sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Loucura sem Cura


Às vezes sentia o cheiro amargo do estrume de boi pairando sobre o ar, e de repente, ficava feliz. Assistia a desenhos animados, só para caçar o tão delicioso cocorocó das galinhas, e lhe dava uma vontade imensa de correr atrás delas de braços abertos, e vê-las em desespero, sem saber em que canto se esconder.
Já estava até crescida, mas não conseguia nem queria se desprender dos antigos prazeres que a vida outrora lhe havia dado.
Hoje, o que lhe agradava, a olhos alheios, não passava de baboseira sem sentido, e até um pouco repugnante.
Mas do que isso importava, se gosto não se discute e maluquice muito menos?
Muito podem rir ou duvidar, mas a verdade não muda, e o fato é que, vez ou outra, ela se agaichava em frente ao vaso quando tinha certeza de que não seria perturbada, e aproximava seu rosto daquilo que acabara de produzir, sem tocar, é claro. E passava alguns minutos ali, cara a cara com sua merda, apreciando o que à ela lembrava a casa do interior.
Hoje morava em uma casinha mais ou menos, feita de barro, na periferia da cidade. Podia até não ter nada, mas pra ela, tinha tudo e mais um pouco, porque tinha quintal. Nada muito extravagante, coisa simples. Uns 5 m² de pura grama bicolor, horas verde como uma grama deveria ser, horas amarelada feito um moribundo febril.
E com isso, ela também não se importava. Bastava que a terra se mantivesse fértil o suficiente para abrigar alguns seres vivos que faziam parte de sua vida, que ela já estava totalmente satisfeita com seu quintal.
O procedimento era simples. Quando era tomada por uma depressão arrebatadora, ou simplesmente sentia-se entediada, sem muito o que fazer, ia direto para seu quintal, e tirava os chinelos de dedo. Esticava as pernas e os braços, alongando todo seu corpo e respirando profundamente, para ficar relaxada.
Quando sentia-se preparada, ia em direção a grama e ali caminhava descalça até cansar. Minhocas, formigas, pequenas aranhas, e milhares de outros bichinhos divertiam-se com seu pé, e ela com eles.
Passava horas caminhando de um lado para ao outro, sentindo o gelado da grama, o úmido das minhocas e a coceirinha da areia que entrava por entre os seus dedos. Quando anoitecia e o sono já incomodava, ela ia para um banho rápido e leve, mais para tirar o grosso do que fazer uma limpeza propriamente dita. Ia se deitar com os pés ainda marrons, cheios de sujeirinhas que entravam pelas cutículas e pelos machucadinhos em carne viva.
Acordava de manhã um pouco apreensiva, mas ansiosa como era, pegava um dos pés com as duas mãos, e com uma força fenomenal, trazia-o para perto de seus olhos. Concentradíssima, ela examinava cada pedaço de pele com atenção, e se não via nada, desanimava.
Ia se lavar e ficava com os pés rosados novamente, como novos.
Mas não desistia assim tão fácil. Todos os dias, ia descalça até o quintal e por lá passeava, pressionando a grama com força até que anoitecesse.
De tanto puxar seus pés em direção ao rosto para conseguir enxergá-los, acabou ficando com uma dor nas costas terrível, mas que ainda não era o bastante para fazê-la parar de ir ao quintal.
Um dia, acordou e sentiu algo diferente. Pensou que nem precisaria olhar para seus pés e procurar o que queria.
Estava ali, ela tinha certeza. Finalmente tinha conseguido. Quase podia sentir ele se movendo.
Ah, que sensação maravilhosa. Nada na vida podia ser melhor do que aquilo. Como era bom! Como as pessoas podiam ignorar tal prazer?
Ela não tinha dúvidas que nenhum esforço era em vão se conseguisse o que sempre procurava: a coceirinha.
Passava dias e mais dias a se deliciar com a presença do bichinho de pé, sonhando com a possibilidade de poder viver com ele alojado em sua pele, lhe dando aquela sensação gostosa.
Mas sabia que uma hora, teria de se despedir.
E num gesto trágico, e triste, e de sofrimento, ela esquentava uma agulha e de olhos fechados, punha-se a caçar seu amigo.
Já estava mais do que na hora.
Voltava para sua vida normal, livre de bichos, e acabava o dia sonhando com os pés sujos e apenas uma idéia em seus pensamentos.
E se um dia existisse um remédio que...




Letícia Mueller

Nenhum comentário: