quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Odisseia



Tudo o que vou relatar é a mais pura expressão da verdade. Sem acasos, sem descaso. A realidade das memórias de um capitão de embarcação. Meu navio, Esperança I. Meus tripulantes, Goya e Canii. Meu nome, Capitão Joshua, há 56 anos no comando.
No começo era tudo calmo. A maré lisa e límpida. Nesses tempos muitas pessoas passaram pelo convés e eu as carreguei de lá pra cá aos mais diversos destinos. A pouca experiência na função me dava a sensação de que nada ruim poderia acontecer, que sob meu comando este navio velejaria por uma centena de anos. As crianças foram as primeiras a marcar as cabines e as histórias com sua vivacidade e sua impiedosa vocação para a sinceridade. Ao longo dos anos, pude constatar a evolução do pensamento que partiu dos rabiscos e findou nos poemas. Lembro até hoje de um garoto chamado Antonio, que subiu no mastro principal, contra as recomendações do Imediato e quando descoberto despencou de lá quebrando uma perna. Ganhou, além das ataduras, uma bela lição de moral dos pais que não hesitaram em apurar os responsáveis pela imprudência do filho. Claro, eu me coloquei a disposição e ofereci minha cabine para cuidados médicos de primeira linha. Algo como um consolo ao garoto inquieto e uma tentativa de “acalmar” os pais. Aprendi a primeira lição sobre política e segui a linha já que deu certo.
As histórias naquela época eram mais ou menos assim, nada de diferente ou marcado por aventuras. Os passageiros pagavam por uma cabine, havia três refeições diárias em viagens que duravam apenas o tempo de cada destino e assim iam e vinham as histórias que se misturavam com a rotina do navio. Sim, tudo era rotina. E eu estava literalmente mareado. Na minha estante os velhos livros empoeirados de Julio Verne eram meu único desapego da realidade. Suas histórias de ficção bem poderiam tornar-se verdade, eu pensava, e todas as noites eu sonhava com lulas gigantes e embarcações misteriosas. Eu precisava de um sentido para minha vida, um porto seguro, caso contrário seria engolido pelos mares.
Até que certa noite, eu acendia meu cachimbo quando percebi uma intensa névoa aproximar-se do navio. Era como se estivéssemos entrando em uma densa nuvem, não conseguíamos enxergar um palmo diante do nariz. Rapidamente um forte vento começou a bater as velas do navio e o mar revoltou-se. Uma tempestade havia tomado a região e estávamos bem no centro dela. Todos ficaram assustados e me olhavam esperando um sinal de comando. O que eu faria? Nunca havia passado por situação semelhante. Travei a fala e quase desisti quando lembrei da voz do meu pai. Surgiu em minha memória a cena de meu pai em uma situação parecida, quando eu ainda era criança. Eu chorava de medo e ele, com muita segurança, me segurou e disse: - Um capitão de verdade é o único responsável por seu barco. Agora fique aqui e me ajude ou escolha seu destino.
O desafio me tirou do marasmo. O que parecia uma história herdada, se transformou na minha história. Hoje, eu não carrego mais ninguém comigo, pelo menos não a passeio. Viajo pelos lugares que desejo e só levo o que preciso. Fica para quem quiser acompanhar, a escolha de navegar ao meu lado. Mudei o nome do navio para Odisséia.





Angelica Carvalho

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