sexta-feira, 19 de março de 2010

Quanto Mais Eu Rezo, Mais Eu Leso


- ... está aí. O inimigo está sempre presente, querendo nos afastar de Deus, irmãos! Temos que orar e entregar nossa alma a Deus! A Deus que a tudo pode, Deus que te salva, que te livra das tentações, e te salva do diabo, irmão! Deus é tudo o que você precisa, é sua vida, é seu amor! Se entregue pra Deus irmão, vai...se entregue... e seja livre!
Paola chorava no colo da mãe. Odiava aquele homem que passava horas gritando coisas horríveis, esbravejando, urrando, suando na frente de um monte de pessoas que iam lá só para ouvi-lo falar. A sua mãe, por exemplo, além de não faltar um só sábado, fizesse o frio ou o calor que fosse, fazia questão de arrastar toda a família junto. José, ainda novinho, mal entendia o que o pastor falava, então se limitava a ficar no colo de Joaquina, sua mãe, e raramente abria os olhos, só para ter certeza de que estava tudo ok. Joaquim, seu segundo irmão, até que gostava de ir a igreja, mas só quando não tinha nenhum programa marcado. Se surgia algo para fazer, ele corria para a mãe implorando para que pudesse sair, fazia promessas de que iria a igreja todos os dias da próxima semana para compensar a falta. Jurava ajudar nos afazeres da casa, tirar notas altas, manter as tarefas escolares em dia. Mas não, não adiantava.
- Dia de í na Igreja, é dia de í na Igreja. Se você esquece Dele, ele esquece de você. E aí já viu.Vem o diabo e te agarra, rouba tua alma, te carrega para o inferno. Você qué í pro inferno, Joaquim?
Temerosa, a criança se encolhe:
- Quero não, manhê!
- Então se veste que nóis já ta indo. E rápido. Se demorará pra se arrumá, eu te deixo em casa, e aí já viu né. Vem o diabo, e ...
Joaquim, quase chorando, sai correndo para seu quarto, já sem as meias e com os botões da calça abertos, tamanha era a sua pressa.
E lá ia novamente toda a família para a igreja, orar para Deus e para o Diabo, com exceção de Paola, que aproveitava o culto para esvaziar seus sacos lacrimais.
O pastor Amarildo conhecia muito bem a família Silva Carvalho: o salário, onde moravam, o que comiam, seus medos e inseguranças, e suas alegrias e esperanças. Mas para ele, o que realmente interessava era o bolso. Não se importava com as lágrimas e o medo de Paola, desde que sua mãe continuasse a contribuir semanalmente com a igreja. Ah, e freqüentá-la também, obviamente.
Adorava José. Era o mais bacana de todos, com exceção de Joaquina. Parecia um anjinho quietinho no colo da mãe, sem abrir a boca, pedir bênçãos ou conselhos. Queria que todos fossem assim, inclusive os mais velhos, mas que continuassem a ter as almas salvas pelo dízimo. Ah! o dízimo.
Sem dúvida, a melhor invenção de Deus com o homem. Além de garantir que os fiéis fossem para o paraíso, faziam com que a vida do pastor fosse uma maravilha. Ele, como já vivia em um paraíso, nem se incomodava em pagar dízimos ou fazer doações. Já tinha seu lugar garantido no Jardim de Éden. Ali na terra mesmo. Na verdade, bem pertinho da sua cama... no seu quintal, logo ali.
Pastor Amarildo, grande homem. Um dos mais fortes e comoventes testemunhos já ouvidos pelos fiéis da Igreja. Começara a vida como ladrãozinho. Roubava a carteira da mãe, dos amiguinhos da escola. Coisa pouca, no máximo R$ 10,00. Só uma vez que, já mais crescidinho, precisava de dinheiro para suprir as necessidades carnais da namoradinha e pegou R$ 50,00 do caixa onde trabalhava. Mas foi só uma vez. Um dos seus colegas de trabalho foi acusado pelo roubo e acabou demitido. Só que ele nem gostava do emprego. Afinal, até que foi um favor.
Depois, movido pela ambição, cadeiras de rodas, dinheiro, bonés, camisetas e cestas básicas, virou político. Graças ao seu povo, o povo de Deus.
Até que se deu bem. Tinha boas idéias, era carismático, articuloso, espertíssimo, dissimulado, e (louvado seja o Senhor), muito discreto. Poucos sabiam onde morava, para onde sua família viajava (casar foi uma benção) ou suas compras de fim de semana. É claro que cada uma dessas regalias era merecida e fruto de muito suor do seu trabalho, de segunda a quinta, das 14:00 às 17:00. De vez em quando até as 17:06, 17:08. E por aí vai.
Mas Amarildo queria mais. Ganhava bem, porém ainda não era o suficiente. Então, em um dia belíssimo acordou com uma luz divina iluminando suas idéias. Porque não tornar-se pastor, hãm? Sabia conversar, aconselhar, abraçar, chorar, atuar. Orar não sabia muito bem, mas bastava um curso on-line na Internet para resolver o problema.
Foi a uma igreja e descobriu que entrar para trupe era tão simples como todas as outras coisas que queria. Com dinheiro, não existe burocracia.
Assistiu alguns cultos, observou os crentes e suas doações e dízimos, contabilizou o lucro e resolveu investir. Expulsou o pastor vigente e começou a ministrar e arrecadar.
Assombrou-se tanto com o lucro que até se converteu para o evangelismo. Isso é que é pastor bom.
Foi fácil conquistar os fiéis com o seu testemunho sincerotiroso. Disse que, depois de muito roubar, mentir, judiar de sua família, iludir mulheres e ceder aos prazeres da carne, literalmente escutou a voz de Deus e acordou para a realidade. Passou a ir a uma pequena e humilde igreja na periferia da cidade, perto de sua casa, e, quando começou a sentir o prazer de ajudar à Casa do Senhor e aos necessitados, dividindo o pouco que tinha com o próximo, é que notou que podia e deveria fazer mais. Estudou para tornar-se pastor, e quando finalmente estava apto para ministrar e subiu ao púlpito, é que descobriu sua verdadeira vocação.
Ah como era bom chegar em casa todos os dias com o bolso cheio de dinheiro, como recompensa do Senhor por alertar aos crentes da existência do inimigo, o temido diabo.
Como era gratificante olhar todas aquelas famílias reunidas, clamando ajuda e entregando sua alma e seu salário ao mestre. Deus.
Como era bom ver os adolescentes presentes, alguns um pouco emburrados, trazidos por seus pais que queriam garantir o amor de Cristo.
Como era bom José novinho quietinho no colo da mãe. A mãe sempre de envelope na mão, fazendo cara feia para os que se faziam de mãos e bolsos vazios para louvar a Deus. “Coitado do pastor Amarildo, tadinho, desse jeito ele morre de fome. É um absurdo um irmão como ele, tão bondoso com todos, não ter o dinheiro e as regalias que um ladrão de um político tem”. Assim pregava Joaquina.
Amarildo era (louvado seja o Senhor) homem discreto. Graças a Deus.



Letícia Mueller

Um comentário:

Bruno Cesar Barreto disse...

excelente texto meu amor...
cada dia me surpreendo mais com vc e com seus contos. te amo muito e morro de orgulho,
Parabéns