quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Dons X La Fontaine X Canivete Suíço



Em 1979, quando eu estava com cinco anos de idade, tive uma doença chamada meningite que atingiu uma parte do meu cérebro deixando algumas seqüelas, como problemas de coordenação motora, por exemplo.

Por causa destes transtornos, sempre fui uma péssima aluna de Educação Artística e Educação Física. Meus colegas sempre caçoavam dos meus desenhos e dos meus artesanatos, o que sempre causou-me uma ponta de complexo.

Até que, em 1987, uma professora chamada Eivelise trouxe um texto chamado: A Revolução Na Escola dos Bichos de autoria de La Fontaine, com pequenas adaptações para os dias atuais. O conto era este:

A Revolução Na Escola dos Bichos

Um certo dia, na escola dos animais, a diretora Coruja decidiu mudar o currículo e afirmou:

- A partir de hoje, todos os alunos assistirão a todas as matérias! A cobra precisará saber voar, o peixe deverá aprender a correr na terra e a andorinha terá que ser campeã de natação. Além disto, no final do ano letivo, haverá uma competição esportiva... Afinal, o mercado de trabalho exige profissionais polivalentes!

O tempo passou até que chegou o dia da competição. Porém, o evento foi um desastre: a cobra caiu de asa delta, o peixe faleceu por falta de ar e a andorinha afogou-se.

No final da aula a professora Eivelise explicou:

- Cada um tem um dom: uns para exercícios físicos, outros para atividades intelectuais, etc. Há um cientista que descobriu que existem sete tipos de inteligências diferentes: lingüística, matemática, espacial, musical, cinestésica, social e espiritual. Portanto, se você possui o dom de escrever, mas não sabe desenhar... Não se preocupe. Afinal cada um nasceu com um tipo de inteligência.

Naquele instante, brotou uma esperança no meu coração que me encheu de alegria . Porém, esta felicidade acabou quando, em 1993, fui aprovada num concurso público para dar aulas na Educação Infantil.

Ao chegar a escola, a primeira coisa que a diretora fez foi me dar cartolina e material para desenho. Depois ela exclamou:

- Agora, você vai desenhar!

Então eu expliquei:

- Desculpe, mas eu não sei desenhar.

Porém ela insistiu:

- Não interessa! Você vai desenhar e pronto!

Tentei copiar a gravura de uma boneca. Mas o desenho saiu torto. Assim, a diretora percebeu e gritou:

- Que coisa horrível! Você não serve para nada! Seu problema é de competência!

Como na época eu era recém-saída da adolescência, com 18 anos de idade, entrei em depressão e fui chorar no banheiro. No dia seguinte, deixei o texto: “ A Revolução Na Escola dos Bichos“ na mesa da diretora, sem que ela percebesse.

Mais tarde, ela veio gritando para mim:

- Foi você quem deixou este texto na minha mesa?! Isto é uma indireta ?! Colocarei esta mal-criação na sua ficha!

Alguns dias depois, pedi demissão da escola. Hoje, esta diretora está aposentada e, por ironia da vida, ela complementa o seu salário exercendo a função de “guru” de terapias alternativas como: hipnose, cartas de tarô, meditações e regressões de vidas passadas.

Em 1997, ganhei um canivete suíço de uma amiga de aniversário, que me disse:

- Este é um presente para você. É um canivete suíço , que tem mil utilidades. Ele é: faca, chave de fenda, martelo, alicate, lixa, tesoura, abridor e não sei mais o que...

Agradeci o presente. Mais tarde, fui usá-lo para abrir uma lata, porém não consegui e precisei usar um abridor comum. Depois, resolvi usar o canivete suíço como tesoura, mas ela estava cega. Após isso, tentei usar o produto como lixa nas minhas unhas, mas não fazia efeito...

Então refleti: há pessoas que são como os canivetes suíços, acham que sabem fazer de tudo, porém fazem mal feito o pouco que pensam que sabem fazer...

O dom do canivete é ser canivete. Afinal ele não foi planejado para ser tesoura, lixa e nem chave de fenda.

O mundo real é como a fábula de La Fontaine, cada criatura possui um dom único e especial. Cabe a ela aproveitar o seu tipo de inteligência e não imitar os outros.



Luciana do Rocio Mallon

Um comentário:

Anônimo disse...

Luciana, não sei o que é melhor neste texto: se é a sua desconcertante sinceridade, sua analogia precisa ou sua mensagem absolutamente incontestável. Parabéns. Vai me servir de reflexão, possivelmente para a vida toda. Nunca mais verei um canivete suíço da mesma forma. E o mesmo valerá para os padrões de competitividade. Muito bom. Eu devo a você, no mínimo, um muito obrigado. :-)

Mario