sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Direção Certa


Ainda lembrava-se de sua infância, quando era acordada pela respiração de seu pai, bem de fronte ao seu rosto, sussurrando baixinho que já era hora de despertar. Da janela, a escuridão ocultava a bela paisagem litorânea, mas não conseguia fazer calar os gemidos de um vento inquieto.
Ela mexia seu corpo para certificar-se de que não estava sonhando, e também para mantê-lo aquecido para mais um longo dia que estava por vir. Quando se levantava, o breu da imensidão já tinha acalmado um pouco de sua ira, e era possível vislumbrar, mesmo que por um segundo, uns feixes de espuma prateados indo e vindo.
O ruído do vento misturava-se, primeiro, ao da água sendo aquecida, e depois, ao da chaleira ensandecida.
Dentro da minúscula casinha de madeira, ouvia os passos do pai se arrastando sobre o assoalho, e de repente, a chaleira silenciava.
Lá fora, a escuridão abrira suas cortinas e dera início a mais um espetáculo. O sol iluminava quilômetros e mais quilômetros de água, e fazia da areia branca, uma cobertura que de tão dourada, ardia os olhos com ternura.
O cheirinho do café enquanto apreciava, por mais uma de outras incontáveis vezes, o quadro contrastante da janela, era simplesmente inesquecível. Vivia a combinação perfeita: pai, café, natureza.
Quando menina, obviamente não tinha consciência disso, mas como que por intuição, guardava diariamente lembranças e mais lembranças de todos esses momentos, para que um dia, pudesse sem dificuldades, remontar e guardar esse quebra cabeças em sua mente para sempre.
Na mesa, pão com margarina e, de vez em quando, mortadela. O café sem leite abria o apetite e enfeitiçava, levando pai e filha a conversas ingênuas que, se não fosse o mar os despertar, ficariam a papear até o anoitecer.
Assim que o relógio marcava 6 e 30, ela já estava sentada a porta de casa, esperando o pai para irem trabalhar. Quando ele aparecia, ela saía correndo a frente, para garantir que iria de mãos abanando. No fundo, ela sabia que seu pai, mesmo que se um dia tivesse que carregar 100 quilos, não a deixaria levar um grama sequer.
Como ela amava correr sobre a areia, e molhar os pés na água gelada e escura do mar que os cercava. Melhor ainda era o pai pegando-a no colo e colocando-a dentro da canoa humilde, que de tão cheia de aparatos pesqueiros, deixava apenas o espaço necessário para os dois.
Enquanto ele remava, a filha observava, de olhos bem abertos e encantados, o movimento sedutor das ondas e da canoa mar a dentro. Quando chegavam ao local apropriado e paravam para começar o trabalho, ela aproveitava a calmaria para sentir o vento frio tocando o seu rosto, enquanto seu corpo era embalado pela épica e inevitável dança marítima.
Nunca vomitou, ou nem mesmo ficou enjoada com o balanço, muitas vezes drástico, que levava a balsa.
Depois que preparava as iscas e as varinhas, esticava as pernas sobre a caixa com iscas e punha-se a imaginar em uma grande embarcação, repleta de marinheiros tatuados e briguentos e um capitão caolho com um gancho no lugar de uma mão.
Às vezes, era acordada repentinamente pelo pai, sacudindo-a com delicadeza para mostrar em suas mãos sua vara de pescaria com um grande peixe abocanhando o anzol e se contorcendo freneticamente. Teoricamente, ela sempre pegava os maiores peixes.
Após um dia de trabalho, cansados e famintos, pai e filha voltavam para casa, e iam direto para o fogão preparar a janta. Na mesa, o mesmo de sempre: o peixe do dia, e muito arroz. Às vezes, uma goiabada cascão adoçava a noite, e dava mais energia para passar no cliente e entregar a mercadoria.
Cada um tomava seu banho, se despediam com um beijo, e iam se deitar.
Era impossível esquecer-se até mesmo de um pequeno detalhe. Tudo continuava vivo em sua mente, como se de repente, se abrisse os olhos, visse novamente seu pai segurando um grande peixe nas mãos, e como num quadro, uma belíssima pintura de pôr-do-sol ao fundo, embelezando a cena.
Desde que tudo acontecera, ela saía de casa todos os dias, às 6 e 30 da manhã, e pegava o barco para ir a alto mar. Esticava os pés sobre a caixa, esperando pegar no sono e ser surpreendida pelo toque da mão de seu pai, despertando-a. Mas nada nunca acontecera.
Um dia, enquanto estava de olhos fechados, sentindo o vento e o balanço do mar, ouviu a voz do pai bem próxima ao seu rosto, mas não conseguiu identificar o que dizia.
Com medo de abrir os olhos e ver nada mais do que o mar de cada dia, manteve-se concentrada em entender o que falava a voz.
E de repente, como que tomada por algo divino, ela sentiu um empurrão delicado sobre suas costas, e cansada de procurá-lo em terra, atirou-se ao mar, certa de finalmente estar indo na direção certa, e com essa certeza, viveu feliz para sempre, mergulhada em lembranças de uma vida que já não era mais.


Letícia Mueller

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