sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Serve pra isso...


Era um sábado ensolarado. Ela não estava acostumada a andar de ônibus e ainda se mordia de raiva pelo pai que não pode levá-la ao shopping. O avô fora internado, e poderia receber alta a qualquer instante para deixar o hospital. O pai tinha que estar a mercê.
Que raiva ela sentia. O shopping era tão pertinho, não custaria nada que alguém a levasse até ali. Mas, lá estava ela, já há 10 minutos dentro daquela máquina de tortura. Como era horrível! Aquela gente toda, tudo tão feio, sujo, e pobre.
Ela não via a hora de encontrar logo com as amigas e contar à elas sobre a péssima experiência que teve. Até que renderiam boas risadas.
Mas enquanto estava lá, a menina não conseguia se distrair. Todos os passageiros pareciam olhar para ela, como se fosse um monstro, ou quem sabe uma princesa. Que nojo, ui. Ainda bem que tinha seu IPod Touch 32 Gb para lhe fazer companhia.
Deu Graças a Deus quando chegou no lugar aonde tinha de descer.
Que muvuca! Até pra sair tem que ser desse jeito! Bando de mal educado!
E saiu empurrando todos que via pela frente, discretamente é claro. Vexame é feio em qualquer lugar, até na favela.
Já olhando para o shopping belo e imponente à sua frente, quando estava prestes a respirar ar puro e saltar de alegria pela rua, uma coisa chamou sua atenção.
Uma família de seis pessoas estava parada em frente à catraca, do lado de fora. Havia um senhor mais velho, de mãos dadas com uma senhorinha grisalha. Ambos de chinelo de dedo, muito humildes. Tinha também uma mulher gorda, de cabelos emaranhados e oxigenados com as raízes pretas já grandes. Ela levava no colo uma criança negrinha, já bem cabeluda. Outras duas crianças, uma menina e um menino, se agarravam a suas pernas e puxavam a barra de sua saia com insistência.
- Mãe, também quero colo.
A mãe não conseguia se concentrar. Mexia desesperada em sua bolsa em busca da moeda que completasse o valor da passagem, até que a vózinha pegou com gentileza em sua mão, e com um sorriso sincero, falou:
- Calma filha, o pai paga. Afinal, pai é pra essas coisas né…
A senhorinha olhou para o marido, que retribui com uma gargalhada gostosa, e concordou com a cabeça, e disse:
- Toma filha, vamos.
A mulher da raiz preta sorriu como uma criança, como a própria que carregava em seu colo e tinha sobre a barra de sua saia.
A menina do ITouch notou que a família humilde estava na verdade bem vestida. Os dois senhorzinhos estavam sim de chinelo de dedo, mas pareciam ser os melhores de seus guarda-roupas. A mulher das raízes estava maquiada, exibia uns beiços vermelhos muito mal pintados, mas não importava. Ela tinha se arrumado. As duas meninas estavam de sandalinhas rosa cheia de miçanquinhas e usavam maria chiquinhas no alto da cabeça.
A família aproveitou o sábado para passear, e ali, o papel do pai era pagar a passagem da filha e dos netos. Era isso o que ele podia fazer, e todos ficavam contentes, e agradeciam com um sorriso sincero.
Nossa menina lembrou do próprio avô internado, e lembrou do último almoço que tiveram, com toda a família reunida. Uma churrascaria no Batel. Depois, ainda passaram no Mac, e sem querer ela deixou respingar um pouco do sundae no banco de couro do carro do pai. Discretamente, claro.
Huum, como ela amava sundaes!
Quase chegando no shopping, ela aumentou o volume do IPod e foi direto para a Praça de Alimentação.
Simples assim.



Letícia Mueller

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