sexta-feira, 3 de setembro de 2010

O que há de mais íntimo em público


Eu pegava o ônibus ainda um pouco vazio, quase no início da linha. Antes de entrar, eu sempre examinava os vidros e as portas. Quanto mais espaços em branco visíveis, maior era a chance de eu entrar. Aquele mar de gente que enchia os ônibus formava sempre uma massa escura fácil de ser identificada, e reprimida. Eu não entro em ônibus cheios.
Era cedo... Faltavam 2 minutos para as 6. Os trabalhadores ainda desligavam seus computadores, guardavam suas ferramentas e tiravam seus uniformes enquanto eu já estava dentro do tubo, imponente, a primeira da fila. Que fila?
Agora já começavam a chegar. Primeiro, uma moça de sandálias rasteira. A sola branca do pé manchava a pele cor de chocolate que desenhava a unha do dedão. Pele grossa, ressecada, dura. Nem precisaria de sandálias. Antes assumisse e andasse descalça que estaria mais protegida.
Chega um rapaz de terno e bolsa de couro. Alto, elegante, bem apessoado. Paga a passagem com o valor máximo. Uma nota de vinte novinha em folha.
Um homem de 50 anos, usando um boné com o número 13 e o nome de Dilma estampado em letras amarelas, trajando uma camisa puída e calças moletom, está do lado de fora, colocando as mãos no bolso em um ato de desespero. De tempos em tempos, junta todas as moedas na palma da mão, separando-as para um lado e para o outro em uma conta que só mesmo ele ou Deus para entender.
Mais cinco pessoas vão enchendo o tubo.
Entra uma menina jovem, de uns 25 anos. Bela, longos cabelos loiros, grandes olhos negros enfeitados com cílios curvos como de uma boneca. Usa salto alto, calça justa, blusa decotada que deixam a mostra os grandes seios siliconados. Vê-se pela bolsa que ela é uma universitária, que estuda em uma universidade particular, paga, cara. Ela parece deslocada naquele ambiente, como se o único motivo que estivesse andando de ônibus fosse por seu carro estar na revisão e todos os seus amigos e parentes não pudessem levá-la ao seu destino.
Entram mais pessoas. Chega o ônibus.
Vou direto para a porta 4, já me prevenindo contra os futuros e inevitáveis congestionamento de pessoas. Alguns companheiros de tubo parecem pensar como eu, e ficam perto da porta de desembarque, aonde alcança minha visão.
Uma jovem ao meu lado me chama a atenção. Encostada sobre um cano, ela parece não se mover com o balanço do veículo. Sua expressão, de tão estática, chega a assustar. Ela parece triste, braba, irritada, era difícil definir. Fácil era sentir uma vontade incontrolável de consolá-la, de dizer que ela logo logo estaria em casa.
Foi então, durante esse ímpeto de benevolência, que comecei a notar em seu perfil, a única parte de seu rosto visível de onde eu estava. Devia ter uns 20 anos, era morena, prendia os cabelos no alto da cabeça, e a franja, estava presa pra trás, formando um topete. Tinha olhos amendoados, grandes, e verdes, contrastando com sua pele levemente bronzeada. Os lábios eram carnudos, sensuais, e algo dizia que um lindo sorriso escondia-se por ali.
Era tão linda! Como eu queria ver seu rosto inteiro, de frente. Fiquei alguns minutos com o olhar preso nela, até que desisti. Nada no mundo a faria virar o rosto.
Um celular toca. É um daqueles toques antigos de música clássica, tipo Beethoven. Eu procuro pelo dono do celular, mas fui lenta demais. O telefone já havia parado de tocar.
O ônibus pára em uma estação e a sensação é a de que dezenas de pessoas foram desovadas ali dentro. Já são 18horas e 4 minutos, e o ônibus está cheio, lotado.
Mesmo próxima a porta 4, 3 pessoas disputam meu humilde lugar. Não se importam com a minha presença. Eu faço manobras pra evitar o máximo de contato corporal possível, mas parece tão difícil quanto plantar uma bananeira por ali. De repente, sinto o toque da mão de um homem tocar repentinamente em meu dedo, e como reflexo, tiro minha mão imediatamente. O senhor de 50 anos com o boné da Dilma, me olha constrangido e pede desculpas. Ele passa o resto do trajeto fazendo mil e uma macaquices, se concentrando para não encostar mais em mim. O senhor de camisa puída.
O telefone toca novamente, aquele com o toque do Beethoven. Me distraio por alguns segundos, e quando vejo, aquele homem elegante de terno e bolsa de couro está falando ao celular. Um celular velho, meio carcomido, feio. Quando noto que suas unhas combinam muito bem com o estado de celular, vejo que sua calça social está cheia de furinhos feito por traças e a bolsa de couro está toda desgastada. Enganou bem.
Aliás, a bela jovem loira universitária foi flagrada coçando os ouvidos, e logo em seguida, roendo as cutículas da unha. Talvez ela tenha esquecido o álcool gel dentro do porta-luvas do carro na revisão.
Mais uma parada. Estação Central. Como em uma maré, várias pessoas deixam e várias entram no ônibus. Foi no meio desse movimento que, discretamente, a bela menina misteriosa ao meu lado se dirigiu para a saída e eu tive uma das maiores decepções. A garota do perfil lindo tinha os lábios tortos, olhos caídos, e um queixo um tanto quanto avantajado. Resumindo: era feia, muito feia. Porém, poderia ser uma modelo de perfil.
Decepcionada, eu me viro para a janela, e não me movo enquanto não chego aonde tenho de descer.
Chego em casa pensando que deveriam proibir os passageiros de ficarem olhando um para os outros. É impossível, eu sei.
Nesse dia, fui dormir triste... envergonhada e triste.



Letícia

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