sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Fogo ou Frigideira





Era início de dezembro, um dia típico de verão em Curitiba, por mais que ainda fosse primavera. O sol entrava pelas janelas do escritório sem pudor algum, desrespeitando as cortinas expostas para barrar sua passagem. Eu e mais duas meninas suávamos por baixo das camadas e camadas de pó translúcido, tentando disfarçar as gotas de sal que queriam escorrer de nossas faces como se fôssemos jogadores de futebol. Olhávamos umas para as outras, com olhar caído, e em nossos pensamentos, implorávamos por uma ajuda ou uma solução por aquela tortura. O máximo que conseguíamos fazer para nos ajudar era revezar o único ventilador – talvez eu devesse chamá-lo de ventoinha - que nossos queridos chefes, dentro de sua enorme sala refrigerada por um potente ar-condicionado, foram capazes de comprar sentados em suas confortáveis cadeiras almofadas e seus computadores Mac Pró.
Éramos todas estagiárias. Mulheres sedentas, suadas, mal humoradas e estagiárias. Logo, se não podíamos reclamar de nossas cadeiras de madeira e nossos pc´s Windows 95, imagine sobre o incrível ventilador quase tão eficaz quanto o ar-condicionado. Toda vez que a porta dos chefes se abria, nos deliciávamos com a breve brisa gelada que vinha lá de dentro. Poderíamos nos ajoelhar para implorar por um ar-condicionado daqueles, ou pelo menos mais um ventilador do qual não tivéssemos que escolher qual parte do corpo seria refrescada. Mas não podíamos, pois éramos estagiárias.
O tempo demorava a passar. Meu cabelo, preso em um coque alto para, nem pensar, encostar em minha nuca fervente, começava a dar os primeiros sinais de desistência. Minha cabeça suava, e fiozinhos ao lado da orelha se soltavam aos poucos, formando cachinhos ensebados e umedecidos. As duas meninas me olhavam atemorizadas. A pior coisa que poderia acontecer em um dia infernalmente quente acontecia comigo. Meu cabelo deixou de me obedecer. Merda, pensei. Me levantei e senti no olhar de minhas companheiras que elas queriam dizer “boa sorte”, mas o calor era tanto que até a boca se negava a abrir.
Fui ao banheiro com meu kit de primeiros socorros. Spray, gel, elástico, presilha, fivela, grampo, brilhantina... nada fazia com que aquele mísero cabelinho insignificante e extremamente visível me obedecesse. Se não fosse minha mãe ter gralhado por tantos anos no meu ouvido, que cabelo só se corta no cabeleireiro e blá blá blá, eu teria voltado à minha mesa e simplesmente cortado o imprestavelzinho ali mesmo, com uma tesoura qualquer.
Desisti. Fui derrotada pelo cachinho ao lado de minha orelha. Aproveitei que estava no banheiro para fazer um xixizinho e passar uma maquiagem. Quando eu já estava destrancando a porta e saindo, uma visão de relance me deixou pasma. Tive que olhar novamente. De costas para o espelho, me contorcendo inteira, eu vi. Na minha calça jeans. Minha preferida. Um furo. Na bunda. Na minha calça jeans preferida, havia um furo na bunda. Na nádega esquerda pra ser mais exata. Como sempre acontece naqueles nossos sonhos bizarros, me senti nua por completo. Minha bunda estava exposta para quem quisesse ver. Há quanto tempo eu estava assim? Com a calça rasgada? Só Deus saberia dizer. E o que eu poderia fazer, a não ser assumir que, após ter sido vencida por meu cabelo rebelde, também teria de ceder ao tal furo da calça rasgada? Afinal, se me matar não era uma opção, a única coisa a se fazer era ir pra casa fingindo que nada havia acontecido, e tentar andar o mais discretamente possível com a mão sobre o buraco na bunda.
Não tinha tanta intimidade com as meninas da agência, então simplesmente voltei para meu lugar e continuei a fazer meu trabalho como se nada tivesse acontecido.
Passei a tarde suando a bicas e preocupada com a localização do buraco na calça. Não lembrava exatamente onde ele estava localizado, e temia que fosse bem no lugar de alguma estria. Cuidei para beber pouquíssima água para não ter de me levantar muito, e quando fui chamada na sala do chefe, minha mão cumpriu seu dever, até ter sido dispensada por uma parede que consegui alcançar. Quando voltei para meu lugar, tratei de andar meio de lado, com medo de que um dos dois chefes ou as meninas vissem a minha anomalia.
Tudo corria bem. O buraco pelo menos serviu para me distrair do calor insuportável que ainda incomodava as outras duas estagiárias. Eu, porém, tinha problemas mais sérios com que me preocupar.
17 horas. Hora de estagiária encalorada e esburacada ir pra casa. O juízo final, o grande momento. Como eu morava há 15 minutos a pé dali, decidi adotar uma estratégia: andar o mais rápido possível e segurar minha bolsa no local do buraco, sem olhar pra os lados e nem para frente, somente para o chão.
O plano exigia um pouco de técnica. Era difícil manter a discrição e o equilíbrio, principalmente com o maldito cachinho caindo sobre o meu olho incessantemente. Mas, por incrível que pareça, tudo ia bem. Até que, como em um conto de fadas, uma chuva torrencial caiu de repente sobre mim. Foi maravilhoso. É claro que eu estava com uma blusa branca e um sutiã estampado de ursinhos coloridos. É claro.
Lembrei que tinha um guarda-chuva perdido dentro de minha bolsa, e com litros e litros de água me encharcando, comecei a procurar pelo objeto. Depois de concluir que eu já estava mais do que encharcada, e que de nada mais adiantaria o guarda-chuva, achei-o. Para não desperdiçar um golpe de sorte do destino, resolvi usá-lo e assim que pensei que tudo estava novamente sob controle, e que eu já estava protegida da chuva, um vento forte virou minha sobrinha ao contrário de um jeito que pareceu que 100 mil baldes de água foram jogados sobre mim.
Maravilha. Nesse momento, um carro cheio de garotos passou buzinando para mim. Filhas da puta, eu pensei.
Foi então, que me lembrei. A minha bunda estava exposta esse tempo todo. Minha bunda estriada, gorda e feia, à mostra para toda a população de Curitiba. Preocupada com a chuva, deixei a bunda de lado.
Pela terceira vez no mesmo dia, eu desisti. Joguei o guarda-chuva no lixo e fui para casa, de buraco e tudo.
Quando cheguei ao portão de casa, lembrei que estava sem chave, e fiquei esperando meu pai abrir a grade por mais de 5 minutos.
Depois de ouvir reclamações, lamúrias e enxeções de saco do meu pai, que pra variar, estava de mau humor - mesmo tendo ficado em casa o dia todo e estando invejavelmente seco e aquecido - entrei na lavanderia pingando dos pés a cabeça. Era exatamente como se eu tivesse entrado de roupa em uma piscina, e pior, tivesse ficado tomando banho durante a tarde inteira. Nem eu acreditei quando vi que até a ponta dos meus dedos estavam enrugadas, parecendo dez ameixinhas pequenininhas.
Tirei a roupa ali mesmo, e de calçinha e sutiã, corri para o banheiro tomar uma ducha quente. Sim, eu disse quente. Toda aquela água do céu me deixou com muito frio.
E adivinha o que aconteceu?
Tomei um dos banhos mais deliciosos da minha vida, coloquei uma camisola bem confortável e me deitei na cama para ler.
Liguei o ventilador bem próximo a mim, e em menos de 30 minutos, caí em um sono pesado que nem assombração atrapalhava.
Enquanto isso, meu pai passava por uma noite de insônia, ainda incomodado com a lavanderia que havia ficado alagada com a minha chegada e com o portão que andava meio esquisito, emperrando antes de abrir. Problemas seriíssimos, coitado.


Letícia Mueller

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