domingo, 26 de abril de 2009

Respiro de liberdade



O carcereiro, limpando os restos de desjejum na boca com as costas da mão, saiu à porta da prisão e observou, no galho baixo de um frondoso flamboyant, a presença de um casulo de lagarta, indicando que em seu interior, naquela manhã quente e abafada de verão, ocorria uma silenciosa movimentação para o despertar da vida. Mas, indiferente àquele cotidiano acontecimento, o que chamou sua atenção foi a chegada de mais um prisioneiro, algemado em suas mãos e pés, ladeado por dois soldados de olhar apático e cenho suado. Ao aproximar-se com seus trajes em retalhos e sua aparência de mendicância, ouviu do carcereiro.

- Infle seus pulmões com todo o ar que puder, prisioneiro, pois este é o último respiro de liberdade que terá em vida.

Sem retocar o olhar de neutralidade que lançava para o carcereiro, o prisioneiro respondeu:

- Desconheço seu conceito de liberdade. Ficarei confinado nesta prisão porque minhas palavras insuflarão o espírito libertário em uma infinidade de pessoas por muitas gerações. Já você, tem uma vida de falsa segurança, desprovido de objetivos existenciais e pago por um governo despótico e tirânico. Por certo, já nem se lembra dos simples prazeres da infância. Tem uma vida amorosa infeliz, e seus modos rudes nunca darão a você uma mulher que o beije na face com real devoção. Tem medo de ser carinhoso por considerar sinônimo de fragilidade ou por não querer parecer afeminado. É um sedentário que se imagina herói. Sua maior distração é comer e suas pernas já somam tantas dores reumáticas pela falta de uso que só se prestam a trajetos domésticos e a transportá-lo para esportes da mesa. Não tem amigos e seus colegas não o admiram, apenas cumprem suas ordens diárias, que na verdade nem são suas, já vieram prontas de alguém que o liderou antes, e que por sua vez também herdou a cartilha de outro infeliz. Você tem todo o ar do mundo para respirar, mas não sabe fazer da brisa da praia poesia. Pode olhar tudo ao redor, mas nunca verá uma maçã como objeto de arte, apenas como alimento para saciar um apetite desprovido de qualquer requinte ou sutileza, e sua maior maldição é não conseguir sublimar seu maior prazer, pois não sabe a diferença entre degustar e engolir. Não tem família, não é visitado, não visita, não abraça, nem é abraçado, não ama, nem é amado. E sua única fonte de satisfação pessoal é gabar-se para si mesmo de sua condição de guardião dos amaldiçoados, e de trepudiar em cima dos prisioneiros dando conta de que, ao contrário deles, possui o bem mais valioso de um homem: a liberdade. Agora sou eu que o desafio a respirar fundo, carcereiro, pois este ar entrará em seus pulmões um pouco mais amargo. Certamente contaminado por um naco de lucidez. Depois, o convido a olhar para trás e a contemplar a prisão que vigia. O exercício derradeiro é que indague a si mesmo quem, afinal, é mais prisioneiro.

Ditas as palavras, o prisioneiro prosseguiu em seu trajeto, adentrando na masmorra e deixando o carcereiro a sós com seus novos pensamentos. Voltou então a olhar para o galho no flamboyant frondoso. Desta vez, o casulo estava vazio.


Mario Lopes

4 comentários:

Anônimo disse...

Já me sinti como o homem preso por diversas vezes...algumas pessoas que me condenaram..estavam pior que eu. Enfim...

Beijos

Bia

Anônimo disse...

"Que jogue a primeira pedra aquele que não tiver pecado", né Bia?
Beijo, Desaforada querida mia.

Mario

Anônimo disse...

Parafraseando Oswaldo em
" A Lista":
- Quantas mentiras vc condenava,
quantas vc teve que cometer??
Depois desse texto não há como não pensar nisso ...e Mario, querido ..sabe que amooo seus textos, mas ainda prefiro a sua parte mais poeta ....Saudadeeeeeeee

Anônimo disse...

Obrigado, Paula. Vou me empenhar para voltar a ser romântico. ;-)
Saudades sempre. Beijo.

Mario