sexta-feira, 5 de março de 2010

Borin Chine

Trabalhando em seu imenso laboratório, repleto de entulhos, objetos estranhos, livros milenares carcomidos por traças e milhares de papéis rabiscados com esquemas incompreensíveis, Túlio praticamente se camuflava em meio a tanta bugiganga. Ele próprio parecia pertencer àquela miscelânea de coisas bizarras, algumas gigantescas a ponto de tocarem o teto, e outras, tão minúsculas quanto uma caixinha de fósforo.
Ele estava há horas debruçado sobre sua longa mesa, franzindo os olhos pequenos, mesmo usando lentes grossíssimas para corrigir sua presbiopia, e quase regendo um concerto com as peças. Seus movimentos alternavam em momentos de euforia e calma, mas sempre eram precisos e previamente calculados. O cabelo branco amarelado, comprido e encardido, pendia sobre seus olhos de minuto a minuto, e grudava na testa, misturando-se com o suor.
Túlio trabalhava no que considerava não apenas a sua mais genial invenção, mas a melhor e mais genuína invenção de todo o mundo e de todos os séculos. Trabalhava no que considerava fenomenal, de extrema utilidade e relevância para todos, desde o bebê recém nascido até o senhor de bengala. Amava aquele projeto como o filho que não teve e desejava seu sucesso acima de qualquer coisa. Não que tivesse alguma dúvida quanto à eficácia de sua própria criação e muito menos da reação do público diante de sua geringonça, mas como qualquer cientista que se preze, sabia que um pouco de ceticismo era sempre fundamental.
Enquanto suas mãos mexiam-se velozmente com placas de ferro, parafusos, botões e molas, a mente de Túlio imaginava como seria o mundo após a descoberta da máquina, quando a notícia já tivesse sido espalhada e as pessoas já estivessem usando-a diariamente. Imaginava os homens engravatados conversando sobre política, quando de repente alguém toca no assunto e a movimentação é geral:
- Não sei como conseguimos viver tantos anos sem isso. É a cura de todos os males!
Donas de casa e domésticas, em fila de mercado e padaria:
-Você viu esse negócio que saiu agora pra vender? Gente, depois que a minha patroa comprou um desses, ela não fala em outra coisa.
- A minha também. Até chegou a me falar que eu tinha que comprar um também, mas aí eu ri né. Falei que com meu salário eu nunca ia conseguir guardar dinheiro suficiente. Aí sabe o que ela me respondeu? “Deixa comigo então, vou providenciar um aumento”.
-É, então é sinal que a máquina funciona mesmo heim?
Crianças na escola, porteiros, dentistas, celebridades, policiais... todos, impreterivelmente, falariam da máquina como a um fenômeno. As autoridades mundiais e locais, vendo a repercussão da invenção, bem como os benefícios que estava trazendo para a população, cogitou a possibilidade de criar uma lei garantindo o direito de toda a família de ter um exemplar em sua casa, melhorando a qualidade de vida e saúde mental e física de todos. A lei foi imediatamente aprovada e apoiada pelos cidadãos, contentes com as mudanças políticas que estavam ocorrendo.
A máquina tornava a todas pessoas humanamente melhores.
O mundo estava mais feliz e vivia em paz, porém, não importa quão boa esteja a realidade, sempre há um grupo de pessoas dispostas a estragar a harmonia, alegando motivos que mais se auto afirmam do que justificam a causa. Pessoas assim provavelmente nasceram com apenas uma missão: sempre discordar e se mostrar eternamente insatisfeitos.
O grupo foi surgindo discretamente a partir de boatos. Alguém disse que alguém odiou a invenção, que disse que deu briga no vizinho porque um dia o pai da família se negou a ligar a máquina, etc... O grupo revolucionário estava formado.
Era impossível identificar um rebelde apenas pela aparência. Geralmente, eles se entregavam através do comportamento, da fala e dos trejeitos. Não faziam parte de nenhuma classe social, não usavam nenhum uniforme ou criaram um símbolo que os identificasse. Eram tiranos, altivos e verdadeiros carrascos por natureza, porém o perfil de cada um variava imensamente. Dentre a imensa gama de revolucionários espalhados pelo mundo todo, existiam os que torturavam os ouvidos alheios com asneiras e sons mortíferos, ou os que assassinavam o tempo do ouvinte por horas e horas, sem concluir absolutamente nada; os que não admitiam ver o sucesso de outros e faziam críticas, mais por proteção própria do que conhecimento de causa; os que se deliciavam em apenas provocar e fazer graça com qualquer um que julgasse dar uma boa piada, fosse ele amigo ou não, e centenas de outros perfis que além de irritantes e perturbadores, tentavam causar o caos e tirar o encanto daquela máquina encantadora.
Quais eram os argumentos desses malfeitores? Eles alegavam que o mau humor, a piada sem graça, a “enxeção” de saco, a petulância, a voz alta, a intromissão e a dor de cotovelo deveriam ser defendidos incessantemente, ou seja, defendiam a si mesmos como verdadeiros chatos em potencial, esquecendo que afetavam a todos a sua volta e ninguém era obrigado a aguentar sua chatice.
Egoístas, defendiam apenas a própria identidade e não eram capazes de aceitar seus defeitos, diferente dos ex chatos, que notando a melhora de sua vida e das pessoas ao redor, não se rebelaram contra a máquina e uniram-se ao grupo dos simpáticos e divertidos.
Mas nada podia mudar a cabeça dos rebeldes intransigentes e teimosos. Além de se negarem a usar a máquina diariamente, eles almejavam destruí-las e proibir sua fabricação no mundo todo. Uma guerra fora lançada.
Passou a ser comum ver alguma discussão séria acontecendo em uma rua, loja, mercado, ou qualquer outro lugar. Chatos e não chatos, que antes da invenção já não se aturavam, passaram a sentir ódio mortal uns pelos outros e até as coisas mais insignificantes se tornavam motivo de brigas.
Chefes rebeldes demitiram seus melhores funcionários, e melhores funcionários rebeldes foram demitidos por seus chefes simpáticos. Famílias brigavam e se separavam, amigos de infância discutiam entre si e rompiam amizades, vizinhos eram linchados e expulsos de suas próprias casas pela vizinhança...
O caos estava instalado e nenhum lado ousava se render, porém as máquinas continuavam seguras em casa, salvo uma grande quantidade que fora destruída durante as batalhas. A guerra tomou tal proporção que alguns nem mais sabiam porque brigavam, discutiam, esbofeteavam, chutavam, xingavam e odiavam.
Túlio assistia a tudo de seu laboratório. Não ousava sair à rua, um porque sabia que os rebeldes o agrediriam, e dois porque não tinha tempo para descansar. Mesmo com toda a confusão, pedidos do mundo todo não paravam de chegar, juntamente com máquinas e mais máquinas estraçalhadas necessitando de conserto.
O cientista não conseguia aceitar aquela guerra sem fundamento, originada por sua criação que de início fora tão benéfica e fizera tão bem a todos. Não seria um criador de monstros.
A sua máquina descambou para um caminho totalmente oposto à proposta. Ao invés de acabar com o mau humor e a chatice das pessoas, tornaram-nas todas semelhantes e ainda piores. Os não-chatos mal sabiam, mas não diferiam em mais nada dos seus inimigos.
Irritado com tanta hipocrisia, Túlio olhou para aquela imensidão de máquinas espalhadas pelo seu laboratório, e decidido, ligou para um caminhão de reciclagem. Nunca mais tocaria em uma coisa daquela, fosse para arrumá-la, construí-la ou usá-la.
Sabia que seria odiado pelo resto da vida por cada habitante do planeta, mas não estava mais nem aí para ninguém... para todos os chatos do mundo.



Letícia Mueller

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