sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Nave(diva)gando



Eu andava pela calçada, vagueando. Até já tinha planejado o caminho em minha mente e estava com a rota devidamente marcada. Sabia os locais exatos em que deveria parar pra checar o semáforo, em que altura da rua eu teria que enfrentar o cardume motorizado e abrir caminho por entre as águas de gasolina. Já tinha até medido os esforços e calculado os instantes em que deveria guardar energia para uma já não súbita subida.
Por ter a rota toda mapeada em minha mente, eu podia simplesmente vaguear sem me preocupar com o caminho por onde meus pés me levavam. E eles tinham vida própria. Viviam por si só, mas de um jeito inerente ao mapa que reluzia no lado inconsciente de minha mente. Tudo que sobrou do lado consciente eu usava para, com a minha íris, fotografar a paisagem cimentada que comprimia meus olhos com suas toneladas e toneladas de material inorgânico. Tanta falta de vida reunida não só preenche toda a visão, como aperta a alma com a mesma pressão que a matéria comprime a matéria. Um pseudo combate corpo a corpo.
E como em uma batalha de titãs, só para que tudo ficasse com cara de contraste em fúria, as nuvens desfizeram-se sob o petit-pavê. Tirei rapidamente o guarda-chuva da bolsa, mas não a tempo de não ter minhas lentes preenchidas com o que caía do céu. Aliás, nem saberia dar nome àquilo. Primeiramente, chamaria de água, mas ao tentar a clássica experiência lúdica de erguer o rosto o máximo possível – não sem antes tirar os óculos – e dar uma longa bocejada, frustrei-me. Bocejei forçosamente em busca de refrescância e o que consegui foi uma maravilhosa mistura de sei lá o que. Créditos ao homem urbano.
Engolir aquilo seria como tomar cicuta, e como não me achava no direito de morrer como Sócrates, fui obrigada a colocar “tudo” para fora. Rezei para que o conteúdo restante fosse relativamente inofensivo.
Vai saber, continuo ainda um pouco viva.
O fato é que ainda caía tragicamente água do céu, molhando protegidos e desprotegidos, sem pudor algum. Os que foram pegos de surpresa já correm para os braços protetores dos pais-marquises, sempre dispostos a te acolher, desde que você tenha lábia para conquistar seu lugar nesse “coração” de pai.
Os prevenidos desfilam nas passarelas cimentadas bem à frente dos seus subordinados, gloriando-se com a liberdade concebida pelos artefatos anti-água. Esses sim são capazes de prosseguir em sua rotina, que só é quebrada durante uma chuva pois um braço deve permanecer erguido até o fim do trajeto. Um braço, nada mais. Nada de duas pernas paradas, ponteiros correndo mais depressa que o normal. Um braço erguido.
Mas, nem tudo são flores para os espertos conhecedores do clima Curitibano. Quando eles pensam que já venceram o Inimigo Maior, surge, no fundo escuro do túnel, um Monstrinho pequeninho, de aparência inofensiva, mas que se reproduz com tal velocidade que acaba se tornando uma praga urbana. Sim, sãos os carregadores de guarda-chuva, artefatos anti-água, instrumento dos prevenidos, não-instrumento dos desprevenidos. São eles próprios, os prevenidos, os seus maiores inimigos. A maré de guarda-chuvas carrega tudo que vê pela frente em um quiproquó de empurrões, pés e cotovelos, em um fluxo tão instável que às vezes, se assemelham a um grupo de águas-vivas dançando ballet, e em outras, mais parecem um cardume de peixes tentando fisgar uma isca. Uma loucura.
No meio de tanto caos, basta aguçar o olhar para ver a beleza em meio à calamidade. O verde original, apesar de desbotado, ainda desponta em meio à paisagem urbana, mas poucos são aqueles que ainda notam isso, tão entretidos estão em reparar na estampa do guarda-chuva alheio, o pai-marquise livre, o sinaleiro que está para abrir, o espaço que abriu entre as águas vivas.
Mas as águas... continuam vivas.


Letícia Mueller

2 comentários:

Anônimo disse...

Bem apropriado para esses dias de chuááááá periódico em Curitiba, Letícia. :-)
Beijo, Fofulety.

Mario

Karime disse...

Aqui também faz chuááá!
Adorei!