sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Linha de Conduta


Joana era uma boa madastra. Tinha seus dias de mau humor, mas quase nunca deixava de cumprimentar sua querida enteada, Giovana. O fato é que a casa era muito grande, e às vezes ocorria de, entre as enormes escadarias que circundavam a mansão, não ver a pequena brincando com sua coleção de bonecas de porcelana chinesas.
Joana casou-se com o pai de Giovana há dois anos, logo quando ele passou a realmente ficar doente. O câncer, antes controlado, se alastrara rapidamente por seu corpo, mas não o impediu de, como se um presente de Deus, se apaixonar perdidamente por aquela bela mulher de olhos escuros feito uma noite sem lua. Joana, é claro, vendo o homem de tamanha elegância – e já se emoldurando em um dia quente, deitada na piscina tomando piña colada – e constatando o tamanho da elegância dos oito dígitos na sua conta bancária, tratou também de se apaixonar, perdidamente.
Casaram-se em menos de um mês em uma ostentosa cerimônia realizada no quintal da mansão. 1000 convidados seletos enfeitavam o gramado com seus ouros e diamantes e com seus vestidos e ternos de marcas importadas. Em um momento de tédio, um dos criados tentou contabilizar as vestimentas e adornos de todos os presentes, mas desistiu logo na segunda mesa. Não sabia contar até tanto.
Devido ao estado debilitado do noivo, a noite de núpcias deu-se na própria cidade, em um belíssimo hotel luxuoso especializado em fazer casais felizes. Porém, Joana alegou ter comido demais na festa e estar muito cansada. Então, o casal dormiu e acordou cada qual em seu canto, como duas crianças amigas.
Poucos foram os momentos de intimidade entre eles. Joana explicava ao marido que qualquer tipo de emoção mais forte não lhe seria benéfico, e poderia trazer-lhe danos irreparáveis. O homem, já fraco com a doença e cada vez mais conformado com sua situação, aceitou a escolha da esposa, e não só achou que ela lhe fazia uma bondade, abstendo-se de suas necessidades para não fazer-lhe mal, como tratou de arranjar um quarto só para ela no extremo oposto do corredor. Assim, evitava-se qualquer desejo mais forte e suspendia-se a tortura de ambos.
Quem gostou da mudança foi a pequena Giovana, que aproveitava as noites para ir dormir com seu querido pai. Juntos, eles passavam a noite a conversar baixinho e de luz apagada, pois a madrasta brigava quando via os dois permanecerem acordados depois das 21h00. Assim que o primeiro raio de luz despontava pela janela, a menina voltava, pé-ante-pé, para o seu aposento.
Desde que a mãe morrera, Giovana não conseguia dormir sozinha. Logo que o casal voltou de lua-de-mel, a criança dirigiu-se ao quarto deles e enfiou-se no meio dos dois. Quando Joana acordou e a viu, deu um grito de horror e expulsou a menina a chineladas, falando que nunca mais ousasse tentar vê-la de camisolas e cabelos emaranhados.
O único que achava Joana bonita era seu próprio marido. Porque? Alguns acreditavam que o câncer estava o enlouquecendo, afinal, via-se pela ex-mulher que tinha boníssimo gosto. Outros, afirmavam que os seus olhos já não mais enxergavam bem, e pouquíssimo ousavam afirmar que era por verdadeiro e ardente amor.
O tempo passou rapidamente, e a doença do homem não tardou a ocupar-lhe todo o corpo. O câncer possui seus órgãos internos de forma devastadora até que ele desistiu de viver. Já não saía mais de sua cama e sua filha fora proibida de lhe visitar. Não queriam que as últimas lembranças do pai fossem de uma pessoa fraca a beira da morte.
Joana, de início, assistia a morte do marido com indiferença, tentando disfarçar sua ansiedade para com a herança e os bens que lhe seriam deixados. Porém, não deixou de ministrar os medicamentos e de cuidar de sua higiene. Dava-lhe banhos todos os dias, alimentava-o com sopas e comidas pastosas, trocava suas roupas íntimas e como que por obrigação, até chegou-lhe a dar um certo afeto nunca antes manifestado.
Ver o marido em tal estado decrépito causou em Joana uma compaixão e um amor inédito em sua existência. Ele passou a ser como uma criança, um filho, que nunca pode ter.
Nos últimos dias da vida de seu homem, Joana deitou-se com o marido como uma verdadeira mulher, extraindo-lhe prazeres e gemidos até então proibidos. Se o médico soubesse de suas traquinagens, expulsaria-a da casa no mesmo instante.
Porém, o homem nunca fora tão feliz. O amor que gozavam juntos era como um laço perdido a anos e finalmente retomado pela única certeza da vida.
Mas nada era capaz de o curar. Joana, sempre tão gélida e rude, estava apaixonada pelo marido que dentre em pouco viraria um cadáver. Perdera a linha de conduta que a guiara por toda sua vida, e se esquecera dos conselhos da mãe, de nunca amar um homem em quaisquer circunstâncias.
Estava realmente triste. Já sentia saudades do marido, e de si mesma, como uma esposa devota que nunca poderia realmente ser.
Abraçada ao seu eterno marido, ela ouviu seu último suspiro, e como em uma reviravolta de personalidade, derramou a primeira e única lágrima de toda sua vida.



Letícia Mueller

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