sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Uma Vida Por Palavras



Quando nasceu, sua mãe lhe dera o nome de Paulina. Tinha um olho azulado, e outro esverdeado, que dependendo do dia, mudavam de cor até ficarem pretos feito breu, ou arroxeados como uma ameixa. Os cabelos começaram a crescer loiros, e, como acontece com toda criança, as madeixas foram aos poucos escurecendo até ficarem castanhas. Porém, a uma certa idade, já não se distinguia se ela era loira ou morena. A impressão que se tinha é que cada um dos fios era de tonalidade diferente, e que todos juntos, formavam uma nuance levemente acobreada.
Além de um olho de cada cor e um cabelo indefinido, apesar de que isso não fosse sua culpa, ela ainda tinha outra mania engraçada. Desde que tivera capacidade para ouvir a mãe a chamando pelo nome, e entender que aquele ruído emitido estava se referindo a ela, à sua pessoa, sua vida mudou. Na verdade, a vida de Paulina não mudou tanto, mas a das pessoas que conviviam ou passaram a conviver com ela sim.
De um dia para o outro, ela simplesmente, deixou de atender pelo seu nome. Isso não seria um problema tão grande, se ela pelo menos tivesse escolhido alguma maneira para que fosse chamada. Todos os dias, ela acordava, pensava por alguns minutos, e assim se levantava da cama e ia ter sua vida normal. Se por o acaso ninguém a chamasse pelo nome certo do dia, ela não abria a boca. Ficava muda, emburrada, estática, olhando para o chão ou até mesmo para os olhos de quem tentava manter alguma conversa. Mas nada adiantava. Poderiam sacudi-la, matá-la, esfaqueá-la, ela não esboçava nenhuma reação enquanto não a chamassem pelo nome secreto.
Depois de muitas tentativas, quando finalmente alguém acertava a senha que fazia “Paulina” acordar, ela voltava à normalidade. Era como se, a cada novo dia, seu corpo reprogramasse um novo nome, e ouvi-lo era o botão, o combustível, que a permitia viver normalmente.
Escolhia nome de todos os tipos, desde os mais comuns, como Maria, até os mais exóticos, como Jilovêvia. Não tinha preferência por iniciais, paroxítonas ou trissílabos, pois o que acontecia todo dia ao acordar, era algo que fugia ao seu controle. Nem ao menos conseguia dar dicas sobre o nome a ser dito, ou escrevê-lo antes de dormir, pois ela só o sabia no momento em que despertava, e então o feitiço já fora novamente lançado.
Sua mãe estava craque em nomes de meninas. A estante de livros era repleta de títulos ligados à nomenclatura das coisas, desde plantas, até animais. “Paulina” passou depois de certo tempo, a adotar também o nome de outros seres.
Chegou a ficar um mês sem se mexer ou abrir a boca, porque escolhera o nome “Metilcloroisotiazolinona”. Obviamente ninguém conseguiu acertar, mas a sorte foi que seu irmão mais novo estava vendo um canal de ciência na televisão que falava sobre a composição dos shampoos, e em dado momento, o apresentador falou o nome que desencantou “Paulina”.
Nas salas de aula, ela sempre ficava fora da chamada, e por isso, tinha de sentar-se bem à frente, em local de fácil visão.
Quando chegou aos seus vinte e poucos anos, deixou a mãe praticamente enlouquecida. Os nomes estavam cada vez mais e mais complicados. Chegaram a contratar botânicos, cientistas, biólogos, médicos e até artistas para auxiliarem com as palavras difíceis que Paulina parecia até inventar.
E ela notava o trabalho que estava dando a todos, mas não havia nada que pudesse fazer. Como queria poder simplesmente ir dormir na casa de suas amigas, sem ter que no outro dia ser praticamente carregada pra casa. Também sonhava com um namorado, mas não havia homem no mundo que aguentasse aquela sua doença.
Certo dia, sua mãe foi acordá-la e assustou-se ao ver a maneira como a filha dormia. Mais estática do que o normal, ela aparentava uma morbidez ao mesmo tempo em que parecia mais viva do que nunca. Nada a fazia acordar daquele sonho profundo e gostoso.
Passou horas e mais horas gritando ao seu ouvido, exclamando nomes, palavras e objetos da sua lista de “senhas” ainda não usadas, e nada... Ela não acordava, ou não queria acordar. Talvez estivesse escolhido o silêncio, ou o silêncio a tivesse escolhido.
Não haviam mais palavras que acordassem Paulina. Estavam todas esgotadas.



Letícia Mueller

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