sábado, 10 de outubro de 2009

Parque de diversões


Três e meia da tarde. O dia arrasta-se, num calor modorrento. Olhando pela janela, Amanda nada vê. Focaliza, sem querer, o toldo vermelho vivo da padaria, do outro lado da rua. Vermelho. Como se esperasse apenas esse comando visual, o pensamento correu solto, dispersando-se. De repente, já não está mais em casa, no quarto solitário e úmido, debruçada sobre os livros que deve ler até o fim do mês – tinha que esforçar-se, afinal, ralava o dia todo vendendo brinquedos (justo ela, que detestava crianças), correndo para cima e para baixo, aguentando manha e chutes na canela, com o mais puro e compassivo sorriso angelical...
Desde que saíra do interior, a menina tímida e recatada sentia-se uma deslocada. Se fosse utilizar uma única palavra para descrever-se, em meio à metrópole, seria alienígena. Sentia-se um ser estranho. Anacrônica. Obsoleta. Os poucos amigos que fizera, deixara-os todos na cidadezinha onde passara a vida toda. Agora estava só. Não acostumara com o ritmo apressado de quem corre atrás do tempo. Não saía na balada, não ouvia música, não sabia dançar. E, para piorar, era tímida de dar pena. Quase sofria ataques epiléticos cada vez que tinha que apresentar trabalho. No auge da situação, tremia, gaguejava, ficava avermelhada.
Vermelho. Tão vivo como o toldo da padaria. Tão quente quanto suas carícias. Ainda não conseguia acreditar que ela – elazinha - tivesse despertado o seu interesse. Não que fosse feia: brasileira típica, pequena, tipo “mignon”, cabelos negros e lisos, pele tostada do sol. Mas que estava longe dos padrões capitalistas de beleza, ah, isso estava!
Porém, era inteligente. Isso era inegável. Discursava com qualquer um sobre literatura brasileira, física ou matemática (suas paixões). Mas em se tratando de preferências masculinas, a inteligência não ocupava, digamos, os primeiros lugares...
Mesmo assim, conseguiu romper com os próprios grilhões quando foi morar na capital, cursar faculdade. Abandonou a família, alugou um quartinho, conseguiu um emprego para poder se manter. Trabalhava o dia todo, estudava a noite. Nos finais de semana, ficava trancada no quarto embolorado, estudando, estudando, estudando. Quase não saía, salvo para fazer caminhadas. Levava uma vida medíocre, bem sabia, mas estava feliz daquela forma.
Isso até conhecer Fernando. Era entardecer de uma quarta-feira nublada e ela andava distraída pelo parque, fazendo sua caminhada solitária, acompanhada do inseparável Machado de Assis (estava relendo, pela terceira vez, Memórias Póstumas de Brás Cubas), quando foi atropelada por um ciclista de capacete vermelho. Esparramada no chão, atordoada, não sabia se ria, chorava ou se escondia num buraco. Como nenhuma das três opções lhe parecera muito coerente, decidiu aceitar a ajuda do causador de sua tribulação, que lhe estendeu a mão e um sorriso de desculpas.
Quando fitou os olhos negros do seu agressor casual, sentiu corar e teve que se controlar para não pedir desculpas por ter sido seu alvo. Nunca gostou de história, mas se gostasse, aquele seria seu deus grego. A personificação do belo. E olhe que ela não estava exagerando.
- Machucou?
- Na - não... – conseguiu articular, abobalhada.
Fernando era alto, corpo minuciosamente trabalhado com exercícios físicos, boca carnuda – altamente desejável. Olhos negros penetrantes e insondáveis. Sorriso franco, docilmente agressivo. O conjunto todo era – enfim – muito harmonioso. Harmonioso demais para ser perfeito.
Ao anoitecer, depois de sair de uma longa ducha quente, Amanda ficou se perguntando onde tinha deixado o juízo ao sair de casa. Recordara, num misto de assombro e excitação, de cada detalhe, de cada sussurro, de cada gemido. Quando se dera conta, a boca desejável buscava a sua sem pudor. E ela, contrariando todos os seus princípios, correspondia. Insana. Meu Deus! Será que alguém percebeu? Ah, dane-se – exclamou, derrotada.
Mãos quentes que sabiam exatamente o que tatear, numa ânsia frenética que a enlouquecia – só pode ser isso, ando estudando muito, acho que endoideci... ! – Bocas, salivas, cheiros, suores, prazeres. – Pelo menos sou uma louca satisfeita, conclui.
E como a vida é cheia de encontros e desencontros, passaram-se dias depois daquele encontro e Amanda seguiu com sua vida medíocre. Mas agora não lhe bastava o trabalho e os estudos. Acordava sufocada, durante a madrugada. Sonhava. Delirava. O comum, o mínimo que estava acostumada a exigir da vida, já não lhe bastava. Os amigos estranhavam-lhe as olheiras, a irritação, a ansiedade. Deve ser TPM, diziam uns. Com certeza, aprovavam outros – é por isso que ela anda fazendo tanto exercício físico! Ela não sai mais do parque!
E estavam certos. Amanda desejava loucamente praticar exercícios físicos... E já que dizem que quem procura acha... Um dia ela achou. Ou melhor, reencontrou. Dessa vez, ele estava correndo. Sem camisa. Ela não pensou duas vezes, se interpôs no caminho. Olhos negros. Boca desejável. Sussurros. Gemidos. Prazeres.
Mas Amanda não sabia nada de Fernando. Nem sabia se ele realmente se chamava Fernando. Angustiava-se, debatia-se com suas dúvidas. Tão abruptos como eram seus reencontros, eram também as partidas. Ele sumia, terminava sua corrida, como se nada tivesse acontecido. E ela saía arrumando-se, olhando para os lados, rezando para que ninguém tivesse percebido.
E, como toda mulher, não teve dúvidas: “confessou-se” com uma amiga. No início, acanhada e reticente, mas, à medida que a descrição se alongava, empolgara-se a ponto de a amiga ter que pedir para falar mais baixo. Quando concluiu, olhava entre temerosa e desafiante para a amiga, implorando-lhe informações, já que vivia na cidade há mais tempo.
Ihh, boba! Não vá me dizer que você está apaixonada pelo Fernando do parque! Tá, eu sei que o cara é muuuiiitttoooo bom, mas não dá para levar a sério e... – Peraí!!!! Você o conhece? – interrompe Amanda, quase desfalecendo.
Queridinha, metade da população feminina da cidade conhece. Alto, sarado, olhos negros, esportista? Cada dia da semana ele frequenta um parque diferente. No sábado faz natação. Vive esbarrando “sem querer” nas suas vítimas, digo, nas mulheres que ele acha, digamos, interessantes. Foi assim com você, não foi?
Boquiaberta, sentindo-se uma otária, Amanda concorda, lentamente, com a amiga. Como fui tão estúpida? E eu que achei que podia ser especial...
Ah, não pensa assim. Aproveita a vida, mulher. Se quiser, eu passo o cronograma dele para você. Ele nunca muda, nunca falha.
A família estranhou quando ela disse, ao telefone, que não iria para o interior no final de semana, porque estava praticando natação e que também não poderia ir no feriado prolongado porque tinha que correr no parque... Minha filha vai virar atleta, dizia a mãe orgulhosa, para as comadres, entre um chimarrão e outro, enquanto a filha gemia, nos braços de Fernando.


Rubia Carneiro

4 comentários:

Anônimo disse...

Rubia, sensacional. Como no blog a gente escreve sem papas na língua (nem nos dedos), e como você já sabe o que penso desse seu texto, fica então minha impressão sobre este post: do caralho. Beijo.

Mario

Karime disse...

Show. Do caralho, mesmo.
Bjo, Rubia!

Anônimo disse...

Sensacional e show é receber elogio de pessoas q escrevem tão bem qto vcs!
Beijos
Rubia.

Rose Lopes disse...

Muitas Amandas encontramos por aí .... e o que seria dos Fernandos se não fossem essas Amandas ????? Adorei o texto !!! Boa semana a todos.