quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Maple Tree


A estrada estava vazia naquele feriado de Carnaval. Quem morava na Capital fechou suas portas mais cedo e foi ao litoral para as festas pagãs. Marta dirigia seu carro rumo a uma pequena cidade do interior chamada Maple Tree. A cidadezinha, colonizada por imigrantes europeus, ficou famosa por seus imensos e densos bosques de árvores que levam o mesmo nome e que, dizem as lendas, iniciaram de uma única árvore plantada por uma família canadense com uma história sombria. A Família Mrunswick, que teve a mãe e a filha recém-nascida mortas pelo pai, o qual em seguida atirou-se nas cascatas. Hoje, atrai muitos turistas, que acreditam que a lenda é somente para este propósito.
Marta é uma jovem jornalista, que escolheu sua profissão porque sempre achou que não vive no seu tempo. Adora escrever sobre a história dos lugares e pessoas. Seu ofício é escolher e reproduzir a vida de quem conhece pouco, nunca se atendo aos fatos, mas sempre, aos relatos. Histórias bem pouco éticas, mas bastante lucrativas. Saiu de casa muito cedo, para casar, mas não se adaptou. O marido era impositor demais e ela não se permitia ser mandada por ninguém, tinha problemas com hierarquia. Resolveu enfiar-se, então, em uma jornada por várias pequenas cidades a fim de explorar a história de cada uma.
Parou em uma pequena loja de chocolates e comprou algumas unidades. Na primeira mordida, sentiu um gosto apimentado e perguntou ao vendedor do que era composto o doce. Ele explicou, em um tom grave e pausado, que era um chocolate com pimenta, feito de forma artesanal e que se inspirava na mescla de alegrias e dores da alma.

- Nada é tão doce que não esconda o mal que pode causar - falou o velho, tocando a mão de Marta.
- Quanto, custa o chocolate, senhor? Apressou-se Marta, arrogante.
- Qual o preço da sua alma, menina?

Marta deixou uma nota de dez, virou os olhos numa expressão de repugnância e rapidamente saiu do local, não sem antes pegar uma água para refrescar a boca que ardia.
Continuou pela estrada deserta, cerceada por hortências e acácias negras. À direita, o Lago Negro envolto por uma neblina baixa, uma paisagem lindíssima, ao som de Enya. Marta freia bruscamente e grita. Um corvo passa num vôo rasante, quase atingindo o pára-brisa e a assusta, fazendo-a proferir algumas palavras de ódio. Retoma a calma, olha para os lados, ninguém na estrada. Parecia uma cidade fantasma. Olha para o alto e vê a ponta da Igreja de Pedra, seu destino. Direciona o carro para a estrada de terra batida e começa a subida, rumo ao que ela descobriria mais tarde ser a resposta para toda sua vida. Chegando, avista uma estátua, em bronze, de uma mulher com um bebê no colo, erguida nos jardins da Igreja em homenagem à Marion Mrunswick e sua filha Meryl.
Marta entra na Igreja, escura e um tanto macabra. “As imagens de cerâmica e os vitrais são próprios de filmes de terror”, pensa e julga consigo mesma. Vai até o altar, onde está um servente limpando os objetos de ouro e pergunta onde está Padre Mathias. O servente acena com a cabeça e pede que ela o acompanhe. Leva Marta até os aposentos do padre, que está enfermo e quase morrendo. Provavelmente seriam suas últimas palavras e então Marta amolece seu até então, coração de pedra, tão racional. Ele lhe estende a mão, olhando-a fixamente e pede para que se sente.

- Padre Mathias, por que mandou me chamar?
- Preciso te revelar algumas coisas, minha filha.
- Não nos víamos há muitos anos, não é Padre. Desde que...
- A tua ansiedade em viver... sempre tão descompassada. Me lembra sua mãe.
- Desculpe Padre – diz Marta, acanhada. Eu não perco a mania de me
adiantar ao futuro. Mas me diga, por favor, ainda tenho outras cidades a visitar.
- Está preparada para ouvir o que tenho a dizer?
- Sim, Padre.

Marta estava voltando para sua cidade natal. Ali nasceu e viveu até os
treze anos de idade, quando foi adotada por um casal do sudeste do país.

- Lembra-se de seu pai, Marta?
- Claro, como não lembraria. Estive com ele...
- Não falo de seu pai adotivo, minha filha. Falo de seu pai de sangue.
- Eu não poderia Padre. Ele morreu, os dois morreram. Num acidente de
carro quando eu era ainda bebê.
- Seu pai não morreu naquele acidente. É sobre isso que preciso lhe falar.
- Padre, o que está dizendo? Eu fui a única sobrevivente, ainda bebê, esta
foi a história que me contaram até meus treze anos quando saí daqui.
- Acalme-se e ouça. É importante que saiba de tudo, pois minha missão
está por findar e é necessário que eu aja depressa ou não haverá mais volta.

Marta estava atônita, mas sentou-se e prestou atenção ao que Padre
Mathias dizia. Ele lhe explicou que realmente houve um acidente, mas que apenas sua mãe havia morrido. Seu marido, um homem violento e inseguro, causara o acidente, após uma discussão entre o casal. Sua mãe assumiu amor por outro homem e admitiu não ter certeza da paternidade da criança. Marion queria sair da Mansão Madrygal, onde morava o casal. Dizia que não se sentia bem ali, que nunca gostou do lugar e que era infeliz ao seu lado. Em um surto, o marido colocou-a no carro a força e dirigiu para o precipício. O carro capotou diversas vezes até pegar fogo e carbonizar o casal.

- Mas e quanto a mim? – disse Marta, aterrorizada.
- O caseiro da Mansão amava muito sua mãe. Ao ouvir a discussão, foi até
seu quarto, Marta, e pegou-a no colo para que não chorasse. Viu o acidente da janela do quarto.
- Como o senhor sabe de tudo isso, Padre? Como pode ter tanta certeza?
- Sei porque eu era o caseiro. Eu sou seu pai, Marta.

Marta sentiu como se sua história inteira passasse pela memória. Flashes de sua adolescência, infância e nascimento vieram como um filme. Era como se tudo o que havia aprendido até aquele dia se esfarelasse e tivesse que começar outra vida, sem passado, sem referência. Seus planos, sua vontade de descobrir histórias a havia levado até aquela situação e agora não acreditava fazer parte de um de seus contos.
Padre Mathias tinha sido caseiro enquanto estudava no seminário e envolveu-se com sua mãe em um amor único e intenso. Viveram noites de prazer e loucura, seus corpos pareciam um só, uma mistura de alegria e dor que não poderia ter fim mais trágico. Marta não sabia o que dizer. Apenas lembrava do que o velho da loja de chocolates havia lhe falado.

- Depois da morte de sua mãe, perdi o sentido da minha vida, Marta. Entreguei você à adoção. Eles não tinham família neste país e então eu assumi a Mansão, que era a mesma em que viveu a Família Mrunswick. Amaldiçoado lugar. Mandei demolir e construir esta Igreja. A estátua que viu em frente, eu mesmo esculpi. Aqui onde está agora, foi o último lugar em que estive com sua mãe antes dela morrer, o único espaço da Mansão intacto. Estou morrendo Marta, e precisava lhe contar a verdade.

- E por que agora? Por que neste momento? Perguntava deixando escorrer lágrimas pela primeira vez em sua vida.
- Nunca tive coragem de reviver meu passado, filha. Apaguei as lembranças covardemente e não a procurei por medo de não insistir em minha missão para com Deus. Já havia muito pecado em minha vida e sempre me senti culpado pela morte de sua mãe. Agora, Ele me chama e não poderia ir sem antes lhe pedir perdão.

Marta sentiu enfraquecer as mãos de seu pai, enquanto via seus olhos fechando lentamente. Sentiu o vento soprar, apagando as velas na cabeceira da cama. Não prosseguiu com sua viagem, nem tampouco voltou a escrever.


Angelica Carvalho

4 comentários:

Karime disse...

DEMAAAAAAIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIS!!
Adorei o nome da familia ! ;)
E o touro negro ? Esqueceu dele ? Depois de tudo tu esqueceu do toro ?
Show de bola o texto!
Beijos

Anônimo disse...

Não esqueci do touro... rsrrss só não achei ele relevante o suficiente... pra vc ver que tamnanho nao é nadaaaaa... kkkk

beijosss

Angel

Anônimo disse...

show... na próxima encarnação quero nascer com metade dessa criatividade e capacidade de misturar realidade x fantasia.
e o nome da cidade ? e o padre ???? gente, de onde saiu o PADRE ? e o corvo? e a cascata, e o suicidio?? muito bom, Angel.
Bjos
Márcia

Anônimo disse...

Cara, tu escreve cada vez melhor... acho que as ferias te fizeram muito bem. To chegando na segunda. Bjs. Katia