sexta-feira, 26 de março de 2010

O Sorvete De Arco-Íris


Assistia à televisão de madrugada, com um enorme pote de sorvete sobre o colo despido, apenas ouvindo o som das vozes desconhecidas que sussurravam em cores coloridas. Era desnecessário abrir os olhos, tão concentrada estava nos pedaços crocantes de chocolate amargo que a surpreendiam a cada garfada.
Sim, comia sorvete com garfo, por algum motivo que mal ela saberia explicar. Só sabia que fisgar pedaços de sorvete derretido era uma das suas maiores diversões. O engraçado é que mesmo depois de tanto tempo praticando a tal façanha e já estando mais do que especialista na modalidade, ela ainda perdia para si mesma, o garfo, ou o sorvete, afinal, aí já não tem como saber. Era só um jogo.
Deitada no sofá, ela comia, comia, comia. Comia porque queria, e porque podia, e também porque devia. Nunca trocaria seu delicioso sorvete por nenhum remédio anti depressivo, calmantes, ansiolíticos ou qualquer coisa que o valha. Ela já tinha achado seu elixir da vida, sua fórmula da felicidade, o jeito de sentir-se completa. Sorvete crocante de chocolate amargo.
O hotel perfeito, na companhia das vozes coloridas perfeitas, com a cama perfeita, e tudo perfeito. “Isso sim é vida”, pensava ela. Dentro do quarto ela sorria ao perceber a quanto tempo não falava com alguém, nem mesmo um funcionário do hotel. Há quanto tempo não engolia um sem gordura trans, enriquecido com isso e aquilo e saúde-na-sua-vida. Viveu na própria pele o cotidiano de um ser saúde e arrependeu-se amargamente por suas frustrações. Simplesmente cansou-se. A vida lá fora não valia a pena, mas ali dentro, sentia-se recompensada pelos anos de tédio e melancolia. Gostava mesmo é de comer sorvete crocante de chocolate amargo.
Quando se lembrava das pessoas que conhecera, da sua família, daquele homem, respirava aliviada por estar hoje em tão completa liberdade e felicidade.
Emocionada, deixa que uma lágrima minúscula deslize rápida e discretamente sobre o seu rosto, indo direto para seus lábios e entrando em sua boca levemente aberta, criando um ponto de luz imperceptível. Não sentiu, nem notou a gota de água, mas tão logo seus olhos marejaram, arreganhou os dentes de uma forma que parecesse um imenso sorriso sincero.

Pegou de dentro da gaveta um comprimido verde dentre tantos outros do seu arco-Íris particular e, sem querer, soltou-o no pote de sorvete. Na primeira garfada, engoliu o seu coquetel molotov, elixir da vida, fórmula da felicidade. Sorvete crocante de chocolate amargo.




Letícia Mueller

2 comentários:

Anônimo disse...

Dá pra fazer um curta em 8mm PB... não, levemente sem cor mas com a cor da boca em vermelho estourado e o pote num tom sépia cor de chocolate amargo.

O chão tem que ter água, afinal a menina tá derretendo aos poucos.. ;-)

beijos, adorei !!

Angelica

Karime disse...

Ótima idéia, Angel! Os textos da Leticia instigam curtas. Ia ser muit afu.

Beijos!!!