domingo, 7 de fevereiro de 2010

Em Meio



Em meio a homens-carros, fumaças inebriantes e relógios acelerados, estava eu, tão insignificante quanto todos os outros que passavam por aquelas ruas do centro, cada um no seu ritmo, com seus pensamentos e problemas, indo provavelmente, para lugar nenhum. Os pés, em sapatos, chinelos, sandálias e descalços, passavam feito uma manada pelas calçadas gastas e centenárias, devastando paralelepípedos e meio-fios. Cada um tinha o seu horário, mas o conjunto de todos, aquele povo que se movia em ondas aleatórias sem direito a pausas, não tinha direito a nada. Alguns andavam de cabeça baixa, outros, ouvindo música, pareciam distraídos e alheios ao mundo, mas eu tenho certeza, que até o coitado do mendigo, que já não tem nada a perder, teme o perigo iminente e sempre a espreita. Existe sempre um inimigo “natural” esperando por você na próxima esquina, seja você um advogado, um gari, um bandido ou um policial. Um teme o outro, o outro teme aquele um, e todo mundo teme a todo mundo, sem parar.
Avisto o lugar onde estacionei meu carro há 8 horas, no início do expediente. Hoje tive sorte em achar uma vaga, apesar de que no fim, acabada sendo tudo igual. As ruas mudam, mas as pessoas e o fim de tudo isso, serão sempre os mesmos.
Sinal fechado. Eu estou na frente, olhando para a luz vermelha que inconscientemente salva a vida daquelas pessoas otimistas que atravessam as ruas despreocupadas. Psicopatas não acreditam em sinais. Muita gente já deve ter morrido assim.
O sinal demora. Olho para frente para ver se tenho como escapar. Há um rapaz na calçada tentando olhar para dentro do meu carro. Talvez esteja pensando em roubar minha bolsa, ou quem sabe esteja só olhando para mim. Não há como saber, estou sozinha nesse carro e na vida, não confio em ninguém. Porém, um surto de coragem me faz erguer um pouco o rosto e olhar para seus olhos, rapidamente.
Que belíssimos olhos. Tão grandes e profundos. Eu poderia ficar horas olhando para eles, decifrando seus enigmas, adivinhando seus pensamentos. Os olhos e o rosto, ao mesmo tempo masculinos e harmônicos, calam o mundo ao redor e parecem fazer ecoar uma eternidade nunca vista e inexplicável. E ele me olha, misterioso, sem me deixar entender o que se passa em seus olhos de anjo. Não entendo, mal tive tempo de observá-lo e já fui tomada por esse poder furtivo. Ele me tirava de meu mundo, sem nem ao menos piscar ou mexer os lábios. Eu fui enfeitiçada.
O sinal abre. Ouço sons estridentes e longos distantes, como se eu estivesse do outro lado de um túnel. Percebo que não passam de buzinas atrás de mim, dos impacientes homens-carro e... o homem ao meu lado está fazendo sinais, pedindo para eu estacionar ao lado.
Não consigo entender. O rapaz é realmente bonito, mas ele não pode estar pensando que eu pararia para falar com ele. Que audácia, ele continua a me fazer sinais para eu parar na próxima vaga. As buzinas atrás de mim não me deixam pensar.
Não posso parar o carro, a questão é essa. Não só pelo perigo, mas também por que isso tudo não durou mais que 5 segundos. Eu apenas olhei em seus olhos e achei-os bonitos, contagiantes, hipnotizantes. Talvez eu nem parasse nem por uma amiga, quanto mais para um homem desconhecido. Não há como saber quais suas verdadeiras intenções. As buzinas não se esgotam e nem ele pára de gesticular.
Vejo os outros carros desviando o meu e o engarrafamento que estou causando, enquanto o Homem está na calçada, tranqüilo, me olhando profundamente e quase implorando para eu parar o carro na próxima vaga.
Ele é realmente charmoso, mas não posso fazer isso. Engato a primeira e arranco, deixando buzinas e o homem para trás.
Que audácia, só porque eu o olhei por alguns segundos.
Eu nunca pensaria em parar para ele, em falar com ele, em olhar para ele. Um mero pedestre, esperando para atravessar a rua ... nunca.
No fim do mês, junto com uma multa especial e constrangedora, ela recebeu um pequenino bilhete, onde se lia, escrito em letra corrida:
É uma pena, eu nunca te pararia.
Todo o dia era assim, talvez desde que inventaram o semáforo.


Letícia Mueller

Um comentário:

Karime disse...

Le, não esquece de me convidar para a festa de lançamento do teu livro, ok ?
Adorei!
Beijo, beijo, beijo