sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

A Arte de Ser Escravo



Artista, poeta, músico, compositor, escritor, pintor. Manoel era o híbrido de todas as facetas artísticas, dissolvidas em sua personalidade fantasiosa e fruto de uma infância solitária e adulta. Tendo apenas a si mesmo como companhia, passou a ver em livros o que não via em pessoas: fidelidade para toda as horas. Desde cedo, lá estava ele sentado em algum canto com os livros apoiados sobre o joelho, os olhos abertos e vermelhos devido à leitura e os dedos quase calejados de tanto virar páginas amareladas e grossas.
De estatura mediana e rosto costumeiro, Manoel nada tinha de interessante, nem mesmo aquele quê de exótico sempre presente nos artistas compunha sua face. Não usava grandes óculos ou cabelos compridos, e nem havia criado um trejeito estranho ou uma mania bizarra para si. Manoel não era artista por fora, mas era por dentro.
Quando seus olhos lacrimejavam pedindo uma pausa, ele largava os livros e compunha livremente em seu violão. Não parava para raciocinar sobre a teoria da música e suas harmonias e desarmonias, e simplesmente deixava que suas mãos ganhassem vida própria. Entrava em transe durante esses momentos de criatividade. Nunca sabia aonde ia parar, mas tinha a certeza de que voara alto e centenas de quilômetros.
Assim criava melodias e canções, contos e poemas e tudo o mais que sua vontade lhe ordenasse. Não se preocupava com a qualidade do que criava, mas sim com a verossimilhança dos sentimentos e emoções que depositava em cada palavra do que fazia.
Manoel, normalzinho, de jaqueta e calça jeans, era um artista. Compunha por hobby, por paixão à arte e por adorar entrar em suas próprias entranhas através de rimas, estrofes e acordes. Não almejava ser um estereótipo caricato, ou ser daquele tipo que é identificado como artista logo de primeira. Aliás, seu único desejo era aprimorar todos seus trabalhos para satisfazer melhor a si próprio.
Com o tempo, o volume de obras produzidas por Manoel foi ficando cada vez maior, e a quantidade de prêmios ganhos também. Ele passou a ser reconhecido, ou melhor, suas obras passaram a serem reconhecidas. Manoel era como um fantasma por trás de suas músicas, poemas e contos, como se elas, em sua natureza onipotente, descartassem a necessidade de um autor.
Era frustrante ver que após finalizadas, suas criações tornavam-se tão independentes que eram mais donas dele do que ele delas. Era como se a música tivesse sido feita por ela mesma, e Manoel fosse apenas um intruso pensando ter feito parte de todo o processo. Os poemas eram dos poemas, de cada linha e estrofe contida em seu conteúdo, como uma obra fantasma que finalmente tornou-se viva. E Manoel, era Manoel.
Tudo era seu, mas ninguém notava e nem se dava ao esforço de notar o quão boas eram suas obras. De tão magníficas, tornavam todo o resto insignificante e aquém, até mesmo seu autor e seu público. Eram como deuses hipnotizantes dominando um mundo pela fascinação e perfeição. Era desnecessário saber a fonte de algo mágico, pois talvez o público temesse até uma frustração. Não queriam ver um artista intelectual incrível e muito menos uma pessoa comum. Seria um afronto àquela melodia, a história envolvente e inesquecível e ao poema ícone que marcaria épocas.
E Manoel assistia a tudo assustado e sem saber o que fazer. Suas obras tornaram-no um Zé ninguém, uma pessoa sem sombra, sem nome, sem trabalho e sem sonhos. Todas as suas criações foram feitas para ele mesmo, e acabaram conquistando um mundo de seguidores ingratos.
Mas isso mudaria. Desde criança, Manoel não queria ser reconhecido como um artista e nem se parecer com um, mas também não desejava o extremo oposto. Não esperava que suas músicas virassem referências e fossem estudadas por grandes músicos, nem que seus poemas fossem cegamente comparados com os de poetas renomados ou que seus contos fossem considerados como os melhores do século.
Então, Manoel encontrou a solução. Pelo menos uma vez na vida agiria como um verdadeiro artista deveria agir. Se escritores devem ser depressivos e anti sociais e músicos devem ser drogados, ele agiria como tal.
Talvez assim alguém notasse o caráter humano de todas as suas obras e pela primeira vez percebesse que há alguém por trás das criações. Acreditava que o público o ignorava por não fazer parte do estereótipo artista e estava condicionado a primeiramente avaliar o autor para depois olhar o que criou e como desde sempre ele era nada mais do que apenas o Manoel, esqueceram-se dele, mas não de sua obra. Um fenômeno na história da música e literatura.
Ele estava cansado de ler a biografia de grandes escritores e músicos que além de fazerem arte, levavam uma vida “artística”. Bem ele sabia que o maior movedor da criatividade é a tristeza, mas ele não precisava buscá-la e viver depressivo para conseguir criar uma obra prima.
Ele era uma verdadeira exceção, pelo menos de acordo com tudo o que já ouvira falar e lera sobre os verdadeiros fazedores de arte.
Portanto, mudou sua vida, desde as vestimentas, até sua rotina e sua forma de pensar. Trocou as simples calças jeans por calças de linho xadrez, e a jaqueta por um terno comprado em brechó. Deixou o cabelo crescer e uma boina estilo francês tornou-se sua peça pessoal. Aprendeu a tragar e não mais saía em público sem um cigarro nas mãos.
Mas de nada adiantou. Até o olhavam na rua, mas não o reconheciam como o grande autor de todas aquelas maravilhas. Era inacreditável sua transparência e insignificância.
Então, o jeito era tomar atitudes que iam contra seus princípios, mas a favor dos de um artista. Uma atitude que realmente lhe daria os títulos de grande escritor, poeta e músico compositor, mesmo que ninguém soubesse que ele havia feito isso. Um puro desencargo de consciência em uma situação de desespero.
Feitos os devidos preparativos, Manoel colocou sua melhor música para tocar. Seria o jeito perfeito de, só uma vez, uma vez apenas, agir como um verdadeiro artista “exemplar”. Sem mais delongas, sem hesitar para evitar qualquer arrependimento, injetou em suas veias o que para ele deveria ser sua heroína. Injetou a sua fuga do mundo real, e a passagem para um mundo onde ele realmente era o dono de suas obras. Sentiu correr dentro de si e misturar-se à sua essência a original alma de alguém que vive de criatividade. Alguém que não era ele, mas poderia ser.
Enquanto seu mundo girava, ele mal percebia que os vizinhos arrombavam a sua porta para entender o barulho que vinha dali de dentro. Mas ele não estava lá, e sim em frente a um enorme público chamando por seu nome, gritando sua música e recitando poemas seus.
Cinco homens arrombaram a porta do apartamento. Todo o prédio ouvira os gritos insanos e irreconhecíveis de Manoel e o som de móveis e objetos sendo jogados contra a parede e se despedaçando no chão. Nunca ninguém havia entrado ali e muito menos sabia algo sobre ele.
Tudo ali estava coberto de poeira e parecia ter vindo de um museu de inutilidades, de um antiquário ou de uma loja para fãs de bandas. Nas paredes, quadros do Led Zeppelin, Beatles e Elvis ao lado de outras de Luiz Vaz de Camões, Shakespeare e Dante Alighiere. No chão e nas prateleiras, dezenas de livros clássicos de escritores como Homero, Balzac, Cervantes e Dostoievski misturavam-se com papéis amarelados escritos por garranchos quase ilegíveis. Um dos rapazes procurou entre os papéis alguma carta de despedida ou algo assim, mas só achava poemas que aparentemente não estavam conectados a sua tentativa de suicídio. Em um deles, lia-se:

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure
Ass: Manoel Vieira da Costa.

Enquanto isso, um outro rapaz notava que todos as capas de CDs estavam riscadas, e no lugar do nome da banda estava escrito Manoel Vieira da Costa.
No apartamento, os outros três homens que ouviam Twist and Shout tocando na vitrola velha, olhavam para Manoel e para o disco que pendia em suas mãos. A capa estava recortada e uma foto do dono do apartamento fora colada ao fundo e embaixo dela, lia-se com dificuldade:
Abbey Road.
Enquanto naquele instante, em algum lugar do universo, Manoel pensava que finalmente fora reconhecido, um dos rapazes presentes no apartamento olhou para Manoel e em uma fração de segundo, viu Jim Morrison.
Mas a sensação logo passou.


Letícia Mueller

7 comentários:

Karime disse...

Le, me dá um autógrafo ?

Bjão!!!

absolutsubzero disse...

Oi Lê

Nossa eu não esperava este final inusitado. Nós que sempre trabalhamos com a arte de criar ou recriar buscamos sempre o momento ápice que Manoel aparenta ter encontrado, o estar em transe para só existir nós e nosso momento criativo.

Maravilhoso o texto e mais ainda esta virada final.

Beijos
Daniela

Anônimo disse...

que susto...
pensei que não teria post dela hoje,
sorte que pela manhâ estava lá

Anônimo disse...

Letícia, antes d dar autógrafo pra Ka, me passa o fone do Bruno por e-mail, vai. rsrs
Beijo e parabéns, Fofutety.

Mario

Anônimo disse...

Demais guria... muito mesmo...

um beijo

angelica

Anônimo disse...

Tô aqui na minha cabeleireira, e ela e as clientes acharam o texto demais. Parabéns. Beijo.

Mario

Anônimo disse...

Obrigada gente, de verdade.

Beijos,
Leticia