domingo, 20 de setembro de 2009

O Medo De Ser Ruim Por Ser Tão Bom


De novo, Paula declinou do convite de Fernanda para sair beber e decantar as mágoas numa happy hour. Desligou o telefone chateada por mais uma vez recusar aquele encontro, mas estava realmente impossibilitada e, mesmo que pudesse, estava tão cansada que só sairia se fosse mesmo para decantar as mágoas (as quais ela estava em condições de suportar). Precisava priorizar o trabalho, mesmo quando fora do horário de expediente. Foi contratada como psicóloga de Recursos Humanos há pouco tempo, mas já era o suficiente para se dar conta de que sua vida passaria a ser eternamente atribulada por conta dos inúmeros compromissos agendados por aquela diretoria de homens carrancudos em seus ternos de velório. Tinha de ser psicóloga principalmente para negociar prazos, e também diplomata para agradar toda a hierarquia e advogada para defender seus pontos de vista, porém, seria remunerada apenas por uma única função. Tudo bem, já teve a experiência de se virar em duas como acadêmica e mãe, fazer o diabo a três ou a quatro não seria problema. Seus dias agora eram regidos pela agenda do Outlook. Seu companheiro e sua filha cada vez mais se transformavam em “clientes externos”, que atendia na medida do possível, quando não era convidada para algum evento ou jantar solene. Logo ela que achava a rotina abjeta, se obrigava a lhe ser submissa como um hamster correndo na rodinha de arame. Apesar disso, sentia-se de certa forma realizada, como agente intelectual naquele prédio do centro pulsante da capital.

Numa reunião com o presidente, antes de ir na analista e depois de um business lunch, conheceu o novo gerente de comunicação. Um primeiro encontro essencialmente prático devido à urgência de desenvolverem uma nova campanha de endomarketing. Apenas trocaram seus endereços eletrônicos e combinaram de se conversar melhor depois. O depois aconteceu com grande brevidade: ao chegar em sua mesa, Paula viu na tela do PC um convite para aceitá-lo no MSN. Novamente, um primeiro contato virtual prático, trocando informações de interesse da empresa. De súbito, a conversa pareceu passar para um tom mais pessoal.

Entrepreneur fala:
Tenho uma pergunta p t fazer...

Foi quando travou tudo. Era vírus. Paula tinha certeza. Mexeu o mouse, deu enter, deu esc, deu ctrl + alt + del. Nada. Mas antes de chamar o técnico, abaixou-se para verificar se tinha deixado seu pen drive na entrada USB (agora poderia estar contaminado). Viu então à sua frente um par de tênis, subindo o olhar até o rosto de seu interlocutor de web. O novo gerente de comunicação também estava em posse de um pen drive. Sem pedir licença, introduziu-o na outra entrada USB. Com delicadeza a puxou pelo antebraço, afastando-a na cadeira de rodinhas e buscando espaço para mexer na sua máquina. Digitou algo, viu surgir na tela uma pop-up do anti-vírus, instalou-o. Perguntou a ela se alguém havia lhe enviado um e-mail intitulado: “Rapunzel apaixonada”, ao que ela respondeu “ahan”. Ele balançou a cabeça com pesar, nem precisando perguntar se ela abriu o anexo. Disse que teria de esperar o anti-vírus fazer seu trabalho e que depois voltaria para reformatar a máquina. Antes de sair, ainda lhe disse com jeito de censura: “romântica”, atenuando seu tom de acusação com um sorriso acolhedor. Ela até se esqueceu de indagar qual pergunta ele queria fazer pelo MSN.

Os dias se seguiram e os dois foram se tornando cada vez mais próximos por conta das atribuições coincidentes que as atividades profissionais lhes atribuiam. Como o expediente não podia se restringir ao ambiente da empresa, devido à grande carga de trabalho, prosseguiam com suas conversas por MSN à noite, fazendo alguns acertos adicionais sobre prazos e tarefas, colaborando mutuamente em tarefas mais complexas. Naqueles diálogos, ele ainda achava tempo para lhe indicar livros, ajudar a resolver problemas de informática e recomendar destinos de viagem, esticando o bate-papo virtual por horas. A atenção dada a ela era tanta que não teve como não desconfiar que havia ali um homem interessado na mulher mais do que na profissional. Mas afastou aquele pensamento, acreditando estar sendo maliciosa e maldosa quanto às intenções de seu novo colega de trabalho.

Quando percebiam que a carga de atividades estava excessiva, combinavam logo no final do dia que prosseguiriam com o trabalho em algum café ou restaurante, fazendo ajustes necessários e se preparando para o dia seguinte, afinal estavam às vésperas de uma importante convenção. Começaram a perceber afinidades e coincidências em seus históricos pessoais e perspectivas. Não teve como evitar de pensar até que ponto iria toda aquela sintonia. E ela se indagava se o gerente de comunicação estava inventando informações para cativá-la ou se realmente era verdade tanta conciliação de interesses. Se fosse alguma invenção, aquilo seria sinal certo de assédio.

Da forma terna e calorosa com que ele lhe falava, até mesmo a leitura de um simples memorando parecia um recado de segundas intenções. Passou a aguçar seus sentidos, na busca por identificar se estava lidando com um profissional carinhoso nas relações interpessoais ou com um homem tentando seduzi-la. Até as pequenas palavras pareciam agora reservar alguma mensagem subliminar.

Entrepreneur fala:
Isso é trabalho para uma mulher acima dos padrões. Como você.

Não foi o elogio no MSN que despertou nela alguma desconfiança (mesmo porque ele vivia falando maravilhas sobre sua performance, ao ponto de indicá-la como analista, já que Paula também tinha interesse em clinicar e sub-locava o espaço de uma amiga também psicóloga), mas sim aquele ponto seguido por “Como você”. Ela estava sendo muito sexista ou aquele “Como você” tinha realmente uma mensagem de duplo sentido no ar? Não, puro delírio, claro. Ele apenas quis enfatizar, não seria vulgar a este ponto.

Certo dia, ele chegou no trabalho com um par de ingressos para uma peça que entraria em cartaz na próxima sexta-feira. Embora Paula tenha hesitado um pouco no primeiro momento, não teve como recusar: era elenco global e as poltronas estavam num ponto de visibilidade muito privilegiada. Pegou o telefone, mas já sabia que seu parceiro não se importaria com mais aquela saída pós-trabalho, e ele odiava teatro, aquela oportunidade de ver uma peça com companhia era rara. Como também era rara a companhia para ir no cinema, no shopping, nas festas... Já sua filha ficaria com a avó no final de semana, saindo de casa no início da noite de sexta. Sendo assim, topou o programa cultural, recebendo um sorriso de agradecimento de seu proponente.

Jantaram antes da peça em um bar metido a moderninho, com decoração chamativa e pratos criativos no cardápio. Enquanto escolhia o que iria comer, Paula pensava se era o momento certo para indagar o que ele queria lhe perguntar no MSN naquele dia em que seu computador travou. Mas teve medo de qual seria a indagação. E mais ainda do que poderia dar de resposta. Ele a desconcentrou dos pensamentos e das iguarias do menu ao se revelar editor de um jornal de poesia, algo que para ela era coisa de hippie desocupado. “Escrevo hai kais libertários”, disse enigmático, explicando logo em seguida que seus pequenos versos eram subversivos à métrica clássica daquele gênero de poesia. Convidou-a a escrever para o jornal, mas ela riu e afirmou nunca ter escrito um único poema na vida. “Quer escrever a quatro mãos?”, ele perguntou. Calada diante da proposta, só saiu de seu olhar de transe com a chegada da garçonete com o bloquinho na mão à espera do pedido.

A peça era sugestiva demais para ter sido escolhida ao acaso, acreditava ela. Tratava da consumação de um affair proibido entre um homem e uma mulher, até aí tudo em comum com uma enormidade de outras histórias. Não fosse o fato de a protagonista da peça estar previamente envolvida com uma relação conjugal em ruínas. Muitos dos diálogos pareciam alfinetadas direcionadas a ela própria, como se alguém houvesse espionado a intimidade de seu lar (e de seu quarto) para escrever o roteiro. Não se sentiu ofendida, nem poderia. Muito provavelmente, a escolha da peça era mais uma daquelas tantas coincidências que estavam colecionando. Nada mais. Ficou inquieta durante todo o espetáculo, mexendo pernas e braços, abaixando e subindo na poltrona. Explicou depois a seu colega que ela costumava ficar assim sempre que assistia a uma peça, e, realmente, era comum se inquietar mesmo. Mas, daquela vez, ela própria teve dúvida do real motivo de sua agitação.

Naquela noite, ao chegar em casa, Paula não entrou no MSN. Ficou com medo do rumo que a conversa poderia tomar, suscitado pelo frescor do tema da peça que acabaram de assistir. O que mais a incomodava não era tanto a dúvida de estar ou não sendo assediada, mas sim que acabasse ficando com vontade de que suas suspeitas tivessem fundamento. Resolveu então pegar algo na cozinha para comer e apenas acessar seus e-mails antes de dormir. Encontrou então uma mensagem recém enviada por ele, contendo um breve poema.

Da elegância helênica os gestos bardos
Que do fardo o trono amena
E de distante recôndito ensejo
Ao amor desavisado acena

No dia seguinte, nada comentou sobre os versos. Tentou interpretá-los por conta própria e chegou a algumas conclusões: ele a havia chamado de elegante e trabalhadora (“fardo” e “trono” indicavam labuta e recompensa), mas que esmoreceu ao se deparar com a oportunidade secreta de se lançar a um “amor desavisado”, ou seja, um caso de última hora e insuspeito. Se fosse isso mesmo, Paula estaria lisonjeada pela parte que lhe cabia, mas também indignada por ele estar tão auto-confiante. Não havia dado margem para aquele pensamento. Precisava se precaver, pois os versos daquele confiado denunciavam estar próximo o bote. Bem fizera de deixar o e-mail na pasta de mensagens recebidas ao invés de excluí-lo, aquilo poderia futuramente consistir em prova de assédio sexual. Mas e se o poema não fosse de autoria dele? Havia dito admirar Baudelaire ("Esse sim é um homem que você deveria levar pra cama todas as noites", afirmara em certa ocasião, brincando ser íntimo de seu autor de cabeceira). Se fosse realmente obra pronta, ela pagaria um enorme mico judicial, pois automaticamente deixaria de ser a musa inspiradora dos versos. Por outro lado, se fosse original, aquela seria a primeira vez na vida em que se tornara a diva de um poeta. A inquietante constatação a fez esboçar um leve e incontrolável sorriso.

Despertou de suas reflexões por um chamado de seu colega no MSN, parabenizando-a pela aprovação da estratégia de contratação de colaboradores temporários para a convenção.

Entrepreneur fala:
Isso é mérito reservado a mulheres excepcionais.
Entrepreneur fala:
Como você.

De novo aquele incômodo “Como você”. Só podia ser coisa da cabeça dela, estava sendo implicante. Desde quando um gentleman como ele faria uma insinuação sacana assim? Censurou-se por pensar nele como um gentleman. Mas ele era. E também sacana. Revelou certa vez (de novo com aquelas suspeitas de segundas intenções no ar) que é um colecionar de receitas sexuais da revista Nova para apimentar a vida íntima. Por que afinal disse aquilo? Paula não lembrava ao certo qual foi a deixa que havia dado para que lançasse tal comentário, mas mesmo assim já se sentia culpada. Estavam se tornando íntimos demais e em muito pouco tempo. Agora, achar que o “Como você” era uma insinuação, isso realmente não fazia sentido. Mas então... por que dessa vez ele separara o “Como você” não só por um ponto, mas também por um enter, como se fosse um parágrafo à parte?... Bobagem, estava imaginando coisas, aquilo não era próprio de um poeta. Ou era?

Aquela indagação inquietante foi interrompida por uma ligação do presidente pedindo refações para pontos cruciais do plano de contratação da equipe temporária que iria trabalhar durante a convenção. Todas para amanhã. “Já conversei com o novo gerente de comunicação e ele mesmo deu algumas idéias”, afirmou. Mal ela desligou o telefone quando o autor das tais idéias chegou à sua mesa afirmando que precisariam se encontrar após o expediente para conversar sobre mudanças em pontos cruciais no plano de comunicação. "Todas para amanhã". Aquilo era pretexto ou esmero excessivo? E por que ele falou diretamente com o presidente? Será que foi chamado ou pediu audiência? Será que já chegou com as idéias ou elas surgiram no decorrer da conversa com o big boss? Bom, era mesmo atribuição dele analisar e estudar mudanças em tudo que envolvesse comunicação (e as falhas pareciam insidir sobre a divulgação da contratação), não tinha obrigação de se reportar diretamente a ela e talvez estivesse com medo de feri-la ao revelar que desaprovava parte do trabalho. Não estavam competindo, pois pertenciam a áreas extremamente distintas. Talvez ele estivesse apenas criando outra oportunidade de encontro sob um verniz de pretexto profissional. Sem respostas, aceitou o convite para o encontro, pois no restante do expediente realmente não iria ter tempo para pensar naquelas mudanças.

Encontraram-se em um sushi bar, mas não se deram ao trabalho de levar seus notebooks. Apenas conversaram e rascunharam as medidas a serem adotadas. Tudo com muito pragmatismo, sem qualquer desvio da conversa para o lado pessoal. Até o momento em que sentiu, por baixo da mesa, a perna de seu colega encostando-se na dela. Poderia ser apenas um toque casual. Ou não. A perna dele agora mexia-se suavemente, para cima e para baixo. Poderia ser apenas um reflexo involuntário. Ou não. Na dúvida, Paula olhou para seu relógio e alegou ter de conversar com sua filha sobre algo importante ainda naquela noite, sacando da carteira e chamando o garçom antes mesmo de devorar seu quarto sushi de kani. Ele não a deixou pagar.

Novamente evitou abrir o MSN quando chegou em casa. E novamente foi até a cozinha pegar algo para comer, já que interrompera seu jantar na metade. Fragilizada, percebeu virem à tona seus instintos de menina ao abraçar um pote de farinha láctea que resolveu comer às colheradas. Sua filha já estava dormindo. Sentiu-se culpada por não ter chegado antes. A enxaqueca estava voltando, certamente por fundo nervoso. Acessou sua conta de e-mail. Outro poema a esperava, vindo do mesmo remetente.

A adaga impaciente e esguia
Corre o fio por entre seus brincos
Contorna a pérola a buscar segredos
Resquícios cochichados e inconfessos

Não teve como não se sentir obrigada a comentar aquilo logo que começou o expediente da manhã seguinte. Não queria ficar fazendo leituras pessoais, já estava por demais preocupada com aquele jogo para ficar supondo e interpretando. Cansou das entrelinhas. Apesar de determinada, fez rodeios: abriu a conversa questionando o que ele queria lhe perguntar pelo MSN no dia em que sua máquina travou. Ele apenas respondeu que não lembrava. E pareceu muito sincero. Talvez fosse ator além de poeta. Em seguida, ela perguntou se ele estava inspirado para o tal jornal de poesia. O gerente de comunicação tirou de sua gaveta um exemplar da última edição, presenteando-a e voltando a fazer o convite para que também escrevesse. Diante do silêncio da colega, encorajou-a afirmando que eles já faziam poemas no dia-a-dia, pois poesia nada mais é do que interpretar sinais. “Interpretar sinais”, ela pensou, mais uma insinuação entre tantas do repertório. Ele continuou com seu raciocínio entusiasmado, afirmando que poesia é um ato libertário, que no lirismo das palavras você pode ser o que quiser, sem culpa. Ela contestou. Ele contra-argumentou: “estou me imaginando agora sequestrando você. Vai mandar a polícia me prender?”. Ficou desconcertada com o raciocínio. Mas mais ainda com sua curiosidade em saber para qual cativeiro ele a estava levando em seus pensamentos. Paula esqueceu o que queria perguntar e voltaram para suas mesas. Minutos depois, ela recebe nova mensagem no MSN.

Entrepreneur fala:
Só escrevo a 4 mãos se for com uma mulher lírica por natureza.
Entrepreneur fala:
COMO VOCÊ.

Mais uma vez aquela brincadeira. Agora, além de separadas por ponto e em outro parágrafo, as duas palavrinhas suspeitas vinham em caixa alta. Por que a ênfase? Da próxima vez viriam coloridas? Na outra em bold? Depois em corpo 18?

Passou o dia desconcentrada. Como podia estar recebendo cantadas nas entrelinhas sem conseguir afirmar se eram sinais inocentes e despretensiosos ou estratégicos como mísseis teleguiados? Logo ela, profissional da psique humana, da comunicação e do comportamento. Seria tudo devaneio seu? E por que aquele petulante estava ocupando sua mente tanto assim? Ela estava convivendo com homens bem vestidos e charmosos no mundo empresarial, desaprovava os trajes daquele gerente de comunicação por seu jeito esportivo, casual demais para o ambiente formal onde estavam inseridos. Mas, por outro lado, aquilo garantia que ele tinha personalidade, e isso muito a atraía. Sua atenção estava aguçada para assuntos que nunca despertaram seu interesse, como o caso de uma colega que ela descobriu ter um amante há sete anos - era quase o tempo que ela tinha de casada. Por que não se mostrou indignada quando soube daquela revelação? Aquela cara de santinha a enganara muito bem. Quando deu cinco da tarde, fugiu do expediente alegando que a enxaqueca piorou, mas queria mesmo era evitar um convite de última hora para que trabalhassem juntos até mais tarde.

Em casa, nem acessou seu e-mail, muito menos o MSN. Ficou se revirando na cama, sem saber como agir. Pensou em contar ao seu companheiro. Mas ele era indiferente demais, neutro demais. Ao ponto de ela achar que precisaria de um amante para salvar seu casamento. Mas trair, jamais. Onde já se viu. Pensou no que ele faria se soubesse da suspeita de assédio de um colega de trabalho. No máximo, socaria uma parede ou quebraria algum objeto da casa. Poderia até acusá-la de ter dado margem para o assédio. Ou ainda achar que ela estava inventando aquela história só para se valorizar. Ou que estava “viajando na maionese”, se achando A gostosa, pois todas as provas eram um tanto sutis. Os poemas eram apenas poemas, caso fossem considerados provas consistentes a polícia deveria prender Stephen King por assassinato em massa e Mario Puzzo por formação de quadrilha. As insinuações eram de interpretação excessivamente subjetiva. As horas adicionais de trabalho foram de fato de trabalho. A peça com mensagem subliminar, o “Como você”, o convite para escreverem juntos, a perna roçando na sua e tantas outras deixas não poderiam entrar no pacote de indícios irrefutáveis, seria o mesmo que acusar uma amiga de lésbica por receber dela um convite para assistir a um show da Maria Bethania. Mas mais do que o incômodo daquelas dúvidas externas, o que realmente a deixava sem chão eram os impasses internos: na verdade, ela tinha medo que de fato acontecesse, temia que as coisas se misturassem e envenenassem a relação de coleguismo e de uma cumplicidade que ela, legitimamente, gostaria de ter com ele pela vida toda (certa de que a recíproca era verdadeira). E a paúra das paúras era a de que acabasse sendo ruim por ser tão bom. De que esta relação paralela fosse tão melhor que a oficial que Paula jamais conseguiria se abster dela. Para evitar aquele pesadelo seria mais prudente abrir mão do paraíso? Logo afastava aquele dilema pensando no aspecto mais premente: confirmar se estava ou não sendo assediada. Já se via tentada a sair na marra daquele estado de dúvida, perguntando diretamente a ele: “afinal, você quer me comer, é?!” Enfim, ela queria mesmo era uma prova cabal. E a teve. No dia seguinte.

Ao abrir sua conta de e-mail, logo que chegou em sua mesa, percebeu haver mensagem do suspeito colega, mas resolveu acessá-la apenas no final do expediente, pois estava com a agenda excessivamente carregada e não queria perder tempo. Conteve sua curiosidade. E sua resistência prosseguiu no decorrer do período, tendo passado todas aquelas horas se esquivando do suposto sedutor de golpes perversos em sua sutileza. Quando já se aproximava o horário de ir embora, notou que teria de levar um bocado de trabalho para casa, mas deu-se ao luxo de sucumbir à sua curiosidade: clicou na mensagem e a leu atônita.

Maculada a libido clama
Suplica a sanha do gozo
Implora e forja a verdade
Torna o medo prazeroso

“Libido”, “gozo”, “verdade”, “medo”, “prazeroso”. Estava tudo ali. Não era mais possível prosseguir com dúvidas diante de uma série de evidências tão claras em um mesmo texto. Era óbvio que ele a estava convidando ao sexo sem culpa, a descarregar seu tesão e a deixar os sentimentos falarem mais alto que seus receios e sua conduta moral. Nenhuma outra interpretação era possível para aquelas linhas. E que se dane se o autor não fosse ele, estaria então usando de criação alheia como porta-voz de uma mensagem pessoal. Ela teria de tomar uma providência em definitivo. Ligou para a recepção e perguntou do paradeiro do gerente de comunicação, recebendo então a informação de que estava no hall de entrada. Paula levantou-se e caminhou determinada, pronta a dar uma resposta fulminante: “Ah, seu trabalho é interpretar sinais? Então interprete isso”, diria ela levantando o dedo médio em frente ao rosto do imoral. Se ele negasse o assédio, ela simplesmente dispararia o e-mail para a presidência e daí a ginástica para justificar o conteúdo seria bem exaustiva.

Chegando no hall de entrada, Paula deparou-se com o gerente de comunicação ao lado de uma moça bonita e elegante. Ele apressou-se em apresentá-la, era sua namorada, e, em seguida, pediu a Paula um milhão de desculpas, pois havia lhe enviado e-mails com poemas por engano. Ela e sua namorada tinham o mesmo nome, e ele se atrapalhou na hora de selecionar o destinatário. Sem reação, Paula viu o casal trocar um beijo e sua homônima ainda recomendar: “liga não, ele vive aprontando confusão. Ainda bem que essa foi com uma pessoa sensata”, e ele arrematou: "Como você".

Paula voltou até sua mesa, desligou o PC, apreciou a repartição toda vazia e silenciosa, tamborilou com os dedos sobre o mouse pad e sacou o telefone. Ligou para Fernanda aceitando o convite de sair e beber.


Mario Lopes

5 comentários:

Unknown disse...

Que balde de água fria ela levou, hein. rs
Beijos.

Anônimo disse...

Bom, quem não sabe o que quer geralmente acaba arremessando o balde de água fria sobre a própria cabeça, né? rs
Beijo, Mila.

Mario

Deus usa sunga.... disse...

Muito bom!!! Estou adorando os textos do Mario. Algumas vezes me identifico com eles. Mario tem alma feminina. Show!
Karime

Anônimo disse...

Puxa, Karime, muito obrigado. Esse comentário de eu ter alma feminina foi um dos elogios mais bonitos que já recebi na vida. Estou realmente lisonjeado.
Beijo.

Mario

João Lucas disse...

Cara, li alguns posts seus, vc deve ter uma tara por psicóloga. E ainda sua "musa inspiradora" deve ser das mais interessantes, só falta ela ser apresentada. Escrevo algumas crônicas também me interessei pelas suas histórias.