sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Conversando Com O Mundo



Há anos não comprava nada de novo, ou de velho. Gostava de manter as coisas estáveis, como eram, sem grandes mudanças. Aprendeu a apegar-se aos seus pertences não por materialismo superficial ou mesquinhez, mas por ser o seu único refúgio da solidão.
Não se lembra quando passou a nomear cada objeto que havia dentro de sua casa. Não que houvesse muitos, mas de qualquer forma, dar nomes é sempre algo complicado. Mais difícil ainda era gravá-los, mas com o tempo, ela não só o fez, como inventou apelidos para tudo. Agora, cada coisinha na casa de Fernanda é nomeado e apelidado.
Como quase tudo que tem nome, ela passou a manter conversas com Joana, a chaleira, Tulio, o prato lascado nas bordas, Rita, a batedeira, e até mesmo com a Neusa, a vassoura mau-humorada que só sabia grunhir de reclamação.
No início, as conversas eram breves e inúteis, mas com o tempo, a relação entre Fernanda e suas coisas foi se estreitando de tal forma, que hoje ela não precisa mais ir a manicure ou chamar uma diarista uma vez por mês para desabafar sua angústia.
Sua mãe era a única coisa que lhe restava do mundo lá fora. De vez em quando, ela aparecia para ver como as coisas andavam e, como se fosse algo automático, bradava críticas sobre a aparência da filha, cada vez mais semelhante com a do apartamento bagunçado. Tentava pôr as coisas no lugar, arrumar a cama, pendurar as roupas, o que deixava Fernanda irritadíssima. Era uma das poucas vezes em que ela saía do sério e ficava vermelha de raiva. Não conseguia entender porque a mãe acreditava que aquilo era uma bagunça, sendo que, se ela lhe pedisse qualquer coisa, mas absolutamente qualquer coisa, Fernanda seria capaz de achar em menos de 10 segundos.
Desordem seria organizar a casa a maneira de sua mãe. Suas mãos tremiam ao imaginar os objetos supostamente organizados, dispostos de maneira diferente depois de anos com tudo devidamente acertado.
A senhora, sua mãe, também se irritava com os modos da filha, e não conseguia permanecer ali mais de duas horas sem que algo horrível acontecesse. Vários ataques histéricos já a levaram instintivamente a pegar o primeiro objeto que visse e atirá-lo contra a parede Geralmente as vítimas pertenciam a coitada da família Fernandes, que já perdera vários membros despedaçados de maneira que nem SuperBonder ressuscitaria.
Quando isso acontecia, a senhorinha sabia qual o próximo passo a ser dado, caso quisesse sair ilesa, e corria porta a fora, só descansando no sinaleiro a duas quadras dali. Ofegante, ela ainda conseguia esboçar um leve sorriso, disfarçando a tristeza que a corroia. Olhava pra trás, e pensava em alguma solução para o problema da filha, mas sempre desistia nos primeiros dois minutos.
Enquanto isso, Fernanda se consolava conversando com seus objetos. Aliás, eles definitivamente odiavam a dona Gioconda, a senhora sua mãe. Sua visita geralmente resultava na perda de algum amigo querido, danos irreparáveis.
Um certo dia, dona Gioconda apareceu na porta de Fernanda, e estendeu uma enorme caixa para a filha, embrulhada em um papel de presente estampado com flores douradas.
Há anos não ganhava nada, pensou Fernanda.
Ela simplesmente pegou o pacote das mãos da mãe, e sem nem ao menos dizer obrigada, bateu a porta em sua cara e virou as costas.
Ansiosa, rasgou os papéis, as fitas e tudo o mais que escondia o conteúdo do presente com tanta raiva que chegou a se arranhar.
Até Felícia, a travessa de inox, sempre tão calma e tranqüila, irritou-se com a atitude de Fernanda e disse-lhe:
- Pare com isso menina, assim você estraga o presente antes mesmo de saber o que é.
Mas ela não lhe deu ouvidos e continuou com violência até conseguir ver o que era.
Quando descobriu o mistério, sua primeira reação foi de frustração. Um jogo de panelas? E ainda por cima roxo? Mas ela já tinha panelas o suficiente, e roxo era uma cor que não lhe agradava muito.
- Coitado do KiKo, o vaso de flores lilás, se ele não fosse tão roxo não viveria atrás do armário, longe de meus olhos, pensou Fernanda.
E agora, o que faria com aquilo ali?
Conversou com suas coisas, e juntos, chegaram a conclusão de que o novo jogo de panelas tinha de ser incluído a família.
Um pouco a contragosto, mas fazendo juz a democracia que sempre reinava naquela casa, ela preparou o arroz utilizando o mais novo membro da família.
É claro que tudo ocorreu como o esperado. Afinal, panela é sempre panela, e o máximo que muda de uma para a outra é o formato do cabo ou a cor, mas nunca a eficiência.
Todos estavam contentes que tudo tinha se saído bem. As coisas de Fernanda não gostavam quando a dona se irritava com algo. Já viram muitas calças jeans, acessórios de cozinha e aparelhos eletrônicos serem rejeitados e jogados no lixo. Às vezes, Fernanda se irritava tantpo, que acava jogando as coisas indesejadas pela janela. Quando isso acontecia, o clima ficava tenso, e ninguém conversava com ninguém até que tudo se acalmasse.
Ela jantou sem pressa, colocou os pijamas, escovou os dentes, e quando já estava pronta para ir se de deitar, lembrou que tinha loça para lavar.
A máquina de lavar louça fora quebrada e já há duas semanas estava na casa do Julio, o medico da família.
Fernanda, com sono e mau humor, lavou os talheres, pratos e copos, e deixou o mais difícil por ultimo.
Porém, espantou-se com a sua nova panela. Ao contrário das outras, ela era tão lisinha e fácil de limpar que em menos de 15 segundos, estava tinindo como se não tivesse sido usada.
Todos observaram o que acontecia com um misto de ciúme e raiva. Nunca Fernanda gostara tanto de alguém. Nem mesmo de Doli, seu travesseiro de penas de ganso.
Ela secava as mãos enquanto olhava para a nova panela com admiração, rodeando-a e olhando cada detalhe.
Até que o roxo que a revestia não era assim tão feio. Tinha lá seu charme. E seu cabo, era…bem, incrível! Que formato! Que finura!
Não sabia nem como descrever o Teflon. Tão perfeito, escorregadio e maravilhoso! Nada tinha a ver com suas outras panelas, tão velhas e feias.
E se bem que, pensando bem, o arroz tinha ficado mais gostoso sim. É claro que tinha! Estava muito mais molhadinho e solto, até mais branco ele estava parecendo!
Que panela perfeita, magnífica!
Olhou para o resto de sua cozinha, e desconfiada, agarrou sua panela com rapidez, prendendo-a bem junto ao peito. Tinha medo de que lhe roubassem, aquelas coisinhas que viviam ali, tão sujas e desgastadas. Horrorosas!
Ela foi se deitar, e depois de anos sem uma única mudança, fez o que achava que tinha de ser feito.
Resoluta, deitou-se na cama pronta para ir dormir, e trocou o travesseiro de ganso –como era mesmo seu nome? – pela nova panela roxa.
Seus objetos a olhavam com um misto de pena e assombro e se apiedavam de Doli, sua companheira que após anos de fidelidade e união fora abandonada por um simples pedaço de aço.
- Terá ele enlouquecido? Se perguntava o livro “O Alienista”.
- Deve ser um sinal do universo, respondeu o livro “O Alquimista”.
- Calma gente, e se a panela fosse uma máquina de sucatas? Não há motivo para pânico, dizia a boneca Pollyana.
O despertador, irritado com a conversa culta dos livros, apenas pigarreou, e disse:
- É tudo uma questão de tempo.
Como se aquilo representasse a mais pura verdade, todos se puseram a dormir, enquanto Fernanda já sonhava com carnes de panela, farofas, brigadeiros e tudo mais que coubesse em sua panela.




Letícia Mueller

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