sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Beata Por Conveniência



Clara nasceu com o espírito enrustido em maniqueísmos. Desde criança, sentia seu anjo e seu demônio discutindo atitudes que ela queria tomar. Em casa, quando estava sozinha e restava apenas mais uma fatia de bolo, eles começavam:
Anjo:
-Clarinha, pense no seu irmão. Ele adora esse bolo e ainda não comeu nem um pedaço.
De um outro lado de sua mente, o Demônio começava:
-Que irmão o quê! Se ele ainda não comeu, não é problema seu. Não se esqueça que ele, na sua situação, já teria devorado essa delícia e estaria se lambuzando de chocolate e rindo de você.
O anjo rebatia com tranquilidade:
-Ele nunca faria isso, e você sabe disso. Não se esqueça que em sua última viagem, ele preparou vários docinhos para sua chegada.
Clara permaneceu nessa berlinda por alguns segundos até decidir pegar apenas um pedacinho e deixar o resto para quem quisesse comer. Mas estava tão gostoso! Tão fofinho e saboroso! Mais um pedacinho e ninguém nem notaria que o bolo fora mexido. Nhac.
Que delícia estava aquilo. Mais um pedaçinho. Nhac.
Mais um só. Nhac.
E lá se foram as últimas migalhas do bolo da discórdia.
Seu irmão, ao chegar em casa e notar o prato cheio de farelos e nada do bolo, irritou-se e foi ao quarto de Clara para reclamar, mas ela já estava embaixo das cobertas, aparentemente dormindo.
Assim que ele saiu do quarto, batendo a porta com força, ela acendeu a luz do abajur e sentou-se na cama, com medo de si mesma. Não admitia esse descontrole e essa maldade em privar seu irmão de algo que também lhe era de direito.
Anjo:
- Clara, mostre que você está arrependida e vá se desculpar. Caso ele não a entenda, faça para ele o seu bolo preferido. Ele vai entender.
Demônio:
- Vá dormir, menina! Não há nada com que se preocupar, afinal, o bolo não estava ótimo? O que você poderia ter feito? Ter deixado ele ali, para outro ir lá e comê-lo? Não!
E assim eram todos os dias, não apenas com bolos, mas também com brinquedos, fofoquinhas ingênuas na escola e na hora de escolher o seu grupo de brincadeiras durante as aulas de educação física.
Mas Clara não conseguia evitar. Morria de ciúmes de todas as suas bonecas, não conseguia evitar falar da menina gordinha de óculos e tampão nos olhos e não conseguia escolher a menina metida para participar do seu time. Aliás, sentia até um prazerzinho em vê-la ser escolhida por último ou até mesmo ficar sem grupo.
Porém, quando a noite chegava e Clara estava pronta para dormir, seus anjos e demônios voltavam a sobrevoar sua mente e impedir seu sono tranquilo.
Nem um dia se passava sem que ela fosse atormentada por sua própria consciência, cada vez mais opressiva e torturante, até que um dia, ela tomou uma decisão.
Não podia mais viver com aquele fardo. Preferia assumir sua maldade sem receios, ou se tornar uma eterna beata. Cansou-se da falta de personalidade e de agir com insegurança, tentando ser o que não era e sem saber exatamente do que sua essência era composta.
Ela seria a Clara boa, ou a Clara ruim. Até podia ser um meio termo, mas que o mantivesse em todas as suas atitudes. Nada mais de anjos e demônios decidindo por ela. A partir daquele dia, Clara seria dona de seus pensamentos e ações, e a única voz que seria ouvida em sua mente, seria a voz da razão, e a de Deus.
Decidiu ser a eterna beata. Como morria de medo de ir para o inferno e passar o resto da existência em um calor de 70 graus, escolheu se tornar freira para desfrutar o céu azul e as águas cristalinas do paraíso. E o caminho mais fácil para se chegar lá era manter uma vida mais próxima possível de Deus.
Após pesquisar e conversar muito com as mulheres de Deus, ela passou a policiar todas as suas atitudes para que fossem semelhantes às delas. Já se imaginava morando em uma dessas casas simples, atrás de capelas de escola ou da própria igreja, dormindo em camas duras, muitas vezes sem colchão, e comendo apenas o necessário.
Sabia que era uma vida difícil, mas honrada, e caso a seguisse a risca, teria passagem direta para o céu.
Tendo sempre essa meta em mente, Clara se tornou a melhor aspirante à freira que jamais existiu. Nunca mais se atreveu a comer o último pedaço de nada, engolia sapos de todo mundo para não provocar uma briga, mesmo que ela estivesse certa, doava a pouca mesada que ganhava para a igreja e ajudava a todos sempre que possível.
Quando chegou a época em que todas as suas amigas começavam a namorar, Clara repelia seus desejos, sempre pensando na ameaça de ir para o inferno. Nas festinhas, era excluída porque só bebia refrigerante e também, porque acabou perdendo todas as suas amigas de tanto tentar ensinar a elas o caminho do bem.
Viveu assim por tempo suficiente, até perceber que agia como uma atriz da vida, medrosa com o desconhecido. Não era feliz, pois forçava atitudes imitadas de mulheres boníssimas, mas que, no fundo, não a faziam feliz. Antes ser uma maldosa por essência, do que bondosa por conveniência.
Clara percebeu que o melhor para si era levar uma vida de acordo com seus princípios, e que poderia errar sem ir para o inferno. Percebeu que de nada adianta ajudar aos outros se, além de não estar feliz consigo mesmo, estiver agindo por benefício próprio, e que o certo era viver o agora conscientemente, pois o amanhã pode nem chegar.
Resumindo, ela cansou de ser boazinha e largou seu sonho de ser freira, quando percebeu, que é um inferno chegar ao paraíso.


Letícia Mueller

5 comentários:

Anônimo disse...

Letícia, você tem uma habilidade bastante peculiar de trabalhar dialética e dramaturgia simultaneamente. E o mais bacana, com um raciocínio por vezes desconcertante pela sagacidade e coerência.
Beijo, Fofulety.

Mario

Anônimo disse...

Eu já fui mais anjo.

Karime disse...

Concordo com os dois! O elogio ao texto da Letícia e o comentário que fizeram: eu também já fui mais anjo. E, como diz uma letra do Santana: tem um monstro embaixo da minha cama, sussurrando no meu ouvido, tem um anjo com a mão na minha cabeça, dizendo que não há nada que eu deva temer.
;)
Bjo

absolutsubzero disse...

Lê, sou fã de seus textos, mas este simplismente foi muito mais que sagaz, afinal todos nós temos que saber dosar o bem e o mal.

Creio que eu fui bem mais diabinha, não sei se isto é bom ou ruim, mas estou em processo de um dia quem sabe descobrir.

Beijos

Ana C. disse...

Não existe luz sem escuridão... mas que no inferno deve ter pessoas muito mais interessantes... isso deve!