domingo, 24 de agosto de 2008

Amor aos pedaços


Dr. Victor caminhava à frente, iluminando as lápides com uma lamparina a querosene e abrindo espaço no breu para sua passagem em meio ao corredor de túmulos. Logo atrás, seu Moderno Prometeu, uma massa colossal moldada em retalhos de tecidos musculares, puxando a carrinhola munida de pás, enxadas e marretas, prestes a ser substituídas pelos membros daquela que viria a ser sua amada imortal enquanto dure. Dr. Victor estava relutante em trazê-lo, visto que todos os seus passeios pela vila foram desastradas expedições de horror e fúria da população, mas precisava de alguém para derrubar o portão do cemitério, cavar as covas e demolir jazigos e urnas funerárias. E ninguém melhor para a tarefa que sua cria.
Um surto de escarlatina havia exterminado quase um terço das donzelas de Ingolstadt. Dr. Victor revelara a toda a comunidade que possuía um unguento com poderes de medicinas naturais capazes de conter a epidemia. Mas sua fama de aluno indisciplinado, médico louco e cientista dado ao estudo de alquimias impediu que seu remédio fosse aplicado nas vítimas cada vez mais numerosas. Ironicamente, a tragédia que acometeu as jovens cidadãs era agora providencial para Dr. Victor, visto que seu rebento há muito reclamava por uma companheira, como um adolescente em fase de quereres alimentados pelos hormônios em erupção.
Pragmático, passou a fazer suas escolhas baseado no perfil físico das mortas, apontando para seu filho ilegítimo onde cavar ou o que destruir, recolhendo em seguida apenas o que bem lhe apetessesse.
Começou pelos cabelos, e escolheu a Sra. Verciano, atraente por sua beleza brejeira e religiosidade excessiva, com pudores à espera de ser violados. Suas madeixas eram bem cuidadas, sempre penteadas com óleo de lanolina, reforçando o tom negro quase azulado dos fios, constantemente perfumados e tratados com cremes feitos de flores silvestres. Uma crina que quase lhe batia à cintura, formando um véu natural embalado pelos ventos úmidos da Baviera.
O nariz seria o de Anna Margot, a bióloga que Dr. Victor conhecera nos tempos de universitário. Parecia ter sido moldado em gesso, com cuidados de simetria beirando a perfeição. A boca precisaria de protuberosos lábios carnudos, era o que encontraria na Srta. Zattoni, uma filha de italianos que migraram para Ingolstadt trazendo consigo a volúpia rasgada no meio da face. Os dentes bem calcificados da espanhola Lucianne Fernandez fariam jus àquela moldura rubra e bojuda. As orelhas de lóbulos macios viriam da Srta. Louri, que nem precisava pender brincos sobre eles por saber serem tâo tenros e atraentes que já consistiam por si só em duas jóias naturais. As maçãs do rosto de Camila Roth dariam o adorno necessário àqueles componentes físicos tão bem escolhidos. Queixo e testa viriam da mesma face, a da camareira Keity, que tão bem tratava Dr. Victor quando de seus excessos na taberna. As sobrancelhas desenhadas a bico de pena no rosto alvo de Jullie Schmmitz seriam o alto do caixilho nas janelas da face, mas era justamente aí que Dr. Victor teve sua grande frustração. Queria os olhos da Srta. Balvedi, mas as órbitas agora desfalecidas não emanavam o mesmo verde de outrora. Dr. Victor já dominava tecnologias o suficiente para enriquecer plutônio, mas sabia que nem toda a radioatividade do mundo seria capaz de suplantar a carência daquele verdejante natural. As esmeraldas invejavam a Srta. Balvedi.
O cérebro foi composto de três pedaços cuidadosamente estirpados para a posterior colagem. O lóbulo frontal retirado da Srta. Daniella, que tinha uma docilidade quase incompatível com a natureza agressiva desta parte da massa cinzenta. O hemisfério esquerdo era de uma sulamericana chamada Francisca Campos, há muito radicada em Ingolstadt, mas que ainda conservava a afetividade de uma mulher dos trópicos. E o hemisfério direito seria provido pela Srta. Lizie, de variados talentos e um instinto racional metódico sem ser inflexível, muito útil para a saga de viver ao lado de um ser desprovido de conteúdo saudável na caixa craniana (falha da qual Dr. Victor jamais se perdoou).
Os bíceps e antebraços Dr. Victor mutilou da juíza Michelli, nome delicado para a mulher que tantas vezes o condenou por sua sanha em busca dos cadáveres de morimbundos para dissecar. As delicadas mãos da Sra. Sidor, de dedos finos e juntas sutis, dariam prosseguimento harmonioso àqueles membros notáveis da mulher das leis. Não havia pernas tão esguias quanto as da Srta. Sabrina, com coxas poderosas, panturrilhas sinuosas e joelhos tão bem esculpidos que a rótula deveria ser patenteada pela engenharia divina. Os pés da Sra. Gantzel, macios como dois pães de forma prestes a ir ao forno, fariam a base ideal para aqueles pilares de ossos e carnes.
Os seios não haveria de encontrar similares aos de Marta, a escandinava que desposara um rico comerciante morto pelo excesso de volúpia da própria mulher. Também aproveitou sua barriga sem protuberância e seu umbigo meticulosamente cavado no centro do ventre.
As nádegas tinham de ser da Srta. Longhi. Tão bojudas que nem as mais conservadoras e volumosas anáguas eram capazes de tornar discretas. A vagina tornou-se a escolha mais delicada: não poderia ser de uma meretriz, visto que estaria passível de contaminar seu filho com doenças cujos efeitos tenderiam a ser desastrosos; mas também não poderia ser de uma virgem, visto que seria alvo de um membro excessivamente avantajado e destrutivo (herança do Sr. Protov, famoso ferreiro austríaco que passou por Ingolstadt numa chuvosa primavera e faleceu nas mãos de ladrões de estrada que o deixaram nu em pêlo). Dr. Victor escolheu os genitais da Sra. Sander, que certa vez inspecionara “pelo bem da ciência”, antes que a farmacêutica desposasse um notório homem das construções civis. Mesmo com a impossibilidade de procriar, teve seu útero e ovários também colhidos por Dr. Victor. Já exausto e na iminência de amanhecer com grande brevidade, tirou de seu tronco também os pulmões de alvéolos bem rosados, o fígado que pouco conhecera dos prazeres etílicos, rins, baço, estômago e todo o duto digestivo. Sua filha-nora estava quase pronta.
Só faltava o principal. Precisava de um coração sensível ao ponto de um dia poder narrar sua história sem ira ou repulsa. Um coração forte para bombear não só sangue para todas as extremidades do corpo, mas também comoção e idéias, fossem elas boas ou más. Queria um músculo de ventrículos sadios e miocárdio bem moldado, capazes de suportar as emoções de amar uma criatura feita de retalhos no corpo e de trapos na memória. Este órgão, Dr. Victor sabia muito de quem deveria ser extirpado. Não hesitou um só momento e foi direto à tumba simples porém constantemente decorada com flores do campo trazidas pela família. Escolheu o coração de Mary Shelley.



Mario Lopes

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