sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Enfim, Livre!


Nasceu sem saber o que era, homem ou bicho, mulher ou objeto. Só pensava nas razões de estar ali, pois sofria desde que abrira os olhos pela primeira vez. Fosse ou não possível, Sofia já veio ao mundo se questionando sobre sua existência, seu corpo, seus gostos e até mesmo seu sexo. Quando criança, brincava sem saber brincar, ainda que bem, da mesma forma que ia colecionando amigos descartáveis mais por obrigação do que por prazer. Tentava ser sociável e adequar-se aos interesses e costumes do pessoal da sua idade, mas sempre que pensava ter conseguido moldar sua mente segundo a normalidade, ou perdia seu grupo de amigos, que normalmente a abandonavam sem explicações, ou se via depressiva pela sua solidão que nunca a deixava, por mais que estivesse entre 1000 pessoas.
Era responsável e adorava a escola, até perceber que o que aprendia não correspondia à educação que ela esperava, mas àquela que tornaria todos ainda mais ignorantes do que viriam a ser. O que os professores pregavam era apenas uma porção de informações que massificavam a turma e impediam o raciocínio e a capacidade de formar opiniões, pois desde sempre ouvia preceitos irredutíveis sobre certas coisas, que os outros, de tão acostumados a ouvir, acreditavam sem nem mais saber o porquê. Até as informações mais óbvias eram contestadas por Sofia, que passou a freqüentar as aulas não mais pra aprender, mas para questionar cada frase que ouvia e começar a desenvolver seu próprio consenso de certo e errado.
Sofia, desde sempre precoce, tornou-se cética com tudo e todos, até mesmo consigo mesma. Aos 5 anos, teve a sua primeira experiência mística, que só veio a entender muitos anos depois.
Em seu quarto, preparando-se para dormir, ela fitou-se no espelho e parou para observar seu rosto. Os cabelos escuros e ondulados, a pele clara com algumas sardas no nariz, os olhos grandes e fundos, enfeitados com grandes cílios curvados. Não sabia se era bonita ou feia. Ninguém nunca lhe disse nada, a não ser os seus pais e toda a sua roda de conhecidos que vinham a esbarrar com ela. Mas também não se preocupava com isso. Olhava para seu rosto como que hipnotizada com os seus traços e a sua semelhança com todas as outras faces do mundo, e o que pareceria óbvio, de repente a colocou em transe. Seus olhos inundaram-se num vazio sem sentido e nada mais daquilo que via no espelho parecia compor o seu verdadeiro eu. Sua sobrancelha, seu nariz, seu queixo, seus olhos, sua boca, seus dentes, os poros de sua pele e todo o seu corpo pareciam uma máscara cobrindo-a e a vulgarizando. Ela não podia ser igual a todos os outros ou estar resumida a um monte de carne, pois pelo menos, era o que ela e qualquer um veriam a primeira vista. Sofia não só não se reconhecia ao olhar no espelho, como não entendia mais o motivo de estar ali. Sentia como se alguém a tivesse colocado em um corpo para experimentar a vida e ver como é ter um nome e uma existência. Não conseguia pensar nela como ser humano, como Sofia, uma menina de 5 anos, e aquilo foi a deixando tão aflita que ela desejou com toda a sua força acordar desse sonho ruim e não mais existir nesse inferno que são os homens. Friccionou os olhos, olhando firmemente a imagem reproduzida no espelho e pedindo para que ela fosse embora. A sensação de incompreensão foi ficando cada vez mais forte e ela continuou tentando, com sua mente, fazer exatamente como fazia com seus livros, em que vivia a história mas saía dela a qualquer instante, bastando fechar suas páginas e guardá-lo na estante. Porém, ao sair do transe, ao invés de ver-se livre, voltou a enxergar-se como era, e já não havia mais nenhum estranhamento. Ela era, novamente, a Sofia de corpo e alma. Foi para a cama e dormiu.
A situação voltou a se repetir várias vezes durante a sua infância, mas toda vez que tentava explicá-la a alguém, perdia-se no raciocínio e mudava de assunto. Ninguém a entendia e nem haveria de entender, afinal nem ela saberia explicar o que acontecia.
À medida que foi crescendo, a experiência foi se tornando cada vez mais escassa, até que passou a ocorrer apenas quando estava alterada pelo álcool. Sofia sentia falta daquilo, pois por mais estranho e desconfortante que fosse, já havia se tornado um alicerce para seus problemas. O fato de ela pensar que estava apenas usando um corpo a confortava porque passava uma certeza de que haveria algo maior esperando por ela ou que a vida em que estava era provisória. Sempre que se sentia triste, ou pensava que uma situação era incontrolável, lembrava-se que poderia estar ali apenas passando por uma prova. O fato é que ela, em nenhum momento, parecia ter controle da sua vida, principalmente nesses momentos em que não se reconhecia.
Curiosa consigo mesma, Sofia passou a ler livros que pareciam estar relacionados à sua experiência e que talvez, lhe dessem uma resposta, um caminho para conseguir se livrar dessa sensação de não pertencer ao mundo ou um caminho que realmente a “livraria” desse mundo. Em meio a religiões e doutrinas, deuses e homens reais, Sofia foi formando a base que lhe daria a explicação para sua dúvida. Ela descobriu que o que ocorria com ela já havia acontecido com várias outras pessoas desde milhares de anos antes, mas que a maioria delas passava quase toda a vida tentando chegar à sensação que ela sentia desde criança. Olhar-se em um espelho e não se reconhecer, sentir uma vontade imensa de sair do corpo e não entender qual a razão de continuar presa a essa vida são pensamentos que levam a um sentimento elevado de voltar a ser o que era desde o início dos tempos. Uma vontade de juntar-se ao mundo, como se o corpo em que nasceu tivesse separado do seu berço e tirado a sua essência.
Sofia, tomando conhecimento disso tudo e entendendo o que ocorria consigo, passou a ver a sua vida como uma grande falsa missão que deveria ser cumprida até o fim. Estar ali, sofrendo com sua solidão e a falta de compreensão dos ignorantes, são fatos que continuarão sem respostas, mas enquanto ela não conseguir sair de seu corpo para voar e ver o mundo de cima, viverá até o fim, aprendendo com as experiências e ajudando e ensinando aos interessados, por mais que esses sejam poucos.
Sofia , presa ao mundo e liberta da mentira, passou o resto de sua vida treinando para voar, e em um dia ensolarado, muito tempo depois, voou. E “viveu”, literalmente, feliz para sempre.




Letícia Mueller

4 comentários:

Anônimo disse...

Muito legal esse texto para abrir 2010, Letícia. Não conheço a Sofia (embora conviva com um bocado de gente que se enquadra em seu perfil), você é quem sabe verdadeiramente da personagem e eu apenas tive a oportunidade de "vive-la" durante o tempo de leitura deste post, mas não posso me omitir de fazer um comentário que me passou pela cabeça: acho eu que ela sofria também de um tipo de ignorância que acomete uma boa parte das pessoas que ela condena, e se chama presunção. É uma percepção muito pessoal, mas acredito que se ela deixasse de se olhar tanto no espelho e passasse a observar mais as pessoas à sua volta, perceberia que elas não são tão ignorantes quanto ela imagina. O próprio Buda, que poderia muito bem ter se isolado da humanidade por conta de sua sabedoria infinitamente superior fez justamente o contrário, e ainda disse: "sou apenas alguém que está acordado". Hoje passei quase uma hora apenas ouvindo minha mãe, uma senhorinha muito simples que passou a vida ministrando os tais ensinamentos massificados que aprendemos no ensino fundamental, e ela é tão repleta de sabedoria que os 60 minutos foram pouco. Ontem, conversei com o zelador do edifício onde estamos passando a temporada, e ele é um nativo com tanta experiência de vida que eu parecia um "virgem" planetário ao seu lado. Tenho uma tia que nem foi até a quarta série do ensino primário, no entando ela nem precisa abrir a boca para passar uma vibração ultra-positiva e singela, basta seu olhar e seu sorriso sem dentes mas cheio de meiguice. Também aqui neste apartamento está meu primo, que superou o alcoolismo, um drama que muito provavelmente eu não teria conseguido vencer. Eu apenas restringi esta análise aos limites dos 80 m2 deste apartamento, mas indo até a sacada verei uma infinidade de outras almas cheias de coisas interessantes a me transmitir. Creio que esta noção de conhecimento massificado procede, e já fiquei muito revoltado com isso, mas ela também é muito particular: nunca na vida precisarei usar o conceito de base de Arrhenius, que é toda substância que em solução aquosa libera como único ânion o íon OH-, denominado hidróxido, mas é este mesmo saber que fez meu primo e meu padrinho se tornarem engenheiros químicos. Enfim, achei que eu precisaria me manifestar, mesmo acreditando entender o ponto de vista da Sofia. Parafraseando um certo ditado popular, ninguém é tão ignorante que não tenha nada a ensinar para alguém. Tomarei como lição para o resto do ano a importância do exercício de se olhar no espelho e indagar-me quem eu sou (tarefa que a Sofia fazia com coragem inspiradora). Só lamento que a Sofia não tenha visto nas outras pessoas também um espelho. Provavelmente ela viveria feliz "para sempre" também em vida.
Beijo, Fofulety, e feliz e inspirador 2010 pra você e pra todas as Sofias deste mundo.

Mario

Karime disse...

Então, Letícia... adorei teu texto, como sempre! Concordo com o Mario, quando ele diz que Sofia talvez fosse presunçosa. Mas também me passou pela cabeça, que talvez Sofia fosse somente infeliz. Aquela infelicidade que às vezes atinge as pessoas, sem que nem porquê. O que admirei na personagem, é que ela não faz a menor questão de mascarar suas frustrações e é espontânea quando as externa; o contrário de muitas pessoas que usam de subterfúgios para disfarçar sua dor, sua solidão e os desejos que não conseguiram realizar.
De novo concordo com o Mario quando ele diz que pessoas simples nos dão uma lição de vida muito preciosa. Também tive o privilégio de conviver com pessoas assim.
Tenho um amigo (?) que esta semana me disse que dinheiro traz beleza, e pessoas bonitas e inteligente atraem pessoas bonitas e inteligentes. A futilidade dele foi tão escrachada que me chocou, pois há 2 meses atrás, quando precisei de ajuda para manter o equilíbrio, foi ele que me ajudou. Hoje, penso: ou nunca vamos ter a capacidade de entender e conhecer as pessoas, ou elas simplesmente, usam máscaras para se defender de algo que não existe.
Graças a Deus, eu não sou nem uma coisa, nem outra.
Quem em 2010, as pessoas possam ser mais humildes, mais tolerantes, mais espontâneas e mais verdadeiras (com os outros e consigo mesmas) e que saibam pedir desculpas e perdoar.
;) Bjos para vcs

absolutsubzero disse...

Nossa Le

Você captou bem uma parte da Sofia que ainda habita em algumas pessoas como eu. Por muito tempo essa foi a minha vida, mas ao invés de olhar somente para o meu reflexo no espelho eu olhava o do outros com olhos distorcidos do que as pessoas realmente eram, principalmente os que possuíam grande poder financeiro. Na verdade eu achava que as pessoas mais simples eram as mais sábias, mais felizes e mais livres. Sendo criada num bairro abastado de nossa cidade, eu criei a concepção de que todos que habitavam este mundo eram seres falsos e interesseiros, o que não deixava de ser uma verdade, mas só era um lado da face que alguns deixavam cair por descuido. Eu era presunçosa dentro do meu próprio meio e dentro da minha própria família. E talvez o que eu consiga analisar de outro modo hoje, foi que este comportamento era incentivado pelos meus pais que eram assim. Minha mãe sempre se sentiu uma ovelha negra e tinha um vazio que a fazia buscar por todo tipo de conhecimento e cultura que fizessem preencher isto. Meu pai vinha de uma família portuguesa católica tradicional que teve muitas brigas internas a ponto de eles terem que vir obrigados para o Brasil, para que uma tragédia não ocorresse.

Ainda mantenho dentro de mim o mesmo sentimento de que são as pessoas simples que tem muito mais a nos ensinar, por isso prefiro mil vezes bater papo com o guarda do museu, o gari ou o porteiro.

Mas este ano já comecei inovando, e voltei a ter outros olhos para peculiaridades e defeitos da minha própria família. E sempre acho algo inovador seja no presente ou no passado que me faz compreender mais como a humanidade é complexa e ao mesmo tempo rica. Eu posso viver muito tempo sem saber sequer um terço do que eu gostaria.

Ótimo texto para reflexionar e começar este 2010.

Muito obrigada Lê por compartilhar este lado de Sofia consco.

Beijos
Daniela

Anônimo disse...

Boa-tarde!
Eu interpretei o conto de uma forma diferente.Para mim, quando a Sofia olhou-se no espelho e sua forma começou a modificar-se é porque sua antiga reencarnação veio à tona. Então o seu lado obscuro fez com que ela bebesse.
Feliz 2010, galera!
Com carinho,
Luciana do Rocio.