domingo, 10 de maio de 2009

Ensaio de realidade


Helena hesitou muito em aceitar participar daquela terapia da qual nunca ouvira falar.

- Vou explicar mais uma vez. Quando uma pessoa fica sem dormir por um longo período de tempo, passa a entrar em um estágio de conflito entre percepção e mundo tangível. Ao ficar carente de sono, você terá alucinações e passará a confundir sonho e realidade. Helena, nós deixaremos você sem dormir até atingir este estado de transição entre o universo real e o onírico. Então, trataremos seus demônios interiores. Neste lusco-fusco de consciência, você terá então a rara oportunidade de abrir o portal de seu universo mais íntimo, aquele no qual habitam seus maiores temores e inimigos ocultos. São seus medos, bloqueios e recalques que virão encará-la. É quando você deverá abordá-los e extirpá-los. Não se conhece forma mais imediata e direta de afrontar seus rivais interiores. Seu ego vai enfrentar seu id. Seu consciente irá sobrepujar seu inconsciente. Só precisaremos cuidar para que não ocorra o contrário.

Mesmo não tendo entendido bem a sistemática, Helena aceitou a proposta de seu novo terapeuta. Não queria passar por anos de divã, preferia encarar o próximo feriado prolongado em um spa, no qual a equipe de três psicoterapeutas a acompanharia naquela jornada de destino obscuro. No primeiro dia tudo correu sem incidentes. Fez suas refeições, leu bastante, nadou na piscina e participou de sessões de massagem – tudo com a exigência de permanecer com os olhos sempre abertos. Virou bem a primeira noite, tomando muito café e assistindo a DVDs de block-busters de terror e sci-fi para permanecer atenta. Os psicanalistas se revezavam em três turnos, sempre vigiando-a. Suas idas ao banheiro não podiam passar de dez minutos, mesmo para tomar banho.

O dia seguinte foi de atividades de exercícios aeróbicos, passeios pelos jardins e banho de sol à beira da piscina, só incomodando-a o fato de não poder usar óculos escuros. Após o almoço é que começaram a surgir as primeiras reações advindas da exaustão e da noite em claro. Sentia mesmo uma forte vontade de pegar no sono e as conversas superficiais com o terapeuta do turno da tarde pouco a ajudavam na tarefa de se manter alerta. Era despertada com tapinhas no rosto, nunca conseguindo fechar os olhos por mais de cinco segundos. À noite já se sentia fraca e debilitada no raciocínio, falando frases desconexas e demonstrando coordenação motora desastrada, quase uma disléxica. Passou a madrugada vendo mais filmes, desta vez sentada porque certamente sucumbiria ao sono se ficasse na horizontal.

O terceiro dia foi de absoluto aborrecimento e mau humor. Já não sentia direito os sabores dos alimentos no café-da-manhã e era impossível ler qualquer meia página que fosse sem que sua cabeça despencasse sobre o livro. Almoçou e resolveu caminhar ao redor da sede do spa, porque agora bastava se sentar para pegar no sono. Não suportava mais a presença constante de um dos terapeutas e percebia que falava bobagens o tempo todo, só que se esquecia delas cinco minutos depois (ou menos, pois o tempo cronológico já traía sua percepção). Anoiteceu e continuou andando pelo quarto para não adormecer. Quando fechava os olhos, mesmo que em pé, levava um tapinha na face que agora já parecia um misto de tortura, deboche e provocação. Cogitava revidar.

Amanheceu no quarto dia pronta a desistir. Queria apenas o direito de repousar e nem se importava se não seria ressarcida com os valores pagos. Pensou em pedir o cancelamento da terapia. Não lembrava de ter discutido anteriormente sobre o que poderia ser feito se ela se encontrasse em situação limite como aquela e quisesse desistir. Mas também agora já não sabia se não haviam discutido essa possibilidade ou se a falta de sono deletou essa informação da sua memória. Até então, o máximo que havia passado acordada era uma noite inteira, dando conta de trabalhos escolares. Já não falava coisa com coisa, levava tapas com intervalos cada vez menores, sentia que iria surtar a qualquer momento. Parecia estar à beira de entrar numa crise de pânico. Teve de ir até a janela do quarto respirar um pouco de ar puro para se recuperar e oxigenar o cérebro. Quando virou-se, viu o terapeuta falando ao celular. Parecia apreensivo, pediu “um minuto” e saiu da sala. Pela primeira vez naqueles quatro dias, Helena se via sozinha. Poderia até tirar um breve cochilo. Mas aquela atitude nada convencional do terapeuta lhe tirou o sono. Ficou apreensiva, esperando em pé, até que ouviu passos vindos do corredor. De súbito, a porta se abre, adentrando por ela, afoitos e sem cerimônia, sua mãe, seu pai e seu marido.
- Minha filha, rápido. Arrume as malas que precisamos sair dessa arapuca.
- Eu quase me peguei no braço com aquele pessoal da recepção!
- Meu amor, por que você não me contou nada e veio assim, sem mais nem menos pra uma cilada dessas, só por que nosso casamento estava em crise?!
Sem entender, Helena pediu explicações rápidas e convincentes. Dona Judith, sua mãe, pôs-se a fazer os esclarecimentos sem parar de arrumar as malas, enquanto seu Antero olhava pela janela vigilante e Maurício inspecionava os móveis, como que atrás de câmeras e microfones.
- Você sabe que eu sempre tento te poupar, não é, minha filha? Mas sou sua mãe e você precisa saber: essa terapia da insônia é tudo uma ilusão, uma mentira. São uns picaretas e a TV já está vindo pra cá fazer uma matéria.
- A casa caiu pra eles, filha. Houve dois casos de mulheres que perderam a razão com essa experiência maluca. A polícia já foi avisada e fizeram flagrante. Eles nem têm formação em psiquiatria nem nada.
- De onde você teve essa ideia, meu amor?! Quem te convenceu de que isso era sério?!
Arrumadas as malas, não esperaram um só minuto: pai e marido foram na frente com as malas, mãe e filha logo atrás, com dona Judith amparando Helena, exausta pela falta de sono de dias.


Entraram no carro e partiram, deixando para trás o belo spa solitário. Enquanto olhava pelo retrovisor, Helena ouvia as vozes da mãe recomendando atenção e reclamando de o quanto ela fora desligada a vida toda; protesto avalizado pelo pai, que não entendia como uma mulher adulta e estudada era capaz de se iludir daquela forma; raciocínio este complementado por Maurício, ao volante, que não se conformava com sua mulher ter esses rompantes de infantilidade, chegando a ser mais ingênua que a filha pequena. E foi em meio a estas acusações de negligência, ilusão e infantilidade, que Helena se recordou das palavras do terapeuta antes de vir para o spa: “(...) carente de sono, você terá alucinações e passará a confundir sonho e realidade (...) terá então a rara oportunidade de abrir o portal (...) libertará seus maiores temores e inimigos ocultos (...) são seus medos, bloqueios e recalques que virão encará-la (...) você deverá abordá-los e extirpá-los (...) Só precisaremos cuidar para que não ocorra o contrário”. Foi então que, vendo que passavam pelo desfiladeiro, precipitou-se de súbito sobre o volante e girou-o bruscamente na direção do penhasco.


Mario Lopes

Um comentário:

Anônimo disse...
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