quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Tráfico S/A

O último som que ouviu foi o do tiro. A bala atravessou a rua na noite de chuva forte em trajeto retilíneo, acertando o pescoço do jovem que abria o portão de casa. Sirenes gritam ensurdecendo e cegando enquanto a família atônita, não acredita na cena que acontece ali, em frente de casa. O pai sai correndo em direção ao filho que sangra caído e imóvel. A mãe, na porta, cai aos prantos tentando encontrar uma saída para o pesadelo.
A perseguição continua nas ruas da cidade das luzes. O fugitivo ainda troca tiros com os policiais que insistentemente tentam alcançá-lo. Mas foi dobrar uma esquina e um labirinto de barracos tomou forma, como se tivesse sido montado um cenário instantaneamente. Ruelas escuras, bêbados, transeuntes miseráveis e o comando armado do tráfico se confundem. Pra onde correr? Ir atrás de quem, em quem atirar? Na dúvida, todo mundo pra dentro de casa, quem estiver na rua morre. ‘Bora’ bater em velho, criança e trabalhador, é tudo bandido, tá tudo na reta. Corre atrás do vagabundo, acha o desgraçado, vai ter que pagar. Não hoje? Amanhã então, depois, uma hora vai ter que sair.
As noites são iguais. Toda noite tiro, toda noite violência, esse bandidinho tem que pagar. Ele se esgueira pelos becos, rasteja como serpente, vezes dopando, vezes dopado. Com sua onipotência, ninguém mexe. Só que nem sempre é dia de caça e então depois de invadir uma, duas bocas, ataca e desacata, encontra mais um ponto de venda, dessa vez com ‘cliente’. Gente chique, da zona sul, tomada pela onda da viagem que só custa um salário mínimo por mês. Som alto, todo mundo no chão, prende um por um, pra delegacia. O fugitivo, bandidinho, tava ali, que agridoce a realidade.
Levados quatro suspeitos à presença da autoridade. Todos bem vestidos, todos bem ricos e todos bem loucos. Todo mundo de costas que um a um vai se explicar. Levanta-se da cadeira o Delegado, pai do jovem morto naquela noite chuvosa. Tenso, o bandidinho estava ali, entre eles.
O ‘doutor’ movimenta-se lentamente em direção da primeira. Pede que se vire. Loirinha, rosto de anjo, entorpecida e cheirando a fumo, a doce namorada do filho. Claramente fora de si, mal conseguia olhar para o “tio”. A maquiagem borrada, a palidez infantil, a roupa igual a da última vez em que saiu com seu filho. Mal acredita no que vê.
Depois, viram-se o segundo e o terceiro, dois amigos da balada, conhecidos que certamente dividiam o paranóico mundo paralelo da mocinha. Nada mais do que retratos de uma infância perdida em futilidade, super proteção e alienação paternal. Os donos do mundo.
E o quarto, o bandidinho. O fugitivo, o algoz do seu filho, o traficante, viciado, maldito... esse iria pagar por todos. Matou seu filho, viciou a namorada. Não merece piedade. Padecerá sob a justiça dos homens, vingado estará o filho. Vire-se escória da sociedade. Saiam todos vocês do anonimato das estatísticas e mostrem suas caras, tornem-se responsáveis pelas suas vidas, assumam os riscos das suas escolhas, parem de se esconder nas frestas da impunidade dessa sociedade medíocre. Virou em um movimento brusco este último, o assassino, também, seu filho...
Na noite em que foi morto, Matheus chegava de uma festa que durou um dia e uma madrugada inteiros. Acabara de deixar a namorada Marina em casa, depois de terem se divertido ao som da batida ácida do eletrônico, embalados por Tito e Pedro, amigos de Edu. Edu, irmão de Matheus, tinha saído pra buscar mais loucura quando a polícia o perseguiu. Na fuga, não deu tempo de carregar nada a não ser a bala alojada no pescoço do irmão.


Angelica Carvalho

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