
“Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber, afinal amar o próximo é tão demodê”.
Renato Russo
Você conhece algo mais brega do que o amor? Pode constatar: uns 95% de toda a música péssima que existe no mundo reza sobre amor. Os pagodes mais execráveis, os sertanejos mais bagaceiros, os axés mais laxantes, quase sempre batendo na mesma tecla cor-de-rosa. Seja como ode, seja como escárnio, ele é tema recorrente. As histórias mais inesquecíveis, as paixões mais açucaradas, os desejos mais inconfessáveis, e faça-se presente o amor. Promessas quebradas, sonhos vencidos, cotovelos latejantes e lá está ele: o cobiçado e temperamental amor. Dando e tirando quase na mesma medida. Pisando duro no calo sem perder o sorriso de santidade.
Por ser, literalmente, o tema mais apaixonante do universo, o amor é também o mais democrático. Que jogue a primeira pedra de gelo aquele que nunca tomou um pilequinho para afogar as mágoas de um romance frustrado. E isso é o mínimo: há quem sequestre a família, bata o carro e até mate em nome do amor. Incrível como as autoridades investem em programas anti-drogas mas nenhum parlamentar se manifesta em prol de tratamento profilático para dores de amor, mesmo com casos de homicídio/suicídio todos os dias infestando os noticiários (vide o episódio de Diadema no ano passado, em que um desequilibrado alvejou a namorada e a amiga depois de dias de cativeiro, entre tantos outros). O Globo Repórter certa vez revelou uma pesquisa apontando que quatro em cada cinco pessoas já sofreram dor de amor. Quantos desses não perderam emprego, se viciaram em barbitúricos ou cometeram toda sorte de besteira para aplacar a dor da alma? O fato é que, por conta de seu histórico comprometedor (e isso vem desde Adão e Eva), somado à vulgarização com que é tratado por “artistas”, pastores e autores de livros de auto-ajuda, o amor virou sinônimo de veneno kitsch. De algumas décadas para cá, sua depreciação foi mais violenta do que os índices da bolsa Nasdaq no crepúsculo da era Bush.
No final dos anos 60 e início dos 70, o amor entrou em seu momento áureo. Afirmavam os esotéricos que estávamos adentrando na Era de Aquário e que o amor nos salvaria. Beatles não se constrangiam nem um pouco em receitar “All You Need Is Love” e o lema da nova era passou a ser “Paz e Amor”. Não havia embaraço nas vestimentas excessivamente coloridas, nem em se usar flores no cabelo. Era a ascensão do amor livre. Mas a década seguinte, ainda embalada pela sepulcral notícia de que “o sonho acabou”, trouxe um ceticismo arrogante e impulsionado pelo deboche da onda punk. Surgiram os yuppies, ex-hippies arrependidos e endinheirados que apregoavam justamente o contrário da redenção pelo amor. O que valia era o poder e as relações interpessoais efêmeras.
Claro, a moda é cíclica, e, portanto, os anos 90 se iniciaram com uma tentativa de retomada do Power & Flower, trazendo bandas como Stones Roses cantando e se trajando na linha amor-com-amor-se-paga. Mas foi muito breve este revival. Não havia como represar a mágoa de décadas de guerra fria e a desesperança de um mundo agora ameaçado pelo aquecimento global. Ela se impregnou nas composições dos astros do grunge, movimento que operou a estética da depressão fashion como nenhum outro. Letras ácidas, roupas escuras e guitarras distorcias – no futuro poderão chamar os filhos de Seatle de grosseiros, mas dificilmente poderão apontá-los como bregas, porque compunham com uma couraça estética quase intransponível para o contágio do amor.
Junte-se a isso a força dada por outros movimentos artísticos, como o cinema tarantinesco, onde até os amores são bandidos e as cenas de truculência é que fazem o frisson junto ao público, e assim caímos da era de aquário diretamente e sem escalas para a era do ferro. O amor se tornou elemento pernicioso, quase persona non grata. Um recurso canhestro e perigoso. E isso até mesmo em uma galáxia muito, muito distante: a série “Star Wars” tinha em seus rivais, os Jedis e os Siths, um inimigo em comum, o amor. O motivo? No caso dos Jedis, o amor poderia trazer ciúmes e ódio; no caso dos Siths, poderia enfraquecer por inspirar a compaixão. E, no caso dos produtores da série, poderia fragilizar a seriedade da história, gerando também constrangimentos para a platéia mais apegada à luta de sabres de luz do que às flechadas rudimentares de cupido.
Mas deixando um pouco de lado o nível macro do assunto e esquecendo as influências das artes e da mídia, por que o amor carrega essa aura de ameaça à estética e à paz do cidadão comum? Simples, ele nos torna tolos, nos desarma, nos joga em ciladas depois percebidas como quase inexplicáveis de tão enganosas quanto cruéis. Mudamos, nos infantilizamos, somos, da noite para o dia, vistos no jardim de uma casa desconhecida roubando rosas; ou servindo café na cama quando nem costumamos tomar café-da-manhã; damos presentes por um impulso irrefreável e sem qualquer motivo específico; escrevemos milhões de e-mails e recados no celular; catapultamos a conta telefônica. “Ame e dê vexame”, já alertava um livro de Roberto Freire. Você fica vulnerável porque amor de verdade não tem máscaras ou armaduras. Mas a apologia ao gladiador contemporâneo (e nele também está incluso a mulher guerreira que cumpre dupla jornada) nos impede de admirar quem se expõe e se fragiliza diante do outro, por mais que esse outro seja alguém com quem se dividirá as maiores intimidades. Vivemos o amor com um pé atrás, o que, já em primeira instância, não é amor de verdade. Por conta disso, a moda tratou de adotar o luto como um elemento mais seguro para o público e para os artistas. Vestir preto, por dentro e por fora, imuniza o usuário dos reflexos da breguice. É refratário e mais elegante. Preto emagrece na silhueta e previne dos efeitos colaterais da alegria. A morte é mais fashion que o amor. Essa constatação encontra coerência em uma pesquisa que aponta terem as pessoas mais medo de falar em público do que de morrer. Ou seja, pagar mico, eu?! Nunca, prefiro morrer. Uma visão que contamina o campo das relações conjugais.
Até mesmo (ou principalmente) no encerramento de uma relação usamos o ódio ao invés do amor, e isso por um fator simples: é muito mais fácil se afastar de algo que execramos do que daquilo que ainda desejamos. Além do mais, aliviamos ou anestesiamos o sentimento de culpa. Daí torna-se prudente botar a conta da relação no outro, construir uma falha alheia, esculpir um factóide: “ah, foi o jeito dele”, “ah, foram as manias dela”, espalhando o motivo ao seu círculo de relacionamentos que, por sua vez, dará o devido reforço estimulante ao fim da relação. Esquece-se todo o amor vivido por conta de uma necessidade pontual de ruptura.
E aquele amor fraternal, esqueça. Se já é difícil amar alguém que nos dá prazer, imagine exercitar compaixão por quem não conhecemos ou, pior ainda, que nos causa algum mal. O Amor a Deus, então, este ficou dividido em dois flancos: os que não acreditam nEle (e que estranhamente o odeiam, por mais que não faça sentido rechaçar o que dizemos não existir) e os que são papa-hóstia/crentes/glória-glória-aleluia. Não há espaço na arte e nos debates cotidianos para quem acredita no amor divino sem afetação ou ceticismo. Você escolhe, ou um ou outro.
“Declare guerra a quem finge te amar”, do Frejat, e “I Love you but when you love me”, de Barney Sumner e Johnny Marr, atestam que o tal amor soberano e incondicional entrou em baixa faz tempo, sem sinais de desfibrilador na enfermaria. Compositores gays, como Cazuza e Renato Russo, conseguiram tocar no tema sem grandes constrangimentos e com imenso sucesso, muito provavelmente porque adquiriram coragem já pela própria condição sexual que os coloca em posição vulnerável. Dos heteros, Djavan, Zeca Baleiro e Nando Reis fazem a valiosa frente dos machos sem medo de se expor, mas são modelos cada vez mais escassos, visto que estamos na era em que ninguém quer ver seu coração sendo sparring de alguém. E se é para expor fragilidade, que sejamos emos porque é muito mais cômodo nos fazermos de vítimas de nossas emoções do que exercitar seus riscos.
Na semana que passou, tivemos duas coincidências interessantes quanto a este tema: Gabriel Garcia Marques, o genial autor de “Cem Anos De Solidão” e de “O Amor Nos Tempos Do Cólera”, anunciou que parará de escrever, gerando um pesar mundial por perdermos um dos raros minaretes intelectuais que não têm medo de cantar as maravilhas deste sentimento universal; e a MTV divulgou no Top Top, programa destinado a formar listas de mais-mais em diversas áreas da música pop, os dez discos mais importantes sobre fim de relacionamento. As verdadeiras vítimas da moda do desamor puderam saber quais artistas e álbuns tiveram mais significância na estética da deprê-conjugal. E aqui vão as faixas mais representativas de cada disco elencado (isso dentro de uma seleção pessoal, que não constou no programa da eme-tevê, como diria o Lobão). Leia as letras, veja os clips, ouça as músicas e bom Prozac pra você.
10º lugar) Kanye West se separou de sua noiva e gravou o álbum “808s & Heartbreak”, cuja faixa carro-chefe se intitula “Hearthless”, ou seja, “Sem Coração”. O estranho é que quem acabou o romance foi ele, então por que acusá-la de ser sem coração? Pelo que dá para entender da letra, quem disse “fim” foi ele, mas recebeu uma resposta que o magoou, e como.
Sem Coração
Na noite eu os ouço contarem
A mais fria das histórias
Em algum lugar dessa estrada ele perdeu sua alma
Pra uma mulher sem coração... sem coração
Como você pode ser tão sem coração...
Como você pode ser tão sem coração
Como você pode ser tão
Fria como o vento de inverno quando venta em você
Só se lembre que você falou comigo
Você devia ver o jeito que falou comigo
Tipo, depois de tudo o que passamos
Tipo, depois de tudo que fizemos
E eu sei algumas coisas suas que você não me contou
Sei que fiz algumas coisas mas aquele era o antigo eu, e agora você quer me devolver
Você quer deixar isso claro então anda por aí como se não me conhecesse
Você tem esses novos amigos
Bem eu tenho umas gatas
Mas no fim das contas ainda me sinto sozinho...
Na noite eu ouço eles contarem
A mais fria das histórias
Em algum lugar dessa estrada ele perdeu sua alma
Pra uma mulher sem coração... sem coração
Como você pode ser tão sem coração...
Como você pode ser tão sem coração
Como você pode ser tão "Dr. Evil"
Você está trazendo um lado de mim que eu não conheço
Eu decidi que não iríamos mais nos falar então porque estamos às três da manhã no telefone?
Porque ela tem que ser tão má comigo, eu não sei, ela é quente e fria
Não vou parar e ferrar minha música pois eu já sei como essas coisas são
Você corre e conta pra suas amigas que está me deixando
Eles dizem que não sabem o que você vê em mim
Espere uns dois meses então você verá
Que você nunca vai achar ninguém melhor que eu
Na noite eu ouço eles contarem
A mais fria das histórias
Em algum lugar dessa estrada ele perdeu sua alma
Pra uma mulher sem coração... sem coração
Como você pode ser tão sem coração...
Como você pode ser tão sem coração
Falando, falando, falando
Baby, vamos encerrar isso logo
Eles não sabem o que passamos juntos
Eles não sabem nada sobre mim e você
Então tenho algo novo pra ver
E você só vai continuar me odiando
E nós vamos ser inimigos
Eu sei que você não consegue acreditar
Eu podia deixar tudo errado
E você não pode consertar
Eu vou sair essa noite
Vou sair na noite...
Na noite eu ouço eles contarem
A mais fria das histórias
Em algum lugar dessa estrada ele perdeu sua alma
Pra uma mulher sem coração... sem coração
Como você pode ser tão sem coração...
Como você pode ser tão sem coração
9º lugar) Bruce Springsteen se separou de Juliete Philips e criou “Tunnel of Love”, considerado o 25º álbum mais importante de todos os tempos pela Revista Rolling Stone. Como diria Cazuza: “obrigado por me da inspiração pr’eu ganhar dinheiro”. “Brilliant Disguise” é a faixa lapidar deste momento penoso vivido pelo legítimo american hero.
Ótimo Disfarce
Eu te seguro em meus braços
Enquanto a banda toca
O que são aquelas palavras sussurradas, baby
Enquanto você se afastava
Te vi noite passada
Pelas esquinas da cidade
Quero ler sua mente
Para saber exatamente qual foi minha parte
Nessa novidade que descobri
Então me diga o que eu vejo
Quando olho em seus olhos
É você realmente,
Ou somente um ótimo disfarce?
Ouvi alguém chamar seu nome
Debaixo do nosso salgueiro
Vi alguma coisa escondida
Embaixo do seu travesseiro
Bem, eu me esforcei bastante
Mas não consigo entender
O que uma mulher como você
Está fazendo comigo
Então me diga quem eu vejo
Quando olho em seus olhos
É você realmente,
Ou somente um ótimo disfarce?
Agora, olhe pra mim
Enquanto eu me esforço pra fazer tudo certo
E quando tudo dá errado,
Quando as luzes se apagam
Eu sou só um andarilho solitário
E ando por esse mundo com riquezas
Quero saber se é em você que não confio
Porque estou bem certo de que não confio em mim mesmo
Agora você interpreta a mulher apaixonada
E eu, o homem fiel
Mas não olhe muito de perto
Para as minhas mãos
Nós ficamos de pé, lá no altar
A cigana disse que nosso futuro era certo
Mas então vêm os pequenos momentos
E talvez a cigana tenha mentido
Então, quando você me olha
É melhor olhar bem e duas vezes
Sou eu realmente, baby
Ou somente um ótimo disfarce?
Hoje à noite nossa cama está fria
Estou perdido na escuridão do nosso amor
Deus tenha piedade do homem
Que duvida do que Ele tem certeza
8º lugar) Beck se separou de sua companheira de sete anos e criou um álbum com ligação quase inexistente perante os anteriores: nada de ecletismo e experimentalismos. “Sea Change” é puro amor rasgado, amargo e ácido. E “Lost Cause” é uma belíssima faixa que merece destaque.
Causa Perdida
Corte pesaroso
Dos olhos ao osso
É duro deixar este calor solitário
Da licença das feridas injetadas
Em alguém novo
Um bebê, eu sou um bebê perdido
Eu sou um bebê perdido
Eu sou um deles
Em uma causa perdida
Diversas pessoas vêm e vão
Para saber seus segredos
Você sabe que esta cidade tem loucos
Nenhum bebê recebe cuidado
Eu sou um bebê perdido
Eu sou um bebê perdido de uma causa perdida
Cansado da luta
Cansado da luta
Lutando por uma causa perdida
Um lugar onde você nunca esteve antes
Ninguém ri de suas costas
E estão em sua porta
É o que você pensa do amor
Eu sou um bebê perdido
Eu sou um bebê perdido
Sou uma causa perdida
Cansado da luta
Cansado da luta
De combate por uma causa perdida
7º Lugar) A cantora Jane Birkin se separou de Serge Gainsbourg, que, para quem não conhece, foi um dos mais importantes compositores franceses do século passado, tendo criado canções que fizeram sucesso também na voz de sua outra esposa, a exuberante Brigite Bardot. O álbum “Baby Alone in Babylone” tem, na faixa título, um melancólico e tímido uivo de amor, quase uma canção de caixinha de música. Incrível, mas reza a lenda que o próprio Gainsbourg compôs as músicas (cheias de referências altamente pessoais) para sua ex exorcizar a própria amargura da separação.
Baby, sozinha na Babilônia
Baby, sozinha na Babilônia
Afogados nas ondas
Pontiac
Cadillac
Bentley em L. A.
Rolls Royce e Buick
Metal na noite
Baby, sozinha na Babilônia
Afogados nas ondas
Música
Elétrica
Rock 'n' roll está procurando um papel
Você pesquisa os estúdios
E vestígios de Monroe
O rhinestones e estresse
Deus e deusas
Los Angeles
Baby, sozinha na Babilônia
afogados nas ondas
Luz
Poeiras
Efêmero Estrelas
Você sonho de eternidade
Infelizmente você vai encontrar
Baby, sozinha na Babilônia
Afogados nas ondas
Suas lágrimas e encanto
Avenida da Sunset
Sunset Boulevard é o
Que serpenteia através do escuro
Baby, sozinha na Babilônia
Afogados nas ondas
Malibu
Petite estrela inconnue
Você viu que as estrelas
Polícia Federal
6º lugar) Marvin Gaye se divorciou de um casamento que durou 15 anos e gravou “Here, My Dear”, onde absolutamente todas as canções falam sobre o desenlace. Às vezes cínico, por outras sentimental, Gaye tem na faixa "When Did You Stop Loving Me, When Did I Stop Loving You” um resumo da ópera de tudo o que concluiu sobre suas desventuras conjugais. Na idade das debutantes, ele já sinalizava sua jornada vocacionada para a tragédia.
6 comentários:
O amor nunca sai de moda !
U - hu !
Luciana do Rocio .
Depende onde, Luciana. Se você está falando de bailão sertanejo, banda Calipso, rádio AM, baile de debutantes, festa do Havaí, desfile de estilista de bairro, etc, daí sim, não sai de moda mesmo. :-) Mas gostaria que não saísse de moda, mesmo, em nenhum círculo. E que isso não ficasse apenas nas boas intenções mas também no bom gosto. Quem sabe um dia, né.
Beijo.
Mario
não entendo o que vcs tem contra o calipso........
Eu é que me pergunto o que o Calipso tem contra a gente. rsrs
Valeu, anônimo.
Mario
Oi, fazia um tempinho que não passava por aqui... Uma coletânea e tanto de músicas neste post :-)
Bjos.
Valeu, Katia Cross. Você é convidada tanto a visitar mais como a participar como colunista, OK? Havendo interesse, me acione.
Beijo, Desaforada potencial.
Mario
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