segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Tema da Semana: Das Cinzas Às Cinzas, Do Pó Ao Pó

Rituais


Clara acordou naquela manhã nebulosa, eram seis horas, os pássaros começavam a cantar, ainda estava escuro lá fora. Deu um beijo em seu companheiro como de costume, levantou silenciosamente, colocou seus chinelos de veludo que ganhara de sua avó, vestiu o roupão florido, foi até o banheiro lavou seu rosto, saiu do quarto e foi até a varanda, ver o sol nascer naquela cidade imensa, onde já não sabia se o que via era o sol nascer ou algum tipo de reação química daquela atmosfera.
Clara repetiu seu ritual de muitos anos, desde que mudara do interior para a cidade grande para estudar e por ali ficou, casou, constitui família, ou melhor, passou a constituir a família de seu companheiro. Após alguns minutos, Clara entrou, foi para a cozinha, preparou o café da manhã, serviu a mesa, ainda enquanto seu companheiro dormia, tomou banho, secou seus longos cabelos platinados, colocou seu terno cinza grafite, seus scarpins de bico arredondado, quando desceu para juntos tomarem o café da manhã, como o costume, desde os tempos de namoro. Namoraram por seis anos, se casaram há quatro, são um casal feliz, pensam em filhos, mas pensam primeiro em estabilidade financeira, proporcionar ao rebento conforto e qualidade, coisas difíceis em uma grande metrópole.
Após o café, cada um seguiu para seu trabalho no seu próprio carro, trabalhavam em zonas distintas da cidade, após uma hora de trânsito e congestionamento Clara chegou no escritório, cumprimento a secretária, a moça do café, sempre com aquele sorriso doce de lábios finos e bem delineados com seu batom de cor nude, subiu para sua sala, ligou seu notebook, pegou os recados do chefe em sua gôndola de entrada, se sentiu satisfeita ao ver a gôndola de saída vazia, parou e refletiu, mais uma vez, como sempre ocorreu naquele escritório onde trabalhou desde que entrou na faculdade há tantos anos, começou então seu dia de trabalho, muita leitura, resolver problemas alheios, metas a cumprir e garantir seu pão.
Era quinta-feira, dia de happy hour com as amigas das antigas, saíram do trabalho e foram para o boteco, como de costume pediram uma rodada de chopp ao se assentarem na mesa da calçada, algumas cansadas, outras frustradas, outras apaixonadas, em crise, bem resolvidas, e assim o papo rolou até por volta das dez da noite, quando Clara se despediu e retornou à sua casa após uns quarenta minutos de trânsito, o companheiro acabara de chegar do poker com os colegas, as quintas-feiras sempre foram reservadas aos amigos, foi o cano de escape que encontraram para o relacionamento ficar equilibrado, era quinta-feira dos amigos, domingo almoço com a família, dele, afinal Clara infelizmente já perdera seus entes queridos há muitos anos.
Depois de um beijo e um abraço terno, um banho demorado, o casal se confortou o sofá verde musgo da sala, assistindo o noticiário da tv a cabo em sua tv de plasma 42”, namoraram, conversaram sobre o trabalho, os amigos, alguns planos futuros, os mesmos que eles nunca colocaram em prática, foram para a cama confortável e aconchegante king size, tantas coisas bacanas, compradas com esforço, mas Clara sentia-se bem, tinha uma vida cômoda apesar de todo aquele caos.
Clara sempre adormecia mais tarde, ficava pensando na vida, enquanto ensaiava ler algum best seller da literatura inglesa, algumas vezes sentia falta da vida interiorana, da vida pacata, dos tempos doces e graciosos na infância ao lado de pais e avós, o agito da cidade que ela hoje vivia, comprimir metas e horários, enfrentar trânsito, não eram seu sonho de vida, muitas vezes sentiu-se desgastada, um robô ou coisa parecida, queria voltar. Mas Clara cumpriu seus rituais por muitos anos, cresceu, aprendeu e viveu, sempre pensando na cidade de interior, na imagem congelada de domingos de sol na praça com seus pais, quando tinha seus oito anos.
A vontade de voltar sempre a acompanhou, fazia parte de seus rituais, mas Clara era reconhecida em sua profissão, teve um bom companheiro, estabilidade, deixar todos aqueles rituais desgastantes e por vezes deprimentes, até parecia interessante, mas retornar ao interior, que já não é mais o mesmo de tantos anos atrás, de onde seus pais partiram há tanto tempo, os amigos e vizinhos também, nada mais era igual, deixar para trás tudo que conquistou, Clara se convenceu que seria como retornar das cinzas inaladas na grande metrópole para o pó em que nada para ela restara do interior.


Fernanda Bugai

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