudando em esquemas de encontros, sedução e despiste de namoradas inconvenientes. Já como oponentes ela sai do aspecto pessoa física para cair no pessoa jurídica: empresas com restrições pesadas a relacionamentos afetivos no ambiente de trabalho, religiões de normas severas e todo o “blá-blá-blá dos mais machistas que acham que mulher que toma a iniciativa é vulgar e não merece atenção. Vulgar, eu?! Vai tomar no cu!”, caindo numa gargalhada logo em seguida.
Onde se pratica o esporte?
Carol acredita que a heartbreaker sai em vários lugares e estuda o perfil da vítima antes de abordar e seduzir. Ela prossegue neste raciocínio garantindo que a web também pode ser um bom canal, através da visualização de perfis no Orkut, por exemplo. Luciana é enfática em afirmar que a arrasa-corações frequenta vários tipos de círculos sociais, indo de rodas de pagode a bailes da alta sociedade.
“Ah, qualquer lugar é lugar”, assegura Débora, sustentando que esse raciocínio de toda heartbreaker se deve ao fato de que homens (e mulheres) infelizes pela solidão ou por relacionamentos frustrantes estão por toda parte. Ela nem quis entrar nos méritos de web e outros meios alternativos, voltando a balançar a cabeça e a reafirmar que “qualquer lugar é lugar”, concluindo: “quer saber onde encontrar alguém? Pega um copo e encosta na parede que cola o seu apartamento no do seu vizinho. Todo mundo gosta de sexo e todo mundo tem algum tipo de problema afetivo. Só não se deixa seduzir quem gosta de sofrer”.
Qual o ponto fraco de quem está neste time?
O quarteto acredita que, apesar de toda a postura auto-confiante e de seu modo de agir frio e técnico, a heartbreaker não é imune a arrasa-corações do sexo masculino. Neste sentido, o homem auto-confiante é praticamente uma kryptonita contra seus superpoderes. No entanto não são seres que podem desfilar sem medo em frente a uma heartbreaker: homens bem resolvidos são um desafio maior e mais estimulante. Eles apenas geram temor pelo medo de envolvimento.
Tentando sair pela tangente, Débora disse que o “homem que se basta” (como ela preferiu definir) é “um belo de um troféu”, mas que a característica dele que mais incomoda não é a auto-confiança e sim a determinação: “odeio o cara que diz ‘não vou mais te ligar’ e não liga mesmo. Isso corta a minha possibilidade de blefar, eu não posso dizer ‘se sair daqui não volte nunca mais’ porque eu sei que se ele sair não voltará mesmo, e isso não porque eu ordenei, mas porque ele manda em si mesmo. Aliás, tem homem que adora provar que pode, que se garante, desse tipo eu quero distância”.
Quais as regras do jogo?
Praticamente, a regra é não ter regras. Mas há comportamentos da heartbreaker que são padrão por evitarem complicações no meio da peleja. Ela não chega a se envolver com a família da vítima, por exemplo, no máximo é apresentada à mãe do coitado, mas não frequentará sua casa, muito menos levará uma sobremesa para o almoço de domingo da sogra em potencial. Embora as quatro não tenham explicado o motivo desta postura, ele é um tanto evidente: além de fugir de envolvimento, a heartbreaker sabe que pode ser desmascarada por irmãos ou pais de seu macho-alvo, daí sua ojeriza à exposição no círculo familiar. Outra regra fundamental é a de que é preciso buscar informações que indiquem a facilidade de arrasar um determinado coração: a heartbreaker investiga e adéqua-se ao universo do outro para depois trazê-lo para seu mundo pessoal. Por fim, também é importante ter um bom timing: quando percebe que a vítima está muito na dela, sai fora e a deixa a ver navios.
Saber o momento certo para puxar o carro é a regra mais desafiante para a heartbreaker, acha Débora. “Conquistar e seduzir não é o bicho. Mas sair com elegância deixando o cara sem chão, não protelando demais nem antecipando em excesso a decisão de dar no pé, ah, isso sim é que aponta se a guria é mesmo profi no assunto”.
Há dia melhor ou pior para se praticar o esporte?
Essa foi fácil porque veio ao encontro da indagação sobre lugar para a prática do esporte. Não há dia certo, a heartbreaker está o tempo todo agindo, se compatibilizando com a rotina de seus alvos, assim comentou o quarteto. Parece ser ilusória a noção de que sábados à noite são o ponto culminante desta prática esportiva, mesmo sendo este o período em que as pessoas saem para baladas à procura de aventura e romance.
“Isso mesmo”, concordou Débora, “todo lugar é lugar, toda hora é hora”. Ponto.
Quais os equipamentos para se praticar o esporte?
Outra questão de resposta simples e prática. Apetrechos indispensáveis: celular, estojo de maquiagem, perfumes, jóias e guarda-roupa refinado.
Para Débora é por aí, “ah, e claro: uma vizitinha na sex shop não faz mal a ninguém”, arremata enquanto ri de sua própria molecagem.
Quais os segredos de quem pratica com sucesso?
Foram disparadas frases soltas das garotas do quarteto, sendo agora difícil determinar a autoria de cada uma delas, aqui vão então as sentenças mais interessantes: “Ela não tem o auto-controle para não se envolver, simplesmente não acha o homem certo”; “Mas ela não quer achar o homem certo”; “Existe uma minoria que pratica esse esporte sem querer (de forma involuntária), a maioria sabe muito bem o que está fazendo”; “Ela dá a entender que não quer envolvimento, mas não explicita isso, não verbaliza, só para deixar o cara na esperança e depois puxar o tapete”; “Faz sexo bem feito, e ninguém manda nela, deixa o alvo pensar que manda”; “Nunca fala ‘eu te amo’, a não ser que seja como arma para gerar mais envolvimento; “Não coleciona por número, mas sim pela qualidade das relações”; “Ao identificar em um cara a presença de características de um homem que já tenha seduzido, vai usar as informações a seu favor para repetir o sucesso”; “Não se torna mal falada porque não divulga seus feitos, mas quando os conta a uma confidente passa-se por vítima. Só fala a verdade quando tem uma amiga igual a ela”.
Débora concordou com tudo, mas, ao ser perguntada sobre o que mais citaria como segredo de sucesso no esporte, disparou: “ah, você não quer que eu perca minhas cartas na manga, né?”.
Observação final
Ao final da conversa, Débora já pedia para parar porque aquele não era “um bom dia”. Visto que ela não tem problemas familiares ou financeiros, não é leviano afirmar que nossa “arrasa corações” possivelmente foi vítima de um rival à altura. Mas isso ela nunca iria confessar. Faz parte do jogo.
Mario Lopes
2 comentários:
Ainda mais quando a prática deste "esporte" é incentivada pelo Ego, que tem a necessidade constante de ser alimentado para suprir a baixa auto estima.
Uma fome difícil de ser saciada. Uma necessidade que escraviza.
Beijos!
Acho que essa compulsão é sempre obsessiva-compulsiva e sempre comandada pelo ego. Só gostaria de ter tirado mais informações do modus operandis da coisa. Por exemplo, acreditei que as meninas iriam dizer que para cativar, a heartbreaker simula estar apaixonada, porque nenhum homem cairá na dela (ou poucos cairiam) se não se sentir seguro. Meio como naquela de "pode pular, a água tá quentinha" - só tem credibilidade se quem fala estiver dentro da água. Bom, mas talvez tenha faltado eu beliscar mais na entrevista, sei lá. O resultado tá aí e não adianta querer mudar. rs
Beijo, Mila.
Mario
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