terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Rebecca



Dizem que ser hipnotizado pode induzir uma pessoa normal a realizar coisas que vão além de seus sentidos. O hipnotizador, ao estabelecer um relacionamento com o indivíduo, pode incitá-lo a demonstrar certos hábitos inconscientes chegando a um estado alterado, no qual sua mente ficará suscetível apenas à sua vontade, transferindo controle total à outra pessoa.
É como Bernardo se sente em relação a Rebecca.
"Só uma vai? Só uma vezinha? Não aceito um não como resposta! Por favor, por favor, por favor...", dizia ela fazendo biquinho e uma vozinha de menina que pede para o pai deixar brincar mais um pouquinho no parque de diversões. Rebecca, olhos azuis, cabelos curtos e louros, no auge de sua fugaz adolescência, garota intempestiva, teimosa, quando colocava uma coisa na cabeça ninguém tirava, e o pior é que sempre conseguia o que queria. Culpa da doçura e esperteza de moleca, culpa do doce sorriso, das belas e sensíveis curvas de seu corpo. Culpa minha, sim minha culpa.
O que eu estava pensando? Quem eu pensava que era? Eu, cerca de 13 anos mais velho, nesse momento um apaixonado, viciado pelo som musical de sereia da voz de Rebecca, que me enfeitiçava e eriçava todos os pêlos de meu corpo. Seus convites eram como ímãs, uma coleira presa em meu pescoço, me puxava para lugares desconhecidos, inimagináveis. Os olhos convidativos de Rebecca, quando encontravam os meus, dissipavam raios nocivos direto no meu coração, cegavam minha alma. Diante dela, eu era só sorrisos e afirmações. "Sim, claro que sim, Rebecca , levar você aonde? No shopping? Vai sozinha? Ah, tá... vai com as amigas... tudo bem... acho que dá tempo sim, no intervalo do meu almoço, mas não posso aguardar muito tempo, tenho reunião no escritório". "Ah, fala sério Bernardo! Só uma vez, só uma vezinha vai, quebra esse galho pra mim"?
Aquela voz... soava como sinos em meus ouvidos, como resistir aos apelos frenéticos de meu coração, então eu realizava todos os desejos de Rebecca, uma, duas, três, várias vezes.
Eu era o chofer, o “Severino quebra galho”, o que estava sempre disposto a dar carona para a festa rave no interior, acampamento no fim de semana, compras, levava a vozinha ao médico, levava para passear: as amigas, a família, o gatinho... quer dizer... maldito gato que defecou no estofamento do carro. Aí, quando ela percebia que eu me irritava... "humm, que bíceps, hein, Ber! Anda malhando? Como você está forte Ber... Ber, carrega essas sacolas pra mim? Só dessa vez? Só uma vezinha! Lindooooo! Você não existe, Ber! Sabe, se eu fosse mais velha até namoraria com você".
Uma centelha de esperança percorria meu corpo, uma visão esplêndida em minha mente: eu beijando os lábios vermelhos e carnudos de Rebecca, o cheiro almiscarado de seus cabelos, o contato suave com sua pele alva. E o desejo apossando-se cada vez mais, eu entrava numa espécie de transe misturado com contemplação, um ser divino era Rebecca, uma sílfide. Uma parte de minha consciência pedindo “pare agora”! Mas eu não ouvia, eu queria mesmo era ver Rebecca, senti-la, ouvir seus risinhos irônicos, misturar-me a sua vida diária, aproximar-me e aproveitar a hora mais propícia. Nem que fosse só uma vez... só uma vezinha.
Em uma tarde quente de verão, Rebecca resolvera acampar, o humor imperturbável, os lindos olhos azuis faiscando de excitação pelo passeio, o sorriso avassalador. Naquele dia usava apenas um micro shortinho, blusinha de alcinha, sem sutiã. Era uma visão perturbadoramente sexy e cruel. Correu em minha direção, jogou os braços em meu pescoço, parecia pendurar-se como uma criança num balanço, beijou meu rosto várias e consecutivas vezes. Outra vez o suave perfume, o toque incendiário de seus lábios, e a voz pueril: "Vamos, Ber, me ajuda a colocar as malas no carro, por favor?", então, eu esquecia outra vez minha identidade, todos os compromissos cancelados, minha visão era “ela”, meus pensamentos eram dela, meu corpo obedecia somente as vontades dela.
Acampamentos simplesmente me irritavam, odiava dormir ao relento, os mosquitos, as terríveis brincadeirinhas sem graça. Não que eu fosse anti-social, mas acho que não tinha mais idade, nem paciência para essas coisas. Mas Rebecca conseguia me puxar com unhas e dentes para esses eventos.
Havia pessoas demais naquele acampamento, cinco garotos sardentos, carregavam uma menina, ou melhor, arrastavam-na para dentro de uma piscina, gritos... gargalhadas... olhares... e, finalmente, a recepção calorosa: "Nossaaaa! Quem é o vovô? E aí, tio? Veio trazer a sobrinha? Não se preocupa não, a gente cuida bem dela! Ah, é o tio da carona, kakakaka"!
Mas isso não era tão ruim até Rebecca chegar e me puxar pela mão: "não liga, não, Ber! Eles estão é com inveja! Vem cá, me ajuda a montar as barracas, aff! Já está escurecendo... Tem ainda que acender a fogueira... corre, vem me ajudar!", "Não sei, Rebecca.. acho que vou embora", "Deixa de ser preguiçoso, Ber, só dessa vez, você não faz nada mesmo naquele escritório! Só dessa vez, vai? Só uma vezinha".
Fiquei horas montando as barracas, acendendo a fogueira, organizando as malas, e olha que não eram poucas! Quando dei por mim, estava sozinho, ouvia somente o cantar dos grilos, olhei ao meu redor, senti a falta de Rebecca, depois de tanto trabalho, meu único alívio seria seu sorriso.
Andei pelo acampamento a sua procura, várias barracas estavam dispersas, encontrei as amigas que me disseram que ela estaria na cachoeira. Avistei Rebecca deitada às margens do rio. O corpo semi-nu, a pele branca iluminada pela luz da lua, de longe parecia uma sereia. Fui me aproximando devagar. Ela parecia tão sensível, tão volúvel, os olhos fechados... e se eu a beijasse? Talvez ela nem sentisse, ou até mesmo gostasse. Só uma vez... poderia jamais ter outra oportunidade. Não haveria cenário mais propício e romântico como aquele. Então, sem pensar, agachei-me e pousei meus lábios nos dela, os lábios macios e frios...
De repente, eu era o personagem de um estranho sonho, hipnotizado, sem ação. Senti-me flutuar, uma sensação forte e quente se infiltrando em meu coração, sentia um cheiro metálico e doce ao mesmo tempo, eu só queria que Rebecca acordasse, que retribuísse meu beijo, mas não houve resposta, apenas silêncio. Minha razão agora voltava aos poucos, me libertando da hipnose. E quando dei por mim, não era mais um sonho, mas sim um pesadelo, o desespero invadiu-me ao perceber o frágil corpo de Rebecca sem movimento, a pele fria e uma grande mancha vermelha de sangue...
Eu desejava morrer naquele instante, para quem sabe ainda alcançar Rebecca em sua passagem para a outra vida, tê-la em meus braços nem que fosse uma única e última vez, só uma vezinha.


Elaine Souza

3 comentários:

Anônimo disse...

Belo conto, Elaine, efeito Lolina com final hardcore.
Beijo.

Mario

Karime disse...

Muito bom, Elaine! Adorei!!!
Bjos

Luciane Portolan disse...

Linda história..com final triste..mas linda.