sexta-feira, 8 de maio de 2009

Dormir é inevitável



Dona Rosa estava internada há três meses na ala semi-intensiva do Hospital Vita. Desde que diagnosticaram seu tumor maligno, sua vida se passava em um quarto de 3 m². Acordava às sete, com uma bandeja de café da manhã no colo e duas enfermeiras conferindo os equipamentos e anotando coisas em uma prancheta.
Comer assim na cama até que não era tão ruim, apesar da comida sem sal que exigia sua dieta. O pior era quando tinha vontade de fazer xixi. Apertava um botão e em alguns minutos alguém lhe trazia a comadre. Como ela odiava fazer suas necessidades deitada, sempre falava que o que queria era fazer o número dois. Passava pelo ritual da retirada dos tubos e entrava sozinha no banheiro com uma sensação de liberdade. Ficava lá por cinco, dez minutos, até que ouvisse uma voz de fora lhe perguntando se estava tudo bem.
De volta à cama, esperava o tempo passar. Lia alguma revista, chegava o almoço. Comia, ligava a TV. Recebia a visita do médico, respondia-lhe às perguntas de praxe, dando sempre as mesmas respostas:
- Como vai, Dona Rosa?
- Bem, indo.
- E a comida? Estava boa? Como anda seu apetite?
- Boa a comida, doutor. Ando com fome.
- Isso é bom. E como passou a noite?
Dona Rosa sempre hesitava nessa pergunta. Achava que o médico a testava. Como ainda ninguém percebera que não engolia os remédios?
- Passei bem.
O médico a elogiava, mas ela sabia que estava com os dias contados. Não aceitava o fato de estar morrendo e, como não queria ser pega de surpresa, evitava dormir.
Quando chegava o seu coquetel noturno, selecionava os remédios, deixando o sonífero por último. Tomava um por um, em grandes goles, sob o olhar atento do enfermeiro, e na hora de tomar o sonífero, com o comprimido escondido no canto da boca, simulava uma talagada.
O enfermeiro fazia suas anotações, perguntava-lhe se queria alguma coisa e ia embora. Começava a rotina noturna de Dona Rosa, que só se diferia da diurna por ser menos perturbada pelos médicos e atendentes. Todos pensavam que ela dormia.
Mas não. Com medo do sono eterno, ela evitava o sono reparador usando de mil e uma artimanhas para atrair e manter a insônia. Chegava a ler por três horas seguidas, pois não tinha paciência de ver TV por mais de meia hora. Se, por acaso, algum médico entrava no quarto, ela dizia que tinha acordado com vontade de ir ao banheiro. Depois disso, o jeito era, discretamente, manter a mente ocupada para que o sono não viesse. Ficava deitada, de olhos abertos, relembrando sua infância e adolescência. Lembrava do marido, de como se conheceram, do casamento... Do dia em que ele morreu. Batia uma saudade, uma vontade imensa de revê-lo, mas logo pensava na morte e o desejo passava.
A noite seguia assim, e quando menos esperava, mais um dia havia se passado, e lá estava seu café da manhã. Às vezes sentia um certo cansaço, mas Dona Rosa, conhecendo o poder da mente, logo espantava o sono imaginando-se morrendo.
Assim seguiam seus dias. Quanto mais Dona Rosa evitava o sono, temendo a morte, mais a atraía. Ela definhava, enfraquecia, e nada de dormir.
Até que um dia, sem saber ao certo se acordada sonhava ou se sonhava acordada, Dona Rosa recebeu uma repentina visita. A Sra. Morte, aproximando-se da cama, inclinou-se para perto dela, exalando um cheiro de séculos, e toda dengosa, perguntou:
- E aí, bobinha... Achou que estava me enganando?
Dona Rosa, pela primeira vez desde que se mudara pr’aquele quarto, fechou os olhos e implorou o sono.


Letícia Mueller

Um comentário:

Anônimo disse...

Parabéns, Letícia. Belíssima estréia. E renderia um bom roteiro também.
Beijo, nova Desaforada.

Mario