domingo, 13 de julho de 2008

Bela casca
Banho tomado. Nua, em pé no meio do quarto. Vinte e três positivos no ar condicionado. Número coincidente ao apontado no Bulova bracelete com pedrinhas, até então sua única vestimenta. Pronta para se montar. Traje preliminar: cremes para a pele. Óleo vegetal com amêndoas da Lâncome, essência de cânfora, para prevenir prurido hiemal e o ressecamento natural daquela noite de inverno. Hidratante pêra Vizcaya para as mãos, com unhas vestidas à tarde por esmalte Bourjois bordô. Recorreu ao potinho onde guardava a mistura de AAS com glicerina líquida e água oxigenada para proteger cotovelos e calcanhares de rachaduras. Aproveitou que estava abaixada e aplicou seu creme para pés Anna Pegova, observando as bem aparadas unhas cobertas de base protetora rosa clara Mavala Barrière. Subiu um pouco mais pelo corpo e massageou com LegSheen de Avotone as bem torneadas pernas, de coxas e panturrilhas esculpidas na Academia Gustavo Borges, depiladas no dia anterior com Silk-épil SoftPerfection, usado também para desenhar o contorno rente na genitália, agora perfumada com desodorante íntimo Racco. Levantou os braços e espalhou ligeiramente o creme aromatizado clareador de axilas Klassis. Aproximou-se do espelho e revestiu suas rugas com preenchedor Biomarine. No contorno dos olhos, Shisedio Skincare Renewing Serum em doses comedidas e aplicadas com excesso de delicadeza. Pontilhou o resto do rosto com pequenas porções cremosas de Dior Capture 30, esparramando-as com as pontas dos dedos, formando círculos ascendentes de dentro para fora da face, até a pele sorvê-las por completo. Por fim, 212 Carolina Herrera na nuca, punhos, colo e atrás dos joelhos.
Calculou a probabilidade de sexo naquela noite. Remota. Preferiu assim um confortável porém conservador corpete de tecido canela com renda e calcinha de algodão Donna Karan. Na gaveta das meias, ficou em dúvida entre a cor da pele Hope, a fumê Dantelle De Millus e a rendada preta Tri Fil. Abriu as portas do guarda-roupa e cogitou a combinação de cada uma com a saia viscolycra grafite La Redoute Essentiels, a ocre com folhos René Derhy ou aquela com efeito ponte Laura Clément. A combinação também deveria levar em conta o casaco: aquele novo alperce com botões em madrepérola Anne Weyburn, o turquesa de quatro bolsos forrado em plush Courrèges ou o em tecido cru de cavas raglan com mates Édéis. Claro, precisava se decidir em como continuar sua combinação na escolha da blusa: uma off white gola alta em coton Timberland Earthkeepers? Ou a vermelha com strass da Forum? Ou a cacharrel listada azul e amarela Thermo Skin Curtlo? Pior seria combinar os sapatos: havia o Makulelê anos 20 em verniz com aplicação de frisos em couro na cor vinho, a bota preta cano curto de biqueira redonda e detalhes em tecido Prada, ou quem sabe o sapato bico fino e peep toe Vizzano. Já estava desistindo de sua regra de três. Tinha ainda de pensar em um cachecol, pois o frio prometia ressuscitar sua laringite. E também luvas, ou ficaria com mãos enrugadas. Para simplificar, poderia optar por uma calça, mas com ela viria o problema do cinto mais adequado. Vestidos estavam fora de cogitação por causa do frio rasgante, por mais que só fosse senti-lo no trajeto do prédio até o carro e do carro até a festa. Percebeu que as combinações cresciam em progressão geométrica, inversamente ao tempo que havia programado para sair de casa. Ainda não tinha nem pensado em qual bolsa usaria, se trocaria de relógio de pulso, se prenderia os cabelos e se permaneceria de lentes de contato ou trocaria pelos óculos de grau para dar um tempo na irritação da pálpebra superior direita.
Analisou como seria a situação lá fora: o motivo da festa era informal, mas o local não; o dono da festa era casual, mas suas três irmãs sabiam de todas as tendências como se morassem em plena Milão. Tinham sobre o piano uma foto com Alexandre Herchcovitch tirada no último SPFW.
Resolveu deixar a escolha das vestimentas para depois. Foi para as gavetas de acessórios. Na primeira, havia os brincos: os rubis e ametistas seriam bem-vindos com as cores mais histriônicas da moda inverno deste ano, o problema estava no design, com muita prata e platina em desenhos excessivamente exóticos e vibrantes, ela ficaria muito primaveril. Seguiu sua regra básica, depositando três pares sobre a cômoda, aos quais logo vieram fazer companhia um trio de braceletes, mais um de anéis e outro de colares. Nessas horas ficava feliz por nunca ter aderido aos piercings. Enquanto apreciava as jóias, partiu para a maquiagem, tirando da quarta gaveta seu estojo da Mac. Mas também ali, rimel, batom, pó, blush, sombra e gloss, tudo dependeria das demais cores de roupas e acessórios. Decidiu então dar um tempo para a moda inverno e canalizar sua atenção para algo que pouco poderia interferir no restante do conjunto: passar rimel. Tirou o pequeno pincel roliço de dentro do tubo e começou a deslizar suas cerdas no conjunto curvilíneo de pêlos da pálpebra superior direita. Foi quando aquela ainda não diagnosticada reação alérgica voltou à tona. Começou a lacrimejar, o que fez o rimel lhe borrar a face. Quando caiu em si, percebeu que também o olho esquerdo escorria. E que a irritação não era com o produto, mas sim com a indecisão e os risos previsíveis caso não chegasse ao evento devidamente becada. Radicalizou. Perdeu o medo dos excessos e escolheu o que de mais agressivo a moda daquele inverno recomendava usar. Bota plataforma cristal vermelha Victoria’s Secret sobre uma calça amarela legging coton Alfred Dunner e uma blusa laranja pólo em ribana de algodão Mink. Irritou-se ao perceber que a barbatana de sustentação do corpete fazia volume por baixo do tecido da blusa. Então, colocou por cima de tudo um casaco de pele de vison legítimo Myra Fur. Para completar, ao invés de cachecol, uma echarpe negra. Enxugou o rosto, maquiou-se discretamente.
Arrumou os cabelos enquanto, em voz alta, tentava se convencer de que estava perfeita. Passou pelos longos fios óleo capilar com oliva e manteiga Real Cream PH4 Alfaparf. Secou, borrifou um anti-frizz não recomendado pela cabeleireira, sacolejou as madeixas e saiu para o mundo. Ao observar-se no espelho do elevador, procurou pela última vez se sentir bem aparamentada, poderosa. No íntimo remoía sua incompetência. Chegava a quase se sentir merecedora do abatedouro ao qual se destinava. Tomou uma decisão: contrataria um personal styler. A própria Glória Kalil, se necessário. Mas nunca mais passaria por aquela humilhação.
Saiu pela porta do prédio, viu o relógio de rua marcando zero grau e encontrou José Adelino: calça jeans Staroup rasgada na altura dos joelhos, cabelos longos e barba por fazer, camisa xadrez amarrotada sem marca e camiseta da Gugas By Company, tênis Adidas temático das Olimpíadas de Barcelona, sem meias, três semanas sem tomar banho, deitado na calçada, morto por hipotermia.




Mario Lopes

5 comentários:

Anônimo disse...

Eis o contraste entre a riqueza e a futilidade da personagem central e a realidade miserável de outro. (minha opinião)
Parabéns.
Bj. Cá.

Anônimo disse...

Obrigado, Mila. Só que não é só da personagem. Cada qual em sua medida, todos nós temos nossos cosméticos, casacos, maquiagens e abrigos estéticos. Nossas belas cascas.

Charlie

Anônimo disse...

Ótimo Mario, como sempre, brilhante! Hoje uma editora me ligou. Não esqueci de vc e logo mais estaremos no Jô.
É impressionante como vc entende a alma feminina. Não compreendo isso.
Beijos com velinhas pagadas! Viva a nova fase...
;)

Anônimo disse...

Muito BOM

Anônimo disse...

Vêro, obrigado de novo, minha empresária. ;-)
Anônimo, muito OBRIGADO. :-)

Charlie